São Gonçalo Garcia e São Jorge, por Augusto Maurício

Na Rua da Alfândega, esquina da Praça da República, está situada a Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge. Esse templo foi fundado por Provisão concedida em dezembro de 1758, em terreno doado pelo Cônego Antônio Lopes Xavier, terreno esse que media 5 braças de frente por 18 de fundos, ao qual, em 1759, mais 3 braças foram aduzidas.
A esse tempo a igreja era apenas dedicada a São Gonçalo Garcia, porquanto São Jorge tinha o seu templo próprio na rua do seu nome (atual Gonçalves Ledo) esquina da Rua da Lampadosa (hoje Luís de Camões).
Em 1850, o santuário do Santo guerreiro, de construção frágil, estava a cair; faltavam à Irmandade os recursos necessários à sua reedificação, e nem mesmo os havia para que nele se tentassem os menores reparos. Dessa forma, o culto a São Jorge não podia ser prestado com a devida decência, e, para que se perdesse o menos possível, foi resolvido entre os irmãos socorrerem-se da igreja de São Gonçalo Garcia, para guarda da imagem do seu patrono.
Ao que parece – pois tudo assim o indica, deram-se bem os filhos de São Jorge e os de São Gonçalo Garcia. E a harmonia que entre eles reinava, a comunhão de ideias e a afinidade que logo se patenteou, foram tão firmes, que em 1854, fizeram junção das duas agremiações, tornando-a uma só instituição, que tomou o título de “Venerável Confraria dos Gloriosos Mártires São Gonçalo Garcia e São Jorge”. O requerimento nesse sentido dirigido pelo Provedor Antônio Timóteo da Costa e demais membros da Irmandade de São Jorge ao Bispo Dom Manoel do Monte Rodrigues de Araújo, Conde de Irajá, teve logo o mais amplo deferimento em 19 de junho do mesmo ano.
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Dias depois realizava-se a solenidade da trasladação da imagem do santo-cavaleiro para a igreja do então Campo de Santa Ana, ato que foi revestido da maior pompa, registrando-se grande acompanhamento de devotos e figuras da maior representação. E na capela-mor do templo, à esquerda da boca do trono, foi colocada a estátua de São Jorge; à direita ficou São Gonçalo Garcia, e no centro, em seu nicho, Nossa Senhora da Conceição – padroeira das duas confrarias que então se juntavam, e ao alto o Crucificado.
Essa foi a disposição que tomou o altar-mor na época da fusão, e até hoje, assim se conserva.
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A festa em honra de São Jorge é tradicional no Rio de Janeiro. No dia 23 de abril de cada ano, grandes multidões de devotos se comprimem dentro do templo, e nas suas imediações, e torna-se necessária até a intervenção da polícia para manter a ordem e obrigar os fiéis a se colocarem em fila para passar diante do altar do grande guerreiro. É um acontecimento da maior relevância, em que tomam parte todas as classes sociais, da mais elevada a mais humilde.
Além da imagem que se encontra no altar-mor, há uma outra equestre, de tamanho maior, que atualmente está exposta numa capela especialmente construída há dois anos, à esquerda do corpo da igreja, com comunicação interna pela nave e porta de saída independente para a Praça da República. É um recinto amplo, revestido de mármore até a metade das paredes, nas quais, em retábulos, há pinturas evocando algumas passagens da vida do orago.
Antigamente, todos os anos, era organizada uma procissão no dia de Corpus Christi. Esse cortejo religioso realizou-se ininterruptamente até o ano de 1869, quando foi suspenso.
Naquele tempo a imagem grande só aparecia em público na referida procissão, sendo depois dessa data guardada em dependência da igreja, em um saco especial.
O cavalo branco em que montava a imagem era fornecido pela fazenda imperial, e apenas servia ao santo. Durante todo o ano permanecia em uma cocheira no Largo de São Domingos onde tinha o bucéfalo vida regalada, cercado de cuidados, boa alimentação e ótimo trato. No dia da procissão apresentava-se garboso, com a cauda e as crinas enfeitadas de flores e fitas vermelhas, grandes penachos de plumas, manta de veludo bordada e franjada de ouro. O cortejo que o seguia era igualmente imponente: muitos cavalos ajaezados, montados por pajens vestidos a caráter, ostentando nas capas de veludo verde-escuro, em relevo, as armas da Casa de Bragança. Todas as despesas do dia eram feitas pelos cofres imperiais.
A procissão saía da igreja do Campo de Santa Ana e ia até o Largo do Paço (Praça 15 de Novembro), e ali, “recolhida que era, a Irmandade esperava à porta da Capela Imperial pelas ordens de S. Majestade, as quais o procurador ia receber do mesmo Augusto Senhor, e na volta para a capela iria a Irmandade pelas ruas que o provedor determinasse”.
