/ Tombo das … / Aos Municipes …

Aos Municipes do Rio de Janeiro

Tendo conseguido a honra de occupar uma cadeira na Camara Municipal da Capital do Imperio – em consequencia dos suffragios que obtive na eleição a que se procedeu no anno de 1852 – entendi que, para corresponder a tão subida prova de confiança, me corria o dever de satisfazer alguma das grandes necessidades publicas, que, da maneira a mais clara e evidente, haviam sido postas em relevo no luminoso relatorio offerecido aos novos eleitos pelo presidente da transacta Camara, o Exm. Snr. Senador Conselheiro Dr. Candido Borges Monteiro.

O mais superficial estudo me fez logo conhecer, que a tarefa, que desejava assumir sobre meus debeis hombros, era por demais ardua e difficil, se tivesse sómente de encaral-a pelo lado de – melhoramentos materiaes.

Os que se reclamavam como os mais urgentes, ainda assim, importavam em sommas fabulosas – ao passo que os recursos, para lhes fazer face, eram por demais mesquinhos.

Basta dizer-se que a receita orçada para o anno de 1853 elevava-se apenas á quantia de 333:544$000; da qual cerca de 113:626$ 550 deviam ser rigorosamente applicados ao pagamento de pessoal, divida passiva, juros e amortisação dos emprestimos contrahidos para a construcção do novo matadouro. Restavam por tanto 219:917$450, pouco mais ou menos, para serem empregado na consecução de melhoramentos materiaes de todo o Municipio Neutro, que já abrangia dezaseis Freguezias, com uma população disseminada de 250 mil almas.

Diante deste invencivel obstaculo não havia vontade nem intelligencia, por mais robusta que fosse, que deixasse de naufragar no mar das legitimas exigencias, que surgiam de todos os angulos de tão extenso Municipio.

Conseguintemente: o que lograria eu n’estas circumstancias, se me limitasse tão somente á esteril prática de apresentar uma ou outra proposta, mais ou menos bem meditada – mais ou menos bem lançada – para vel-a depois eternamente addiada na pasta da commissão do orçamento, á mingoa de recursos para sua execução?

Lograria, quando muito, demonstrar mais uma vez a justeza da seguinte sentença :

Nisi utile quod facimus stulta est gloria.

Convencido d’esta verdade appliquei então todo meu zelo á satisfação da necessidade, que primeira, e mais real, se me afigurou – o augmento das rendas municipaes – embora não viesse elle a realizar-se nos tempos da administração da Camara em que eu servia.

Se o movel de meus passos tivesse unicamente por fanal o egoísmo – outro teria sido o meu procedimento. Em vez de augmentar e proporcionar recursos aos meus successores, habilitando-os de melhor modo a satisfazer seus encargos, eu teria dado de mão a tal proposito, legando-lhes uma situação por demais amesquinhada em relação á altura da missão que teriam de desempenhar.

Mas sendo muito mais nobre o fim a que me propuz – quando ambicionei a honra de tomar parte nas deliberações de uma corporação tão rica de tradicções gloriosas – dei de rosto áquelle fatal principio da época, e envidei os maiores esforços para conseguir o fim que almejava.

E pede a justiça que eu n’esta occasião declare – que fui sempre muito auxiliado por todos os honrados cidadãos que comigo serviram n’esse quatriennio.

Effectivamente com a serie de medidas fiscaes, que começaram a ser adoptadas na arrecadação dos diversos impostos, realisou-se um grande accrescimo em quasi todas as verbas do orçamento da receita.

As verbas de foros e laudemios dos diversos terrenos, que constituem o grande patrimonio municipal, eram por assim dizer as unicas em que não se dava o mesmo accrescimo.

Semelhante anomalia, ostentada todos os dias espantosamente pela multiplicada divisão e subdivisão da propriedade rustica e urbana assente sobre tão extenso sólo, revelava a existencia de algum grande vicio na arrecadação d’essas importantes verbas.

A pag. 12 do notavel relatorio, a que já alludi, se haviam consignado os seguintes periodos relativamente ao assumpto.

