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Da sesmaria dos sobejos

I

Durante os cem annos, que decorreram desde a concessão das duas primitivas sesmarias até á primeira medição, que se fez em 1667, foram as diferentes Camaras, que serviram n’esse periodo, arrendando e afforando diferentes prasos de terra dentro dos limites em que se julgava estarem ellas contidas.

Todo o terreno devoluto e aproveitavel era concedido a qualquer que o pedia a troco de modicas pensões; sem que para isso houvesse o mais superficial exame, ou o menor escrupulo.

As unicas regras que presidiam a semelhantes concessões cifravam-se apenas no arbitrio dos que davam, e no valimento e poderío dos que pediam.

Não se attendia á localidade, e quantidade do terreno para se deduzir o valor da pensão que se devia pagar. Não se descrevia nos titulos, que se conferiam, limites ou confrontações claras e precisas, que podessem evitar os repetidos pleitos que a cada passo se suscitavam entre os presentes, e servir de esclarecimento aos vindouros.

Foi pelo concurso de todas estas causas, que ficam assignaladas, que hoje vemos dentro do proprio coração da cidade, e seus mais importantes arrabaldes, immensas porções de terreno aforadas a corporações religiosas, mediante um insignificante fôro, que nem assim mesmo é pago. [1]

De ordinario eram os altos funccionarios da Capitania, os ex-officiaes da Camara, seus adherentes ou protegidos, os que tinham largo quinhão n’esta partilha amigavel. [2]

Este pessimo systhema de administração devia necessariamente produzir, e de facto produzio, muito máos resultados.

II

Quando em 1667 se começou o processo da primeira medição, vio-se logo ao correr do rumo da testada – desde a praia do Flamengo até o Morro da Conceição – que muitos terrenos já foreiros á Camara, e situados entre aquelle morro e o mar, ficavam fóra da medição.

Mas, por excepção de regra, os officiaes da Camara que serviam n’esse anno eram conscienciosos e previdentes: – seguiam o exemplo do integerrimo magistrado seu presidente.

Por isso tratou-se logo de inutilisar as pretensões exageradas, que immediatamente se teriam de levantar por parte dos foreiros, cujos terrenos ficassem para fóra do referido rumo.

Requereo-se desde logo ao Governador a concessão de uma nova sesmaria, que abrangesse todas as terras que sobejassem do rumo da medição, que se estava correndo, para o lado da cidade e mar: visto estar já a Camara de posse d’ellas, ou por aforamentos muito antigos, ou como simplesmente devolutos.

O Governador, que então era D. Pedro Mascarenhas, reconhecendo a justiça da pretensão da Camara, concedeo aos 26 de Maio de 1667 a sesmaria requerida, que se ficou denominando – Sesmaria dos sobejos – a qual posteriormente foi confirmada em 8 de Janeiro de 1794, pela Carta Regia do Principe Regente em nome da Snra. D. Maria I. Documento appenso sob n. 8.

Concedida a sesmaria, de que me estou occupando, nunca mais se procedeu á sua medição, ou demarcação; por se julgar desnecessaria essa deligencia.

A razão, que mais actuou para esse procedimento, foi que estando os limites, ou confrontações de cada terreno, já designados nos títulos de aforamento, que se haviam passado aos respectivos foreiros, seria aquella segunda verificação uma verdadeira duplicata.

E’ força, porem, confessar que um tal presuposto foi mais um erro, cujas consequencias devemos hoje lamentar; porquanto é por mercê delle, que, depois do fatal incendio de 1790, (de que me vou occupar no capitulo seguinte) uma boa parte desta sesmaria se tem conservado até hoje livre do dominio directo da Illustrissima Camara, por se terem queimado os livros em que se achavam registradas as cartas de aforamento concedidas aos diversos foreiros n’ella situados. [3]

Faltando portanto esta prova real carece-se de outra que a substitua, e possa servir de base a um processo de reinvindicação.

