São Francisco de Paula, por Augusto Maurício
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Foi em 1754 que o monge beneditino Dom Frei Antônio do Desterro, grande devoto de São Francisco de Paula, instituiu no Rio de Janeiro um culto especial ao santo patriarca, ao qual deu a denominação de Venerável Ordem dos Mínimos. E logo a novel instituição, dado o tradicional espírito religioso dos brasileiros, teve a mais franca aceitação. Em curto espaço de tempo o número de adeptos era considerável. Convocada uma assembleia, determinaram todos enviar uma mensagem ao Maioral da Ordem dos Mínimos, em Roma, solicitando o necessário consentimento para a fundação, no Rio de Janeiro, da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula.
A resposta do Geral, Padre-Mestre Frei João Prieto, não tardou muito, e, com o beneplácito vinha também a manifestação de sua viva alegria por ver que Dom Antônio do Desterro não poupava esforços para o engrandecimento da religião cristã.
E a 9 de julho de 1756, o bispo Dom Antônio do Desterro firmava, por fim, a provisão que declarava fundada aquela instituição, celebrando-se no dia 11 do mesmo mês a cerimônia da vestidura do hábito de São Francisco de Paula, o que teve lugar na Capela de Nossa Senhora da Conceição, no Palácio Episcopal. Depois de vestido em primeiro lugar, prosseguiu a solenidade, distribuindo, ele próprio, o hábito aos demais irmãos, que, desde aquela ocasião histórica, tornaram-se membros da Ordem recém-instituída. Terminada a cerimônia, encaminharam-se todos rumo à Igreja da Santa Cruz dos Militares, que tinha sido escolhida por Dom Antônio do Desterro para sede provisória da devoção. E ali, num dos altares que lhe haviam destinado para o culto a São Francisco de Paula, realizou-se a solenidade da entronização da imagem do santo, celebrando-se a-seguir o primeiro “Te-Deum Laudamus”.
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A imagem do patrono da Ordem esteve na Igreja da Santa Cruz dos Militares apenas um ano, pois a 29 de dezembro de 1757 era trasladada, em aparatosa procissão, por todos os irmãos e incontáveis fiéis, para a ermida construída para ela, em terreno de propriedade de Frei Antônio do Desterro, no antigo Largo da Sé Nova, hoje, Largo de S. Francisco de Paula, terreno que foi doado por aquele bispo à Ordem que fundara.
Devemos notar que a ermida ocupava justamente o local onde está a capela-mor do atual santuário que, por sua suntuosidade, dá o seu título ao movimentado logradouro público.
Grande e imponente festa foi realizada no dia da inauguração do pequeno templo. Foi celebrado solene “Te-Deum”, sendo oficiante o bispo fundador, abrigando a casa de Deus, naquele momento, os vultos da maior projeção, destacando-se entre eles o Governador interino da Capitania do Rio de Janeiro, José Freire de Andrade, na ausência do seu irmão Conde de Bobadela, efetivo Governador, o Cabido, e outras autoridades na política, na administração e no clero.
É curioso assinalar que a despesa da festa, compreendendo “armação, música, cera, timbaleiros e miudezas”, atingiu a soma de Rr.: 51$400 (Cr$ 51,40 na moeda atual). É igualmente interessante relatar aqui em quanto importou a edificação da ermida. Segundo consta em documento da época, cujo teor declaramos a seguir, o custo foi de Rr.: 1.685$536 (Cr$ 1.685,54), abrangendo: “Importância da feitura da Ermida da Capela do Santo; sua sacristia, uma casa para o ermitão, jornais, materiais, um sino, um lavatório, 44 folhas de férias, terreno e construção de um telheiro”.
Naquele tempo essa importância devia ser muito avultada. E os dias se foram sucedendo, e, com o passar dos dias, mais e mais aumentava a afluência ao templo que, afinal, se tornou deficiente para abrigar todos os irmãos e devotos de São Francisco de Paula que, não raras vezes, eram obrigados a assistir às missas além da porta da rua.
Foi então que a Irmandade pensou em erigir um novo templo que tivesse maiores proporções e pudesse melhor honrar o seu patrono. A instituição estava em plena prosperidade, e, contando com os esforços de todos os seus membros, a grandiosa obra poderia ser levada a termo.