Em 1940, setenta e um anos após, saiu novamente a procissão; desta vez, porém, o cavalo que conduzia o padroeiro já era o que hoje lhe serve de montaria no templo. Um belo trabalho em madeira, que foi oferecido por um membro da Irmandade em regozijo pela realização de um negócio de grande vulto, para o que suplicara a proteção do santo. A imagem foi conduzida pelas ruas em cima de uma carreta oferecida pelos funcionários do Arsenal de Guerra. Em 1943, saiu ainda o cortejo, em carreta do Corpo de Bombeiros.
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São Jorge foi canonizado no ano de 494, pelo Papa Gelásio. No tempo das Cruzadas no Oriente os guerreiros proclamaram o santo protetor da cavalaria, e o Sínodo de Oxford, no ano de 1220, declarou-o padroeiro da Inglaterra.
Provavelmente da Inglaterra e da Alemanha a devoção se irradiou pelos demais países da Europa, notadamente a França, a Espanha, Portugal e Itália, e dali para o resto do mundo.
No Rio de Janeiro, a existência regular da Irmandade data de 1741, quando por ordem régia de Dom João V, o Dr. Luiz Antônio Rosado da Cunha, juiz de Capelas e Resíduos, instituiu essa devoção, para o que obteve logo a aprovação do Bispo Dom Antônio do Desterro.
Antes de ter a residência própria na Rua de São Jorge, a imagem esteve em um dos altares da Igreja de Nossa Senhora do Parto, segundo um contrato celebrado entre as duas respectivas Irmandades, em 9 de abril de 1742.
Em escritura datada de 26 de agosto de 1753, obtinha a Irmandade de São Jorge, por doação do benfeitor Pedro Coelho da Silva e sua mulher Maria da Penha, a propriedade do terreno onde foi edificada a sua capela, que ficou concluída em 1800, quando ali se instalou, trasladando-se nessa ocasião a imagem da igreja do Parto.
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O templo de São Gonçalo Garcia e São Jorge é elegante e sóbrio. O frontispício largo, tem a porta principal voltada para a Rua da Alfândega, e acima três pequenas janelas que se abrem para o coro. Na coluna da torre há outra porta menor e uma janela aberta no mesmo nível das outras três.
A torre é retangular, com quatro sinos, terminando num ápice agudo, tendo uma cruz no alto do coruchéu.
Em 1901, num dia de forte tempestade, uma faísca elétrica atingiu a torre danificando três sinos, inclusive o maior que viera de Portugal, em 1820. Os dois menores, submetidos a conserto, readquiriram o som primitivo; o outro, no entanto, nunca mais teve a sonoridade dos antigos tempos. Contudo, é ali conservado como relíquia.
À frente da igreja, que conta três degraus, há um gradil de ferro com o respectivo portão, que é aberto nas horas em que se celebram os ofícios religiosos.
O interior da igreja obedece ao estilo barroco comum no tempo em que foi levantado o edifício. Toda branca, com trabalhos em relevo, de fino lavor e gosto.
Os altares em número de seis, além do da Capela-mor, são todos de gesso, com nichos. Neles se encontram Nossa Senhora da Conceição de Oliveira, que data de 1820 e é obra portuguesa, e Santa Terezinha; em outro, Nossa Senhora das Dores, Sagrado Coração de Jesus e São José, e sob esse altar repousa a imagem do Senhor Morto. No seguinte vemos Santo Expedito (a primeira imagem desse Santo que veio para o Brasil), Santo Amaro, Santa Inês e Santa Bárbara; o Divino Espírito Santo, Santo Antônio, São Gonçalo, Santo Onofre e São Sebastião estão no altar ao lado; a seguir, São Crispim e São Crispiniano, São Cosme e São Damião, e no último, São Judas Tadeu e Nossa Senhora de Luján, que veio especialmente da Argentina para ser venerada nessa igreja.
No altar-mor, como ficou dito no princípio desta crônica, estão as imagens de São Jorge e São Gonçalo Garcia, tendo ao centro, sobre o trono, Nossa Senhora da Conceição, e no alto o Crucifixo.
É tudo quanto podemos informar – à falta de dados maiores, sobre a igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge. Este último é o santo que conta com uma das maiores devoções no Rio de Janeiro, sendo venerado por indivíduos de todas as esferas sociais.
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Templos Históricos do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda., 1946. 310 p.
Veja também
- Lei nº 5.146 , de 7 de janeiro de 2010 que “Dispõe sobre a consolidação municipal referente a eventos, datas comemorativas e feriados da Cidade do Rio de Janeiro e institui o Calendário Oficial de Eventos e Datas Comemorativas da Cidade do Rio de Janeiro”.
Imagem destacada
- Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge vista da Praça da República
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