Esta prova só se póde obter á custa de muito trabalho e paciencia, fazendo-se um minucioso exame em todos os cartorios de notas d’esta côrte, em cujos livros – anteriores á data d’aquelle incendio – se encontrarão muitas escripturas pelas quaes se devem reconhecer foreiros á Camara terrenos que hoje se dizem livres ou allodiaes. [4]

Entretanto alguns esclarecimentos apontarei no artigo que se segue, com os quaes, no meu modo de ver, forneço certamente documentos irrefragaveis, por onde se póde provar que quasi todos os terrenos comprehendidos entre o rumo da testada da sesmaria primitiva e a rua da Valla são foreiros á Camara: especialmente os que ficam da rua do Ouvidor até á de S. Pedro.

III

Depois da segunda invasão que os Francezes fizeram n’esta cidade em 12 de setembro de 1711, veio de Lisboa o engenheiro João Macé encarregado de levantar fortificações, que de futuro podessem deffender a cidade contra qualquer outra semelhante invasão.

No desempenho d’esta commissão entendeo aquelle engenheiro, que a fortificação mais urgente e necessaria seria a construcção de uma muralha, que fechasse a cidade pelo interior; tornando-a defensavel por este lado, como já o era pelo lado do mar.

Por este plano a referida muralha devia unir entre si os tres Morros da Conceição, de Sant’Antonio, e Castello, de modo que os Morros ficassem servindo de baluartes, e a muralha de cortina. Ainda mais: pelo lado externo da muralha, isto é; pelo lado do antigo campo da cidade, nenhuma edificação se deveria continuar a permitir senão a grande distancia d’ella, devendo mesmo ser demolidas todas aquellas que já existissem fóra de taes circumstancias. [5] Por outra: – para fóra da muralha, e em toda a sua extensão – deveria formar-se um grande campo desocupado.

Approvada a ídéa do brigadeiro João Macé, deu-se principio á referida fortificação, a que desde logo se ficou chamando – muro da cidade – começando-se a obra junto ao Morro da Conceição, no lugar em que hoje se acha a casa do Jury, antigamente Aljube.

Não posso dizer precisamente qual a direcção que este muro seguio entre os pontos designados; a extensão que chegou a ser feita; e a altura a que se elevou; por isso que nem vestígios hoje se encontram, nem pelos documentos que compulsei pude chegar a tal precisão.

Todavia encontrei quanto foi suficiente para poder dizer, que a direcção era quasi a mesma que a do antigo fosso, hoje valla da cidade; que a extensão feita não excedeo os limites do que hoje se chama Largo do Rosario; e que a altura maxima em alguns lugares não passou de uma braça.

Como quer que seja, o certo é que já em 1726 esta obra se achava parada, e que depois nunca mais se lhe deu andamento, não só por ter sido condemnada como inefficaz, para o fim que se teve em vista, mas ainda porque o Governador, que então era Luiz Vahia Monteiro, havia proposto ao Governo de Lisboa uma nova idéa de fortificação e defeza da cidade, em substituição daquelle dispendioso muro. [6]

A idéa substitutiva consistia em se abrir um canal desde o mar da Prainha até o mar de N. S. da Ajuda, na direcção que hoje apresenta a grande valla da cidade, [7] em cuja obra se devia aproveitar toda a pedra que resultasse da demolição da porção do muro já feito.

IV

Neste estado de cousas e de incerteza, porque nem se continuava o muro, nem se approvava a idéa do canal, vio-se a Camara compellida a representar contra a prohibição vigente de se não edificar nas proximidades d’aquelle muro.

Allegava a Camara, que correndo o muro por terreno de sua propriedade, aquella prohibição lhe impossibilitava não só o conceder novos aforamentos, como o permittir licença para se edificar nos que já haviam sido concedidos antes de ter principio o dito muro: e isto quando era mais que certo, que tal obra se não continuaria.

Que d’ahi lhe resultava grave prejuízo aos seus cofres, tanto por ficar privada de augmentar a renda de fôros, unica verba importante de sua receita, como de perceber os que já se achavam creados; visto como, negando-se licença para se edificar, negavam-se os foreiros ao pagamento das pensões.

Que finalmente além de tudo o que fica dito crescia a população da cidade, cujos limites circumscriptos pelo referido muro eram por demais acanhados e estreitos, dando-se por conseguinte extrema necessidade de serem alargados: e como esse alargamento só podia ser feito para fóra do projectado muro, devia permittir-se que se edificasse á vontade.

