Terrenos realengos de Irajá
I
Tratando da segunda sesmaria primitiva, disse eu, no final do primeiro artigo, que quando chegasse á época em que o Senado tratou de aforar algumas das terras realengas de Irajá, tornar-me hia a occupar dessa propriedade mais circumstanciadamente.
E’ fóra de toda a duvida, que d’esde remotissimos tempos a Camara tem exercitado actos de dominio sobre uma data de terras sitas na freguezia de Irajá junto ao rio Merity.
E’ tambem facto averiguado, que essas terras foram ao principio destinadas a uso público, e especialmente á pastagem e descanso dos gados, que de cima da serra desciam para o consumo da cidade; sendo que por esta razão tiveram, e tem ainda hoje, o nome de realengas.
E’ ainda certo, que pelo correr dos tempos se estabeleceram n’essas terras varias intrusões, contra as quaes se protestou e requereu inutilmente até fins do seculo passado, em que se resolveu que essas posses illegitimas fossem legitimadas por aforamentos regulares.
Tudo quanto fica dito póde ser provado exhuberantemente por documentos extrahidos de livros, e autos existentes no Archivo, e até de escripturas públicas.
Não me foi, porém possivel averiguar em virtude de que titulo, e porque modo o antigo Senado alcançou dominio sobre essas terras, por me faltarem os precisos esclarecimentos, que sem dúvida desappareceram no desastre de 1790.
Querem entretanto alguns, (e d’essa opinião foi a commissão de tombamento da primeira Camara que servio depois da nova Lei de 1828) que estando essas terras dentro dos limites das seis legoas concedidas pela segunda sesmaria de 1566, se houvesse d’ellas tomado posse por mercê d’aquelle titulo.
Querem outros, que a posse em questão tirasse sua origem de uma necessidade pública, qual a de se ter sempre nesses antigos tempos julgado indispensavel a existencia de grandes pastos nas proximidades da cidade, onde o gado, que vinha das Provincias centraes, podesse refazer-se do cansaço causado por longas e penosas viagens.
Inclino-me mais á segunda hypothese, pelas seguintes razões.
Primeiramente o abastecimento de carne á população da cidade do Rio de Janeiro mereceu sempre os maiores cuidados das differentes Camaras e Governos da antiga Capitania.
E, seja dito de passagem, assim devia ser; porque sua alçada não tinha os limites, nem os obstaculos que tem as Camaras municipaes.
Em segundo lugar se a posse dessas terras veio d’aquella sesmaria, qual a razão porque, salvo a do Campo-Grande de que me occuparei no artigo seguinte, não ha notícia de outras posses iguaes áquem ou além, para um ou outro lado d’ellas, que se possam considerar dentro dos limites d’essas 6 legoas?
E cumpre notar-se, que a circumstancia de serem as terras realengas de Irajá situadas junto de uma estrada geral, pela qual se comunicava, e ainda se communica a cidade com as Provincias centraes; e de serem além disso margeadas pelo grande rio de Merity, confirma-me na segunda opinião.
Como quer que seja, o certo é que a Illustrissima Camara possue uma importante data de terras na Freguezia de Irajá cuja posse lhe tem sido reconhecida, e cujo dominio lhe tem sido acceito em uma immensidade de titulos e documentos, cujas datas se contam por dous seculos.
Passarei a demonstral-o.
II
Em um dos livros, salvos do incendio, que servio para se trasladarem os provimentos de correições feitas no anno de 1660, encontra-se a paginas 32 o seguinte capitulo de correição feita pelo Ouvidor-Geral o Dr. Pedro de Mustre Portugal.
«Proveo mais que os chãos e terras que estiverem dados gratis sem fôro algum os officiaes da Camara lhe ponham rocio; e que o Campo de Irajá e o Campo Grande sejam inscriptos, como sempre o foram, sem embargo de que se haja dado a alguem parte d’elles, porquanto sendo bens do concelho se não podem dar a ninguem.»
Pelo provimento que acabo de transcrever ipis verbis se vê que já muito antes de 1660 a Camara exercitava dominio em certos terrenos de Irajá; bem como que já tambem n’essa época varias intrusões se davam n’elles, tanto que exigiram aquelle provimento.
Em uns autos que encontrei no Archivo [1] existe um termo feito aos 13 de Agosto de 1741 pelo escrivão da Camara, que então era Miguel Rangel de Souza Coutinho, e assignado pelo Reverendo Dr. Luiz da Silva Borges e Oliveira, proprietario do Engenho de N. S. da Graça, que confinava com as terras realengas de Irajá.
Consta esse termo de uma cessão e traspasse, expontaneamente feito [2] ao senado da Camara pelo referido Dr. Silva Borges, para uso público dos moradores d’esta cidade, e de seu reconcavo, de toda a acção, direito, posse, dominio e senhorio que ele podesse ter nas ditas terras, que confinavam com o seu Engenho; que eram as mesmas que seu avô, Lourenço da Silva Borges, tinha comprado em 1716 a D. Maria Tourinha e outros, e que por esse facto se achavam incorporados ao referido Engenho.
Em outros autos que tambem encontrei no Archivo [3] existe uma certidão passada pelo escrivão do Senado, Felippe Cordovil de Siqueira e Mello, na qual se lê, que em 13 de Agosto de 1782 José Furtado de Mendonça assignára termo, no livro de obrigações e fianças, de reconhecer ao Senado da Camara, d’aquella época em diante, como directo senhorio das terras do seu sitio denominado – Capão do Furtado – e antigamente sitio de Quifangombe, promettendo pagar o fôro que se lhe arbitrasse. [4]
Finalmente no segundo livro de vereações do Senado da Camara a fl. 144, encontra-se o Accórdão de 6 de Julho de 1793, pelo qual se mandou aforar em hasta pública uma porção de terrenos em Irajá, que se achavam devolutos, e que constavam de 315 braças de testada pela divisa do Engenho de N. S. da Graça, indo da cerca do Capão do Furtado para as margens do rio Merity.
E no livro da arrematações d’aquelle anno, pag. 163, 163 v, e 171 v, se vê que d’essas 315 braças – 265 foram arrematadas por Manoel da Costa Figueiredo, pelo fôro annual de 4:000; e as 50 restantes foram arrematadas por Antonio Martins Quaresma, pelo fôro de 1:000. Os titulos de aforamento que então se passaram encontram-se registrados no livro competente. [5]
Notas do Autor
- Autos de requerimento de sesmaria por parte de Custodio Xavier de Barros. Anno de 1815 fl 11.
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Com quanto n’este termo se diga que a sessão foi feita espontaneamente, todavia tal espontaneidade não existio. Tendo o Senado ido em vistoria a Irajá por causa de queixas e reclamações que a tal respeito lhe haviam sido feitas pelos moradores do lugar, reconheceo-se que taes terras faziam parte dos campos realengos, e não pertenciam ao Dr. Silva Borges, embora seu avô as tivesse comprado como allodiaes; porquanto a pessoa que as vendêo nada mais era do que um simples intruso.
Então o Dr. Silva Borges entendêo, que, para se furtar a um pleito em que não podia ter ganho de causa, o recurso era praticar um acto de generosidade, abrindo mão d’aquillo de que apenas era illegitimo detentor. - Autos em publica forma, extrahidos de outros de assignação de dez dias entre partes D. Anna Maria de Jesus e Gonçalo Cordeiro d’Oliveira.
- Em 1800 os proprietarios do Engenho de N. S. da Graça, que foram herdeiros de seu pai Antonio Martins de Brito, que tambem o fôra do Dr. Luiz da Silva Borges e Oliveira, tencionavam incorporar ao seu Engenho este sitio, em virtude de uma sentença que obtiveram contra um dos successores de José Furtado de Mendonça; e isto sem que o Senado fosse sabedor, ou tivesse sido chamado á autoria.
- O aforamento de Manoel da Costa Figueiredo passou a José Gomes da Silva, e deste a João Pinto de Miranda, que tirou carta de aforamento no livro 10º a fl. 183 v.
Fonte
- Lobo, Roberto Jorge Haddock (Haddock Lobo). Tombo das Terras Municipais: Que constituem parte do patrimônio da Ilustríssima Câmara Municipal da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Paula Brito, 1863. 231 p. (Impresso por deliberação da Ilustríssima Câmara Municipal de 30 de junho de 1860).
Mapa - Bairro de Irajá