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Catacumbas

Catacumbas da Igreja do Carmo e Pequenos sarcófagos nos quais os ossos são preservados, por Jean Baptiste Debret,
Catacumbas da Igreja do Carmo e Pequenos sarcófagos nos quais os ossos são preservados, por Jean Baptiste Debret, via NYPL

O tipo de construção de catacumbas que apresento aqui era ainda tão recente no Rio de Janeiro, em 1816, que se citavam apenas duas igrejas (272) com esse modo de sepultamento estabelecido a expensas dos irmãos, sendo-lhe exclusivamente reservada a perpetuidade.

Ao passo que, segundo o antigo costume, o chão destinado às sepulturas era nas outras igrejas inteiramente coberto de longas fileiras de alçapões de madeira, de dimensões tumulares, encontravam-se nos conventos túmulos fechados com lajes enfileirados no claustro no chamado carneiro. Entretanto a inovação salutar conquistou tantos partidários que em 1829 não havia na cidade nenhuma irmandade que não tivesse mandado construir as suas catacumbas, ou no pátio ou em algum trecho do jardim contíguo à igreja.

Vejamos agora o cerimonial que acompanha o irmão à sua última morada. Durante o ofício funerário é o corpo exposto de rosto descoberto, no seu esquife colocado sobre um estrado adrede preparado no coro da igreja. Terminadas as orações fecha-se a tampa do caixão; em seguida seis irmãos o transportam em procissão até as catacumbas e o colocam no segundo estrado; abre-se novamente a tampa e iniciam-se as últimas orações exigidas, a que assistem numerosos confrades. Terminado o ofício, fecha-se o caixão para depositá-lo perto do jazigo que lhe é destinado, abrindo-se uma última vez a tampa. Um irmão servente carregando a caldeirinha apresenta o hissope a cada um dos confrades que desfilam por ordem de antiguidade atrás de seu clero. Finda a aspersão um segundo irmão servente, estacionado ao pé do caixão, junto a um pequeno recipiente cheio de cal já umedecida, entrega um pouco a cada assistente numa pequenina pá, para que seja jogada sobre o corpo do defunto.

Fecha-se novamente o caixão, levando um dos parentes a chave do cadeado. Finalmente coloca-se o corpo no jazigo e os assistentes cedem o lugar aos pedreiros encarregados de fechar imediatamente, com tijolos e cimento, a sepultura que só é aberta no fim de um ano mais ou menos, para se retirar os ossos na presença de um membro da família, que os faz encerrar à chave numa outra pequena urna mais ou menos ornamentada em que se inscrevem os nomes e as qualidades do defunto e a idade em que morreu.

Esta nova urna é reunida a muitas outras numa sala anexa ao edifício e a esse fim destinada. E a urna de que a família só possui a chave, fica definitivamente em poder da irmandade.

Existem também, nas catacumbas, salas preparadas com compartimentos menores para o sepultamento dos filhos dos irmãos. Mas o espírito comercial já penetrou nesse campo de repouso fraterno e concede-se às famílias ricas, estranhas à confraria, o privilégio de alugar o jazigo mediante compromisso de retirar os ossos no fim de um ano. Entretanto, preferindo elas deixá-los, são os pequenos sarcófagos guardados com os dos confrades, abuso absolutamente contrário à primitiva lei da confraria. Esse abuso, no entanto muito contribui para o aumento do luxo na exposição anual dos sarcófagos, nos dias de finados, festa funerária em que o expansivo brasileiro mistura o amor filial à vaidade, a fim de atrair a curiosidade pública para o objeto de sua devoção.

Visita às Catacumbas nos Dias de Finados

Mausoléu do Convento de Santo Antônio
Mausoléu do Convento de Santo Antônio

Nesse dia solene de tristeza, toda a população do Rio de Janeiro se dirige para as estradas das diversas catacumbas, abertas, desde sete horas da manhã até o meio dia, à curiosidade dos visitantes, e particularmente para as de Santo AntônioSão Francisco de Paulo e do Carmo, mais elegantemente construídas. Mas somente às dez horas as irmandades respectivas aí vão cantar o ofício dos mortos, enquanto missas chãs de réquiem, que se sucedem, são oferecidas à devoção dos assistentes durante todo o tempo em que as portas permanecem abertas.