      « Devo declarar-vos que, como já disse, a arrecadação das rendas
« municipaes não é feita como convém que o fosse: o recebimento
« dos fóros dos terrenos da Camara se acha consideravelmente atrasado. »

      « O Tit. 39, livro 4.° da ordenação marca a pena de commisso
« para aquelles que por tres annos tenham deixado de pagar o fôro;
« porém o que é verdade é que semelhante disposição se não tem
« posto em vigor, e que a maior parte dos que possuem terrenos da
« Camara estão em divida para com ela »

      « E’ difícil, senão impossivel, que a contadoria possa de per si esta-
« belecer a este respeito uma escripturação conveniente, e que assim
« se possa proceder á necessaria cobrança; porque tendo muitos foreiros
« vendido os terrenos que possuiam, e tendo eles passado a tres, qua-
« tro e mais proprietarios, é hoje difficilimo saber-se a quem per-
« tencem.

      « A Camara representou ao Corpo Legislativo a necessidade de uma
« disposição que prohibisse aos tabelliães passar escripturas de compra de
« taes terrenos, sem que os proprietarios se mostrassem quites com o cofre
« municipal: porém não me consta que essa representação fosse de-
« ferida.

      « Em quanto a Camara não tratar de avivar os rumos das sesma-
« rias que lhe pertencem, de fazer averiguar os titulos de todos os
« proprietarios que n’ella se acharem comprehendidos, de estabelecer
« uma escripturação conveniente, de impôr aos remissos uma multa
« apropriada, e de nomear um cobrador que tenha immediato interesse
« na arrecadação, é meu parecer que nada se poderá obter, e que
« entretanto o objecto é digno da maior sollicitude. »

Socorrido destes esclarecimentos tratei de averiguar por todos os meios ao meu alcance d’onde provinha o mal; e não me foi preciso despender grande trabalho para reconhecer desde logo, que uma das principaes causas era não só o estado de confusão em que se achavam os titulos e mais documentos existentes no archivo, senão tambem a pouca clareza e defeituoso methodo com que desde 1790 havia sido feito o arrolamento dos foreiros, e o registro das cartas de aforamento.

Scientificados os meus illustres collegas do estado pouco lisongeiro em que se achava o inventario da propriedade da Illustrissima Camara – não tanto pela exposição dos factos, que levei ao seu conhecimento, como por propria sciencia que diariamente adquiriam, em vista das multiplicadas questões que se agitavam por parte dos interessados – assentaram, que, para se poder satisfazer ao preceito imposto pelo art. 51 da lei do 1° de Outubro de 1828, era de absoluta necessidade organisar-se – o tombo da propriedade municipal – cabendo-me a honra de ser encarregado da confecção de tão momentoso trabalho em fins do anno de 1854.

Meu primeiro cuidado foi conhecer os limites da propriedade, que tinha de inventariar, e quaes os legitimos titulos em que ella se firmava. Em seguida segreguei todos os livros e documentos, que encontrei no Archivo com referencia á materia; e depois de os ter lido, e coordenado convenientemente, fui acclarando e descriminando, segundo as exigencias do momento, todos os pontos duvidosos em relação ás diferentes quadras, ou grandes aforamentos anteriores á promulgação do Alvará de 10 de Abril de 1821.

Ninguem – a não serem os poucos que me ajudaram, ou os que presenciaram – póde fazer idéa do trabalho e paciencia, que tive de empregar por tempo immenso para ordenar aquelle cahos, chamado Archivo; – e sobretudo para decifrar centenas de documentos, com datas de cem e duzentos annos, antiquadamente redigidos, de letra inintelligivel e quasi apagada, e em muitas partes já destruida pela traça e pelo cupim.

Por isso, nem sempre taes documentos me orientavam sufficientemente no tocante á divisão e subdivisão, que aquelles grandes todos tinham sofrido pelo correr de annos. Tinha portanto de recorrer a outros meios de investigação.

Fui á Recebedoria do Municipio, e ahi estrahindo copias dos lançamentos annuaes, para o imposto da decima urbana, n’ellas encontrei tudo quanto desejava saber, relativamente ao verdadeiro estado d’aquella referida divisão e subdivisão.

Fui aos cartorios dos quatro Tabelliães desta Côrte, e ahi compulsando os livros antigos de escripturas encontrei muitos dos documentos que me faltavam, ou que se achavam inutilisados.

Finalmente, armado de todos estes esclarecimentos, fui eu proprio a todos os lugares, onde aquella divisibilidade de terrenos offerecia maior confusão; e ahi conclui as ultimas averiguações, procedendo muitas vezes á medição das testadas para melhor assignalar as confrontações.