A estas allegações de conveniencia pública oppoz-se por modo tal, e tão desabrido, o Governador Luiz Vahia Monteiro, que um sério conflicto se suscitou entre elle e a Camara, do qual veio a originar-se a notavel correspondencia, e promulgação de Cartas Régias, que constituem o documento n. 9, constante dos appensos da segunda parte deste livro.

Pela sua leitura ver-se-ha a exactidão do que tenho avançado este respeito; e sobre tudo se terá uma prova cabal de que tanto o Governo de Lisboa, como o da Capitania, jámais desconhecerão o dominio directo da Camara aos terrenos que ficam além da rua da Valla, e que antigamente formavam parte do chamado campo da Cidade, ou campo do Rosario depois de 1705 em diante.

Pelo contrario, em todos esses notaveis documento se reconheceo sempre que esses terrenos eram foreiros á Camara, por fazerem parte de suas sesmarias, especialmente da intitulada – dos sobejos.

Notas do Autor

  1. Refiro-me aos terrenos da Ordem 3.ª do Carmo, dos religiosos de S. Bento, e da Ordem 3.ª da Penitencia. Os primeiros sitos entre a rua de S. Jorge e o Campo; os segundos sitos a Botafogo; os terceiros sitos á Prainha e Morro da Conceição.
  2. Sirva de exemplo os dous grandes aforamentos concedidos ao Secretario do governo Antonio da Rocha Machado, e ao guarda-mór Pedro Dias Paes Leme. Em um dos seguintes volumes tratarei de levar á maior evidencia a verdade d’esta proposição.
  3. Os terrenos, a que aqui principalmente me refiro, são os que se acham encravados nas quadras comprehendidas entre as ruas da Valla e do Fogo; S. Pedro e Ouvidor; – que antigamente constituiram o chamado campo do Rozario, de que dei breve noticia no final da nota de fl. 10. Cumpre, porém, observar que nestas mesmas quadras já se encontram muitos terrenos reconhecidos como foreiros á Camara, em virtude de titulos authenticos: uns porque seus donos vieram espontaneamente registral-os logo depois do incendio; outros por deligencias e esforços empregados por mim, e pelo digno actual contador da lllustrissima Camara, um dos maiores auxiliares que tenho tido n’este trabalho.
  4. Como os Tabelliães d’aquelle tempo eram assás escrupulosos nenhuma escriptura de venda de predio ou terreno era lançada em notas, sem que o vendedor exhibisse as escripturas antigas, verdadeiros titulos para uma perfeita transmissão de propriedade. Por isso nunca escapava de ser averbada a circumstancia essencial da natureza do terreno. Hoje succede o contrário. Para que se possa lavrar uma escriptura basta apresentar uma simples carta de arrematação, ou um formal de partilha, titulos que, como se sabe, não declaram muitas vezes aquella circumstancia, ou que se a declaram é falsa e erronea por culpa ou má vontade dos avaliadores.
    Além disso estava em pleno vigor um provimento de correição feita no anno de 1659, pelo qual os Tabelliães eram obrigados a não lavrarem escriptura de venda de bens foreiros á Camara sem que lhes constasse a licença d’ella, e de como se havia pago o laudemio.
  5. As proprias dimensões dadas pela Camara em 1705, ao chamado campo do Rozario, eram insuficientes quando comparadas a deste plano.
  6. Diz a carta Régia de 27 de Novembro de 1728, que este muro, achando-se então apenas em meio, já estava custando aos cofres públicos cerca de cem mil cruzados.
  7. E’ de lastimar que este projecto deixasse de ser levado á execução. Se assim tivesse acontecido estava hoje resolvida a grande questão do esgoto da cidade, cousa que é extremamente difficil pela fraca declividade que existe entre o campo e o mar. Além d’esta grande utilidade pública, considere-se ainda que facilidade e commodidade não prestaria á cidade um canal perfeitamente navegavel, que a ficasse atravessando desde o Largo da Ajuda até o Largo da Prainha!

Fonte

  • Lobo, Roberto Jorge Haddock (Haddock Lobo). Tombo das Terras Municipais: Que constituem parte do patrimônio da Ilustríssima Câmara Municipal da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Paula Brito, 1863. 231 p. (Impresso por deliberação da Ilustríssima Câmara Municipal de 30 de junho de 1860).