E logo tornaram em ação o que dominava no desejo de todos. Assim, em 5 de janeiro de 1759, foi lançado o marco fundamental da nova igreja, e iniciados os trabalhos para a sua edificação.
No século 18 ainda não havia os recursos com que hoje o homem pode contar, de sorte que a obra arrastou-se lentamente, embora os trabalhos fossem desenvolvidos sempre com o maior afinco, contornando todas as dificuldades que surgiam, quer no terreno técnico, quer, no financeiro.
Dentre os irmãos que mais trabalharam (e foram tantos!) é justo que se destaque João de Siqueira da Costa que se dedicou inteiramente à igreja. Seus ossos repousam sob o altar-mor, e o seu retrato pode ser visto no centro da galeria entre os benfeitores.
Somente 42 anos após o início, é que foi considerada terminada uma parte da igreja, sendo logo trasladada para ela a imagem de São Francisco de Paula.
Continuando os serviços, sem desfalecimentos, sem contar com sacrifícios, custeados por donativos dos irmãos e espórtulas obtidas de outros religiosos, o templo se foi elevando, até que em 12 de abril de 1865, estava inteiramente acabado, sendo então marcada a data de 7 de maio do mesmo ano para a sua inauguração.
Nessa ocasião realizaram-se grandes festejos em honra do padroeiro, e tiveram eles tão alta projeção que entre as figuras mais destacadas que compareceram ao ato solene, viam-se os imperadores Dom Pedro II e Dona Tereza Cristina.
Cumpre assinalar um outro irmão-benfeitor – o Capitão-mor Leandro José Marques Franco de Carvalho que ofereceu à igreja o relógio da torre.
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A decoração do templo, que é verdadeiramente preciosa, teve início em 1855 e só terminou dez anos após. Os trabalhos da talha que se vê nos altares, nas tribunas laterais e no púlpito, são maravilhosos e evidenciam logo o talento de um artista de raça. Chamava-se Antônio de Pádua e Castro, esse habilíssimo escultor e entalhador que deu todo o vigor do seu saber para que a obra resultasse deslumbrante. E o seu trabalho ficou tão perfeito, demonstra tão apurado gosto, que chama até a atenção dos leigos em tão elevada expressão de arte.
A Mesa Administrativa, em sinal de gratidão a Antônio de Pádua Castro, ofereceu-lhe uma rica bolsa de ouro, para rapé, e mandou colocar o seu retrato em uma das galerias.
À direita de quem entra na igreja, no fundo do corredor, está situada a Capela de Nossa Senhora da Vitória (1), que, igualmente, é deslumbrante no que respeita a decoração. O entalhamento dourado é todo obra do insigne artista Mestre Valentim da Fonseca e Silva; basta citar esse nome para se ter uma ideia da perfeição com que foi executada. No trono está a santa da invocação, ladeada por Santa Terezinha e São Sebastião, entre flores e ornamentos vistosos.
As pinturas das paredes dessa capela foram feitas por um negro, escravo do Cônego Januário da Cunha Barbosa, e são também de fino gosto, traindo a sensibilidade do humilde artista. Chamava-se ele Manoel da Cunha, e foi discípulo de João de Souza, nome de grande fulgor, que teve seu lugar assinalado na arte do tempo. Tendo ido à Europa, com o consentimento do seu senhor, acompanhando aquele artista, ali Manoel da Cunha aperfeiçoou os seus conhecimentos na arte da pintura, e, quando aqui chegou, de volta, conseguiu comprar a sua liberdade com os recursos adquiridos com a venda dos quadros que pintava.
No altar-mor da igreja vê-se a imagem do padroeiro da Ordem, São Francisco de Paula, e no corpo da nave há mais seis altares, que tem como titulares Nossa Senhora das Dores, São João Batista, São Miguel, São José, Nossa Senhora da Conceição e São Francisco de Sales, protetor dos homens de letras.
Os vitrais colocados por trás do coro são preciosos. Vieram de Munique, e representam várias fases da vida de São Francisco de Paula.
Tudo é bem cuidado, carinhosamente arrumado, denotando o zelo que a administração dispensa à conservação do templo.
