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Enterro do Filho de um Rei Negro

Enterro de uma Negra e Enterro do filho de um Rei Negro, de Jean Baptiste Debret,
Enterro de uma Negra e Enterro do filho de um Rei Negro, de Jean Baptiste Debret, via NYPL

Não é extraordinário encontrarem-se, entre a multidão de escravos empregados no Rio de Janeiro, alguns grandes dignitários etiópicos e mesmo filhos de soberanos de pequenas tribos selvagens. É digno de nota que essas realezas ignoradas, privadas de suas insígnias, continuem veneradas por seus antigos vassalos, hoje companheiros de infortúnio no Brasil. Esses homens de bem, que na sua maioria prolongam sua carreira até a caducidade, morrem em geral estimados por seus senhores.

É comum, quando dois pretos se encontram a serviço na rua, o súdito saudar respeitosamente o soberano de sua casta, beijar-lhe a mão e pedir-lhe a bênção. Dedicado, confiando nos conhecimentos de seu rei consulta-o nas circunstâncias difíceis. Quanto aos escravos nobres, graças à sua posição, conseguem de seus súditos os meios suficientes para comprar a própria liberdade; e desde então empregam escrupulosamente toda a sua atividade no reembolso da dívida sagrada.

Retirado economicamente no porão de um beco qualquer, cobre com seus andrajos a sua grandeza e, revestido de suas insígnias reais, preside anualmente no seu pobre antro as solenidades africanas de seus súditos. Ao morrer ele é exposto estendido na sua esteira com o rosto descoberto e a boca fechada por um lenço (247). Quando não possui nenhuma das peças de seu traje africano, o mais artista de seus vassalos supre a falha traçando no muro o retrato de corpo inteiro e de tamanho natural do monarca defunto no seu grande uniforme embelezado com todas as suas cores, obra-prima artística ingênua, servil imitação que estimula o zelo religioso de seus súditos, solícitos em jogar água benta sobre o corpo venerado. O mais difícil para eles está em saírem depois, do porão repleto de gente, e atravessarem a multidão de curiosos que estaciona à porta.

O defunto é visitado também por deputações das outras nações negras, representadas cada qual por três dignitários: o diplomata, revestido de um colete, calças pretas, chapéu de bicos bastante seboso e mais ou menos rústico; o porta-bandeira, segurando um varapau comprido no alto do qual se desfralda um trapo de cor; e o capitão da guarda, armado de uma vareta enrolada numa fita estreita ou simplesmente enfeitada com um laço, limitando-se o uniforme militar a uma simples calça para esconder a nudez. Cada deputação, ao chegar, é introduzida pelo seu capitão da guarda, que faz uso da arma para abrir passagem através da multidão; a delegação torna a sair da mesma maneira.

Embora nenhum ornamento funerário designe a porta da casa do defunto, pode ela ser reconhecida, mesmo de longe, pelo grupo permanente de seus vassalos que salmodiam, acompanhando-se ao som de instrumentos nacionais pouco sonoros mas reforçados pelas palmas dos que os cercam. Estas constituem-se de duas batidas rápidas e uma lenta ou de três rápidas e duas lentas, geralmente executadas com energia e conjunto. A esse ruído monótono, que se prolonga desde o amanhecer, mistura-se por intervalos a detonação das bombas e isso dura até seis ou sete horas da noite quando se inicia a organização do cortejo funerário.

A procissão é aberta pelo mestre de cerimônias. Este sai da casa do defunto fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obstrui a passagem; erguem-se o negro fogueteiro soltando bombas e rojões e três ou quatro negros volteadores dando saltos mortais ou fazendo mil outras cabriolas para animar a cena. A esse espetáculo turbulento sucede a saída silenciosa dos amigos e das deputações escoltando gravemente, o corpo carregado numa rede coberta por um pano mortuário. Finalmente a marcha é fechada por alguns outros ajudantes, armados de bengala, que constituem a retaguarda e têm por fim manter a distância respeitosa os curiosos que acompanham. O cortejo dirige-se para uma das quatro igrejas mantidas por irmandades negras; a Velha Sé, Nossa Senhora da Lampadosa, Nossa Senhora do Parto ou São Domingos.

Durante a cerimônia do enterro o estrondo das bombas, o ruído das palmas, a harmonia surda dos instrumentos africanos, acompanham os cantos dos nacionais, de ambos os sexos e todas as idades, reunidos na praça diante do pórtico da igreja.

Finalmente, terminada a cerimônia, os soldados da polícia dispersam a chibatadas os últimos grupos de vadios, para que tudo termine dentro das normas brasileiras.

Nota do Autor

  1. A necessidade de envolver a parte inferior do rosto com um lenço atado se explica pelo hábito que os pretos têm de colocar uma moeda na boca do defunto.

Fonte

Imagem destacada

Mapa – Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa