Diligencias empregadas para se restaurar o Archivo
I
Se o incendio de que acabei de fazer uma ligeira historia houvesse tido lugar em tempos como os de hoje, com sentimento o digo, era mais que provavel que toda a propriedade da Camara se tivesse eclipsado.
Mas por felicidade, esse lamentavel successo deu-se nos tempos chamados da obscuridade, nos quaes entretanto o Senado da Camara era uma corporação distinta e digna de todos os respeitos.
Seus editaes e deliberações eram obedecidas pelo povo, e respeitadas pelos juizes, tribunaes e primeiras autoridades do Estado.
Seus empregados, qualquer que fosse a sua cathegoria, eram acatados no desempenho de seus deveres. Não se respondia ás suas intimações com o escarneo, com a injuria, e com o desprezo.
Conseguintemente todas as diligencias que o Senado empregou para restaurar o Archivo, e reconhecer a sua propriedade, produziram salutar effeito. Bem poucos, relativamente fallando, foram os foreiros refractarios ás ordens do Senado, e que deixaram de vir novamente registrar seus titulos de aforamento.
E se assim não fora, não teria eu lido ao meu dispor uma importante collecção de livros e documentos, mercê dos quaes, apesar da confusão e pouco methodo com que foram organisados, pude contudo chegar a este feliz resultado, á custa de muito trabalho e paciencia. Existem portanto provas documentaes e authenticas que destroem pela base a má fé dos falsos boatos, adrede propalados, para o fim de fazer acreditar aos incautos, que os principaes titulos da propriedade municipal, foram destruidos pelo incendio de 1790.
No proseguimento deste trabalho terei muitas vezes occasião de dar maior realce áquela proposição. Por agora limitar-me-hei a dar conta resumida das diligencias que se empregaram para a restauração do Archivo, recommendando com tudo ao leitor – que maiores minudencias quiser saber – o exame do documento n. 10, que se encontrará na segunda parte deste livro.
II
O primeiro acto do Senado da Camara – logo que se extinguio o incendio, e se pôde reconhecer a extensão dos prejuizos por elle causados – foi proceder a um auto de consummo, e inventario dos objectos salvados. Este procedimento teve lugar no proprio dia 20 de Julho de 1790.
No dia 24 do mesmo mez, reuniu-se o Senado da Camara em casa do Dr. Ouvidor e Corregedor da Comarca; e celebrando ahi a sua primeira sessão depois d’aquelle successo, tomou varias providencias, dentre as quaes foram principaes as seguintes:
1.ª Sollicitou-se ordem do Vice-Rei, para que se podesse tirar cópia na Secretaria d’Estado, e na da Junta e Provedoria da Real Fazenda, de todas as Provisoes e Ordens Régias, que dissessem respeito ao Senado.
2.ª Sollicitou-se igual ordem do Corregedor da Comarca, para que todas as Camaras se prestassem ao mesmo fim.
3.ª Resolveu-se a publicação de Editaes, para que em prazo fatal de 30 dias, todos os foreiros viessem ao Senado apresentar seus titulos de aforamento, a fim de serem novamente registrados. E porque findos aquelles 30 dias uma grande parte dos ditos foreiros não tinha ainda obedecido áquelle edital, de novo se publicou segundo, prorogando por mais 30 dias aquelle primeiro prazo.
O modo imperativo porque se acham concebidos estes editaes é digno de reparo: chamo sobre elles a attenção do leitor, que os encontrará fazendo parte do documento acima citado.
4.ª Nomeou-se ao Reverendo Dr. José Joaquim de Azeredo Coutinho procurador do Senado perante o Governo de Lisboa, para o fim de requerer a S. M. tudo quanto fosse de proveito ao mesmo Senado; e designadamente para o fim de sollicitar uma carta régia, que lhe confirmasse não só as sesmarias concedidas em 1566 e 1667, mas ainda todas as graças e privilegios de que até ahi gozára.
Nesta mesma occasião escreveu-se tambem ao Dezembargador do Paço, e procurador da Corôa, João Pereira Ramos, para que fosse servido patrocinar as diligencias que aquelle referido procurador houvesse de empregar; bem como facilitar-lhe, para a renovação do Archivo, a extracção dos documentos necessarios que existissem na Torre do Tombo.
Muitas outras medidas foram tomadas d’ahi em diante tendentes a regular a arrecadação dos fôros, e a acautellar o patrimonio municipal. Entre todas tornam-se dignas de menção as que vou enumerar.
