São Francisco da Prainha, por Augusto Maurício
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Logo acima da Rua Eduardo Jansen – uma ladeira calçada de pedra entremeada, a espaços, de degraus, rua essa que tem início na de nome Sacadura Cabral, – há um pequeno largo denominado Adro de São Francisco, e bem no centro dessa praça está situada a Capela de São Francisco da Prainha, pertencente ao patrimônio da Ordem Terceira da Penitência.
Em tempos idos o mar chegava quase até a orla do Morro da Conceição, formando no sopé desse outeiro uma extensa, mas estreita, faixa de areia, onde os pescadores amarravam as suas embarcações, de volta da faina de todos os dias; daí, talvez, a denominação de Prainha dada ao local.
O templo existe desde data assaz recuada, ignorando-se, no entanto, completamente, a época de sua construção. Supõe-se – e para isso concorrem vários indícios seguros, que a capela tenha sido edificada pelo Padre Dr. Francisco da Mota, possuidor de muitos haveres móveis e imóveis. Esse sacerdote ao morrer, em 4 de março de 1704, legou em testamento à Ordem Terceira de São Francisco da Penitência todos os seus bens, mediante apenas a obrigação da legatária liquidar algumas dívidas do testador e também do finado Domingos Rodrigues Lisboa, celebrar seiscentas missas anualmente por sua alma e a de seus pais, e levantar um altar a Santo Ivo.
E os bens de que se tornou herdeira a Ordem constavam da Capela, um trapiche na beira da praia, 51 escravos e várias casas e lotes de terras, em alguns dos quais, mais tarde, a Ordem da Penitência construiu prédios, ficando foreiros a maior parte dos terrenos.
Nada consta acerca da existência da capela antes do Padre Dr. Francisco da Mota; por isso é quase certo tenha a mesma sido construída por ele, tal era o carinho que dedicava ao templo.
Aceitemos, pois, o fato como nos parece lógico; mesmo porque seria esforço inútil procurar desvendar um caso ocorrido em época que se perde em longínquo passado, e que não deixou qualquer documento capaz de elucidar definitivamente a origem da igreja.
Que o santuário pertencia ao Padre Mota não resta a menor dúvida; isto ficou devidamente provado na ocasião de sua morte, e constou no testamento amparado por todos os requisitos legais.
Assim, para todos os efeitos, e à falta de qualquer prova em contrário, a capela teria sido mesmo edificada pelo velho sacerdote.
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Em 1710 corria placidamente a vida do Brasil-colônia quando, inopinadamente, entrou na baía de Guanabara a expedição chefiada por Jean François Duclerc. Vinham os franceses com o propósito de lançar o pânico entre a população e, em seguida capturar a cidade. Bem armados e equipados, supunham que a empresa seria fácil.
Desembarcadas as forças, foi dado início ao saque e à pilhagem, sendo destruídos nessa ocasião inúmeros arquivos públicos e particulares. Cenas de incrível vandalismo foram presenciadas pelo povo atônito.
A resistência, ou melhor, o revide não se fez esperar. A juventude atirou-se à luta, tendo às mãos as armas que lhe era possível conseguir e, embora em inferioridade, atacou os assaltantes. Poucas eram as armas de fogo em relação às que dispunham os franceses; em compensação o patriotismo e a razão da causa superavam a deficiência de armamento.
Nessa ocasião o Governador da cidade, Francisco de Castro Morais, temendo que os franceses pudessem se fortificar no morro da Conceição, ordenou que fossem incendiados a capela e o trapiche que ficava abaixo.
Pouco tempo mais durou a luta. A tropa inimiga foi dispersada e aprisionados todos os soldados vivos, inclusive Duclerc que com toda a sua bravura… se havia ocultado no interior de um trapiche.
Ali foi ele apanhado e recolhido à prisão, no Colégio dos Jesuítas (no antigo morro do Castelo), onde permaneceu algum tempo, ao cabo do qual foi posto em liberdade sob vigilância, ficando com a cidade por “ménage”. O povo não recebeu com boa vontade essa atitude do Governador, libertando Duclerc; ao contrário, manifestou-se ostensivamente contra a sua benevolência.
Uma noite, na casa em que passou a residir o prisioneiro, na Rua da Candelária esquina da Rua dos Escrivães (depois do Sabão, e, ultimamente General Câmara), surgiram quatro indivíduos embuçados e lhe deram cabo da vida. E nunca foi restabelecida a identidade dos matadores.
Terminou dessa forma, a ousadia daquela malta de salteadores que queria dar à França a glória de dominar o Brasil.