Se as primeiras deligencias me fatigaram o espirito, e me levaram quasi ao desanimo, as ultimas me extenuaram o corpo na laboriosa tarefa de percorrer os nossos extensos arrabaldes, taes como os de S. Diogo, Catumby, Rio Comprido, Santa Thereza, Larangeiras, Cosme-Velho, Cattete, Botafogo, S. Clemente, Copa-Cabana, e Lagoa até além da Gavia.

Mas venci – porque o capricho e a tenacidade me deram força de vontade para superar todos aquelles incommodos.

E – seja dito de passagem – não se pense que, com a exposição que acabo de traçar vim fazer praça de taes sacrificios com o fim de uma vã ostentação.

Não: – o fim que tive em vista com semelhante narração foi o de dar uma ligeira noticia do modo e systema que empreguei, para poder authenticar o trabalho que fiz, e do qual, já em fins do anno de 1857, foi publicada uma parte em quatro folhetos, cuja continuação suspendi pelas razões que passo a expôr.

Publicado o ultimo d’aquelles folhetos tive immediatamente uma decepção. Convenci-me de haver commettido uma falta, deixando de fazer preceder áquelles trabalhos a publicação dos titulos e mais documentos, que tinham de comprovar a propriedade da Illustrissima Camara.

A incredulidade de uns, a má fé de outros, a ignorancia de muitos poz-me ao corrente, e fóra de toda a duvida, que era essa a primeira senão a principal necessidade a que eu devia attender.

Houve até homens verdadeiramente illustrados, mas incredulos pela voz do interesse, que se hia ferir de frente, que chegaram a duvidar de que a Illustrissima Camara possuisse em seu Archivo documentos irrefragaveis, e comprobatorios do direito que lhe assiste para a reivindicação de sua propriedade.

A historia do celebre incendio, que em 1790 reduzio a cinzas quase todo o Archivo do antigo Senado – passando por tradicção de pais a filhos, e destes a netos – correo desfigurada e inverosímil de bocca em bocca, protestando contra a authenticidade dos folhetos que se hião publicando.

Aftirmava-se que a Illustrissima Camara não possuía o – Tombo ou Processo da medição de sua primitiva sesmaria – porque havia sido queimado por occasião d’aquelle referido incendio; sendo que por esta razão impossivel era hoje o poder extremar-se com certeza os verdadeiros limites de sua propriedade.

Entendi portanto, que antes de tudo devia destruir esta falsa allegação: e por modo tal, que não fosse licito a alguem duvidar por mais tempo da legitimidade dos titulos em que a Illustrissima Camara se basea para dizer que este ou aquelle terreno lhe é foreiro – que esta ou aquella propriedade está d’entro dos limites das suas antiquissimas sesmarias.

Entendendo mais que a publicação desses titulos e documentos, embora chronologicamente feita, havia ainda de suscitar duvidas no espirito dos mais incrédulos, ou pouco lidos nestas materias, quando por ventura viesse á luz desacompanhada de commentarios que os explicasse satisfactoriamente, julguei tambem conveniente additar-lhe um succinto historico com algumas annotações, para que de melhor modo se orientasse o leitor a respeito de varios pontos e successos, que n’ella se hão de encontrar relatados, e que por desconhecidos escapam á apreciação do presente.

Tal é a materia que serve de assumpto exclusivo a este primeiro volume.

No seguinte, ou seguintes que se hão-de publicar até completo acabamento do trabalho, continuarei a matéria que encetei nos folhetos a que já me referi, e cuja publicação foi interrompida pelas causas acima assignaladas.

Por ultimo duas palavras ao leitor imparcial.

Quem pretender encontrar primores d’estylo neste livro não perca o seu tempo em o ler. N’este trabalho – que nada mais é do que um modesto documento, ao mesmo tempo de gratidão e de patriotismo, mais eficaz do que todas as promessas estereis, com que alguns costumam saldar dividas de uma e outra ordem – não ha pretenções litterarias. Ha apenas verdade nos factos narrados, como authenticidade nos documentos que os comprovam.

Por uma e outra cousa estou prompto a responder a todos os criticos que mostrarem senso commum e cortezia.

Fonte

  • Lobo, Roberto Jorge Haddock (Haddock Lobo). Tombo das Terras Municipais: Que constituem parte do patrimônio da Ilustríssima Câmara Municipal da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Paula Brito, 1863. 231 p. (Impresso por deliberação da Ilustríssima Câmara Municipal de 30 de junho de 1860).