Resolveo-se na vereação de 27 de Novembro de 1790 que fossem embargadas todas as edificações, que os arrendatarios da enphiteuta D. Clara de Menezes, successora de Manoel Cazado Vianna, estavam começando em parte do antigo – Campo de S. Domingos – nas terras desmembradas da chacara denominada do – Casado –; visto ter-se expedido precatoria de citação contra aquella referida D. Clara, propondo-lhe a competente acção de reivindicação das referidas terras.
Resolveo-se na vereação de 14 de Julho de 1792 que se creasse um livro de contas correntes com todos os foreiros do Senado, em cada lauda do qual se contivesse o nome de um só foreiro, o fôro que elle pagasse, e o titulo primordial ou escriptura em virtude da qual possuia a propriedade enphiteutica; devendo continuar-se na mesma lauda os nomes das pessoas para cujo dominio util passasse posteriormente a mesma propriedade.
Resolveo-se na vereação de 4 de Junho de 1794 que se sollicitasse ordem do Vice-Rei, para que os capitães de ordenança procedessem a um arrolamento de todos os predios, chacaras e terrenos de seus districtos, com declaração de serem ou não foreiros, e qual o senhorio a quem pagavam fôro.
Resolveo-se na vereação de 8 de Maio de 1799 que fossem intimados os herdeiros de Antonio da Rocha Machado, para apresentarem perante o Senado os titulos pelos quaes estavam de posse da grande chacara, cujos limites se estendiam desde o Campo de Sant’Ana até ao mangue.
Resolveo-se na vereação de 28 de Setembro de 1805 que se representasse ao Vice-Rei contra a concessão da sesmaria, por elle dada dias antes a Ildefonso Caldeira, das terras realengas do Campo Grande.
Resolveo-se nas vereações de 22 e 29 de Abril de 1807 que fossem intimados os arrendatarios dos herdeiros do enphiteuta Antonio da Rocha Machado para que não pagassem mais arrendamentos aos ditos herdeiros, em quanto elles não viessem satisfazer a exigencia do Senado feita em 1799; e bem assim resolveo-se na vereação de 3 de Junho do mesmo anno, que se intentasse contra os mesmos herdeiros, a competente acção de comisso.
Resolveo-se na vereação de 9 de Setembro de 1807, que se procedesse a um exame e aviventação dos marcos levantados nas terras do Senado na medição a que se procedeu em 1755; e na vereação de 26 do mesmo mez e anno resolveo se mais, que essa aviventação fosse feita segundo os rumos e prescripções seguidos n’aquella referida medição, lavrando-se auto de toda essa diligencia, e organizando-se um novo mappa.
Resolveo-se na vereação de 23 de Setembro de 1807, que se caçasse o aforamento do terreno da Rua da Guarda Velha, do lado do Morro de Sant’Antonio, passado em tres vidas no dia 15 de Setembro de 1787 a Antonio Gomes, de quem era quarta successora a atual posseira D. Anna de Lemos Mascarenhas, sobrinha e herdeira do terceiro e ultimo posseiro legal, o Bispo da Diocese D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castello Branco.
Finalmente durante este periodo de 17 annos de que acabo de tratar resolveo-se em diferentes vereações o aforamento em praça de varios terrenos baldios ou devolutos, que de facto foram aforados; a saber:
Um terreno na rua da Ajuda esquina do Becco do Propposito, que foi arrematado por Francisco da Rocha Mendes em 1791.
Um dito na rua da Conceição esquina da rua da Alfândega, que foi arrematado por Antonio Joaquim de Velasco em 1791.
Varios ditos na praça da Sé Nova (hoje Largo de São Francisco de Paula) que foram arrematados por Thomaz de Aquino e outros em 1796.
Um dito na estrada das Larangeiras, que foi arrematado por Francisco de Araujo Silva em 1799.
Um dito na rua do Bom Jesus (hoje rua do Sabão) a sahir ao Campo, por detrás da Igreja de São Gonçalo Garcia, que foi arrematado por João da Costa Lima em 1801.
Um dito fazendo tres frentes para o Largo da Sé (hoje do Rosario) ruas da Vala, e do Hospício, que foi arrematado por João de Souza Motta em 1804.
Um dito na Ladeira do Castello (hoje do Seminário) que foi arrematado por Francisco Soares da Fonseca em 1806.
Além dos aforamentos que ficam numerados, aforaram-se tambem os terrenos realengos de Irajá.
Fonte
- Lobo, Roberto Jorge Haddock (Haddock Lobo). Tombo das Terras Municipais: Que constituem parte do patrimônio da Ilustríssima Câmara Municipal da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Paula Brito, 1863. 231 p. (Impresso por deliberação da Ilustríssima Câmara Municipal de 30 de junho de 1860).