Pois toda essa beleza de que se compõe a igreja, compreendendo o entalhamento, as colunas de granito e de mármore que tanto agradam aos olhos e emprestam incomparável distinção ao santuário foi, um dia, empanada pelo mau gosto de administradores passados. Tal como aconteceu na Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, a tinta a óleo cobriu de cinzento todas aquelas obras de arte…
Felizmente, porém, em 1944, o Corretor-mor, Comendador Oscar Costa, amante das tradições nacionais e esteta de fina sensibilidade, resolveu, de acordo com o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, restaurar tudo aquilo que a tinta ocultava. E assim voltou ao templo o esplendor que sempre tivera, e que o colocara entre os mais suntuosos do Rio de Janeiro.
Foram sepultados nas catacumbas que então havia na igreja cerca de 500 irmãos, entre muitos o Comendador Antônio Feliciano Serpa, o Conde da Barca, o Barão de Taquari, o Barão de Sorocaba, a Condessa de Iguaçu, filha de Dom Pedro I e da Marquesa de Santos, o Conde de Beaurepaire, o Desembargador Francisco da França, além de outros nomes distintos da nobreza, da aristocracia e da elite do tempo. Os despojos de todos esses irmãos, que se encontravam na igreja, foram trasladados para o cemitério da Ordem, em Catumbi, quando em 1850 o governo imperial proibiu o enterramento nos templos, em virtude de uma epidemia de febre amarela que então assolou a cidade.
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A última porta à esquerda, dá para uma extensa e ampla galeria, onde estão colocados grandes retratos de muitos irmãos benfeitores. São obras de fino lavor, executadas, sem dúvida por autênticos mestres. No fundo dessa galeria está situada a sacristia, que é talvez a maior e a mais confortável de todas as demais igrejas do Rio de Janeiro, por isso que ocupa toda a largura do prédio.
Ao centro do grande salão há uma comprida mesa de jacarandá, torneada caprichosamente. Na parede maior estão dois arcazes, também de jacarandá, de finíssimo lavor, encimado por um crucifixo. Logo à direita se vê o lavatório que é também objeto da maior atenção: todo de mármore, representando figuras esculpidas em várias cores. É um precioso mosaico, cujo valor não se pode calcular de pronto, porque além de ser obra muito antiga é de trabalho admirável. Essa pia foi ofertada à Irmandade por seus sacristães e pelo respectivo vigário, no ano de 1853.
Na parede à esquerda, duas montras exibem custódias de prata cravejadas de pedras, diademas de ouro e outros objetos de prata, destinadas ao culto religioso.
Em frente aos arcazes estão dois quadros: a veneranda figura de São Francisco de Paula, envolto no seu burel, de olhar doce e sereno, fixando todos os que entram e saem daquela dependência de sua casa, e Nossa Senhora da Conceição.
No altar da sacristia está colocada a imagem do Nazareno (Ecce Homo). É uma das passagens mais comovedoras da sua luminosa vida. Ali está o Cristo sentado, humilhado, ostentando à cabeça a coroa de espinhos, nos ombros o manto, e nas mãos a cana verde – objetos com que o adornaram os legionários que o guardavam na prisão, como escárnio à falsa realeza que lhe atribuíam.
Pendentes do teto bem como nas paredes faíscam magníficos candelabros de cristal, de grande preço e de rico efeito, completando aquele ambiente de sóbria elegância e distinção.
No andar superior funcionam a Secretaria, a Tesouraria e o Consistório da Ordem. Nessas enormes salas encontram-se esplêndidos retratos a óleo de muitos membros da Irmandade.
A Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula possui mais, além do cemitério para os irmãos, um asilo e um hospital, que tantos e tão relevantes serviços têm prestado aos desvalidos, e aos enfermos.
O hospital funcionou, primitivamente, em um prédio junto à igreja. Quando da revolta da esquadra, em 1893, a administração temendo que alguma bala das forças de Custódio José de Melo atingisse o hospital, houve por bem transferi-lo para a Rua General Canabarro, onde ainda se encontra.
Nota
- ↑ Devoção instituída pelo Papa Pio V, no ano de 1572, em comemoração à grande vitória alcançada pelos cristãos sobre os turcos, em Lepanto, no dia 7 de outubro de 1571, triunfo atribuído à proteção da Virgem Maria.
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Templos Históricos do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda., 1946. 310 p.
Mapa - Igreja de São Francisco de Paula