As primeiras exposições, modestas e naturalmente pouco concorridas, apresentaram apenas duas fileiras de pequenas urnas de madeira, de um pé de altura e dois de comprimento, pintadas de preto e nas quais se haviam inscrito em branco os nomes, qualidades, idade e data do falecimento do indivíduo cujos ossos aí se achavam encerrados. No entanto, a partir de 1816, já se viam pequenos sarcófagos de forma mais elegante e, desde então, surgiram verdadeiras obras-primas de marcenaria, cujas veias escolhidas com cuidado já bastavam para enfeitá-las e cujas inscrições se constituíam de caracteres pintados a ouro ou incrustados.

Entretanto, a partir de 1827, a influência das artes inspirou a esses operários, ainda sem teoria, o desejo de se distinguirem pelas formas novas de suas produções; e, entregues à fuga de sua imaginação, compuseram monstruosidades cuja extravagância e riqueza satisfaziam o amor-próprio dos herdeiros. Em 1830, principalmente, viram-se inúmeras espécies de urnas de madeira suportadas por três ou quatro pés bastante altos e de ferro, cujos desenhos complicados tornavam parecidos com pedaços de balcão. Outros suportes, ao contrário, de contornos mirrados, pareciam atestar a esterilidade do desenhista ou a economia de quem os encomendara.

É preciso confessar que tudo isso, pintado de fresco, ricamente dourado ou prateado, atrai o olhar e seduz efetivamente a multidão dos curiosos, em sua maioria admiradores de uma imitação crua e berrante de falso mármore sobre o qual se vê uma chapa oval de cobre, de fundo brunido cujo brilho apenas permite ler a inscrição. Em resumo, o estrangeiro imagina-se transportado para um vasto armazém cheio de móveis agrupados sobre estrados de diferentes tamanhos e enfeitados de tules ou galões de ouro e prata aplicados em tríplice fileira sobre fundo de veludo preto, carmesim, rosa ou azul-celeste: e tudo cercado por uma infinidade de círios acesos.

Junto do mais rico monumento vê-se um lacaio negro, de libré, cuidar de um suntuoso lustre suportado por elegantes candelabros de gosto moderno; outros são de um gosto mais antiquado; ao lado, um outro, mais modesto ainda, possui apenas candelabros de madeira dourada, tirados de uma capela particular, e guardados por um velho escravo simplesmente vestido, cujo respeitoso recolhimento atesta a sinceridade de sua tristeza.

Em meio à expressão muda de tantas recordações dolorosas, vi uma viúva, cercada de sua numerosa e jovem família, mandar abrir publicamente o caixão que continha os ossos de seu marido falecido há três anos e, depois de pegar o crânio, contemplá-lo atentamente durante alguns segundos recolocando-o no lugar, procurando entre os fragmentos do esqueleto uma das menores vértebras para encerrá-la cuidadosamente no lenço que levava à mão; apertando-o em seguida ao coração, retirou-se debulhada em lágrimas.

Mas, em geral, o aspecto dessas reuniões apresenta apenas, durante toda a manhã, uma multidão de mulheres de todas as idades e classes, rendendo homenagens a seus mortos elegantemente vestidas de luto, a fim de serem admiradas pelos vivos solícitos em contemplá-las de perto.

Sarcófagos

Os pequenos sarcófagos destinados à conservação dos ossos exumados no fim do ano, encontram-se aqui por ordem de data, de modo a mostrar o aperfeiçoamento observado de 1816 a 1831. Vê-se primeiramente a pequena urna de madeira fechada por um simples ferrolho. A seu lado já se depara o cofre, obra-prima de marcenaria, eclipsado, entretanto mais tarde pela forma elegante do pequeno sarcófago em imitação de mármore e coberto por uma mortalha, ideia fixa que orientou desde 1827 até 1830 todas as variedades de forma; neste último ano surgiu a inovação do suporte de ferro com ornatos dourados, de que dou aqui uma das mais felizes composições.

Nota

  1. A igreja do Carmo e a de São Francisco de Paulo. As catacumbas representadas neste desenho são as da igreja do Carmo. (N. do A.).

Fonte

Imagem destacada

Mapa - Convento e Igrejas do Carmo