Passada que foi a fase de agitação, a Mesa Administrativa da Ordem da Penitência determinou reedificar o templo da Prainha. E vinte e oito anos após a ocorrência que o reduzira a escombros e cinzas, no dia 4 de novembro de 1738, a capela achava-se inteiramente pronta, sendo então inaugurada solenemente.
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A Capela, no seu exterior, tem estilo barroco, como eram, de resto, quase todas as igrejas de sua época. Os ângulos do edifício são de pedra, algo já carcomida pelo tempo, o que se torna um atestado insofismável de sua longa existência.
No interior, porém, depois que foi reformada no ano de 1910, a feição é puramente gótica. O teto é abobadado, sustentado por colunas do mesmo estilo. De igual ordem artística são o púlpito, o mobiliário e o confessionário, todos de madeira, envernizados de escuro.
A nave é iluminada por um riquíssimo lustre de cristal com pendentes, que fica ao centro, além de luz indireta colocada dentro dos altares, no alto da capela-mor e junto ao teto.
Conta apenas três altares. No principal, em mármore branco e cinzento, artisticamente trabalhado, está a imagem do Cristo Crucificado, que ali denominam de Bom Jesus dos Navegantes, e abaixo, sobre o trono, São Francisco de Assis. Aos lados desse mesmo altar, São Lúcio e Santa Bona, que são conhecidos por “bem casados”. Foram eles, entre outros, os fundadores da Ordem Terceira Franciscana, tendo ambos recebido o hábito das mãos do próprio Patriarca. Essas imagens foram modeladas em 1834, contando, portanto, 112 anos.
Ainda na capela-mor, sobre duas colunas, encontram-se as imagens de S. José e Santo. Antônio.
Os altares laterais da nave são construídos nos cantos, junto à parede do arco cruzeiro, e são, portanto, de feitio triangular. No do lado do Evangelho está Nossa Senhora da Bonança, tendo à frente o Sagrado Coração de Jesus, e no da Epístola, Nossa Senhora dos Navegantes e São Sebastião.
Antigamente, nos dias em que se celebrava a festa da Senhora dos Navegantes, padroeira dos homens do mar, os pescadores traziam à Capela um novo barquinho, por eles construído, para ser substituído pelo que haviam dado no ano anterior, o qual era colocado na base da imagem. Essa prática atualmente já não existe. O barco que ali está, pintado de verde-claro, data de muitos anos.
No ano de 1846, esteve na Capela da Prainha, a arca de vidro contendo os ossos de Santa Prisciliana, a Virgem-Mártir imolada por, ordem do imperador Juliano, o apóstata, e que veio de Roma, cedida pelo Papa Gregório XVI, sob a condição de ser exposta na Matriz de Santa Ana, de onde era Vigário o Monsenhor Manoel Joaquim de Miranda Rêgo.
Essa relíquia sagrada ali permaneceu durante alguns dias, sendo depois conduzi da em procissão para o seu destino predeterminado.
No capítulo que dedicamos à Matriz de Santa Ana, damos alguns detalhes sobre este assunto.
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A Sacristia está situada ao lado esquerdo da Capela, com porta de entrada independente.
Um grande quadro pintado a óleo oferece à vista o retrato do Padre Dr. Francisco da Mota, em tamanho natural.
Sobre o arcaz está um altar de talha, com frisos dourados, em cujo interior se contempla a imagem de Santo Ivo, patrono dos Advogados (como se leu anteriormente, representa uma das obrigações assumidas pela Ordem da Penitência em face do legado que recebeu do Padre Mota).
Dois painéis ladeiam esse altar: o da esquerda representa São Francisco de Assis recebendo novos membros para a comunidade, e o da direita, o mesmo Santo orando no Monte Alverne. Não se conhece o autor desses quadros que são, todavia, magníficos.
Em dependência contígua à Sacristia, situada no fundo, está instalada a “Escola Padre Dr. Francisco da Mota”, fundada em 26 de setembro de 1897.
Anteriormente esse estabelecimento de ensino funcionou no Consistório da Capela como escola noturna, mista, para adultos. Hoje está em prédio próprio, contando cerca de 280 alunos, de ambos os sexos; é mantida pela Ordem, e o ensino primário é ministrado gratuitamente, fornecendo ainda a Penitência livros, roupas e até merenda aos alunos que frequentam a escola.
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Templos Históricos do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda., 1946. 310 p.
Imagem destacada
- Igreja de São Francisco da Prainha vista da Rua Sacadura Cabral
Mapa - Igreja de São Francisco da Prainha