São Cristóvão, por Augusto Maurício

A idade certa da Matriz de São Cristóvão não é possível conhecer-se. Pelos documentos guardados no arquivo da igreja sabe-se que no ano de 1627 já existia esse templo, e era denominado “Igrejinha”, talvez por motivo de suas pequenas dimensões. Era propriedade dos jesuítas e estava situada no terreno pertencente à fazenda da Companhia de Jesus.
Construída à beira-mar, as águas da baía de Guanabara chegavam quase até a porta de entrada voltada para uma estreita praia de areia.
Tão branca e com a sua torre tão alta, era vista de longa distância pelos pescadores, que à hora da “Ave-Maria”, ao recolherem os seus barcos, procuravam a igrejinha para nela dar graças ou para pedir a proteção divina.
É só o que se conhece a respeito da atual Matriz, antes do ano de 1627.
Posteriormente, é certo que a igreja foi sempre muito procurada pelos incontáveis devotos de São Cristóvão, inclusive pela Marquesa de Santos, residente à entrada da Quinta da Boa Vista (hoje Avenida Pedro II, e cuja casa ainda ali se conserva) [1], que a preferia por ser retirada do bulício da cidade, evitando, dessa forma, os olhares maliciosos do povo. Também, Dom Pedro I, e mais tarde Dom Pedro II e toda a família imperial, assim como muitos nobres, várias vezes foram vistos no templo da praia.
Somente no fim do século XIX é que a igreja tomou a feição que ora apresenta; isso aconteceu quando ali esteve o Cônego Luiz Antônio Escobar de Araújo que, tendo sido nomeado Vigário, realizou obras de grande monta, dando-lhe o elegante estilo gótico-romano que tanto a distingue dos demais templos religiosos.
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Data de 9 de agosto de 1856 a fundação da paróquia de São Cristóvão, por decreto imperial, confirmado por outro em 17 de dezembro do mesmo ano. O primeiro pároco foi o Padre Gustavo dos Santos, nomeado por provisão de 14 de novembro de 1857.
O Cônego Escobar ocupou o lugar durante 53 anos consecutivos, colado por carta imperial de 12 de junho de 1858, e faleceu a 4 de março de 1902. O terceiro foi o Padre Ricardino Artur Séve, a quem sucedeu o Padre Augusto Ferreira dos Santos, o quinto foi o Cônego Luiz Maria Corrêa Cavalcanti que permaneceu no posto por 16 anos, até 2 de outubro de 1932, e o atual, Monsenhor Florentino Gomes da Silva, ali se encontra há quase quatorze anos.
Ao atual Vigário se deve a reforma interior da igreja, realizada nos meses de setembro a dezembro de 1936, de cujo feito há na nave uma placa de mármore, mandada colocar pelos paroquianos.
A igreja por dentro – tanto como por fora, é muito bela, e faz logo notar o gosto artístico que presidiu a obra de Monsenhor Gomes da Silva, cujo trabalho foi por ele próprio superintendido. É toda em arco, abobadada, tendo aos lados duas galerias onde estão situados os altares. Quem olha o templo da sua porta principal, tem a impressão de que ali só há a capela-mor com seu altar, no qual está colocada a imagem de São Cristóvão, caprichosamente esculpida em madeira, ladeada por São José e Nossa Senhora do Rosário.
Passando, porém, do limite do coro é que se avistam os altares laterais, todos construídos em mármore de cor, tendo ao lado de cada um, vitrais de alto preço, alusivos à vida dos Santos que os titulam.
Assim, vemos nesses altares, iluminados pelos magníficos vitrais, Nossa Senhora da Conceição com Santa Inês e São Luiz Gonzaga, Santa Cecília com Santo Antônio e São Sebastião, Santa Edwiges, padroeira dos endividados, com São Vicente e Santa Rita, e Nossa Senhora do Socorro ladeada pela Virgem Aparecida e Santa Luzia.
A imagem da Senhora do Socorro representa uma recordação muito terna, muito querida. Foi o próprio imperador Dom Pedro II que, por suas próprias mãos a conduziu àquele santuário, entregando-a à Irmandade de sua invocação, que ainda existe e a festeja todos os anos.
Nas colunas que formam o arco cruzeiro, sobre prateleiras, estão as estátuas dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, e, à volta de toda a nave, os 14 quadros simbólicos dos passos da Via Sacra.
A sacristia circunda todo o templo, a partir do arco cruzeiro, à esquerda, terminando à direita do mesmo arco. É, portanto, em linha curva, mas ampla, clara, arejada por muitas janelas góticas gradeadas de ferro.
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A Matriz de São Cristóvão está situada na atual Praça Padre Séve, denominação esta que foi dada pela Prefeitura do Rio de Janeiro àquele logradouro, atendendo a relevantes serviços prestados à paróquia pelo falecido Vigário. À porta da igreja passa o bonde “Caju-Retiro”, única condução coletiva que leva diretamente os fiéis ao culto divino. Sendo, porém, muito próxima do Campo de São Cristóvão, no fim da Rua da Igrejinha, a falta de transporte não obsta a que os devotos procurem o templo com assiduidade e em elevado número.
Mas, para justificar a denominação da praça, achamos oportuno dizer algo acerca do Padre Séve.
Quando esse sacerdote assumiu o cargo de Vigário em São Cristóvão, o culto ali achava-se um tanto relegado a segundo plano pela mocidade da época, mais preocupada com os interesses materiais. Assim, mesmo os jovens que frequentavam o templo, o faziam menos pelo espírito religioso do que para recrear os olhos e, quiçá atentar contra o 9.º mandamento…
Padre Séve não se conformou com essa manifestação de desprezo pelos ensinamentos sagrados, e de desrespeito ao ambiente em que se pregava a palavra de Deus.
Orador dos mais brilhantes, dotado de raro poder de persuasão, sabendo ilustrar com imagens magníficas suas esplêndidas pregações, foi o Padre Séve aos poucos, atraindo ao seu rebanho as ovelhas tresmalhadas, e, ao fim do período em que serviu naquela paróquia contava em cada indivíduo um amigo sincero e um verdadeiro crente.
Relatamos aqui um fato deveras interessante, ocorrido na igreja, e que nos foi contado por Aníbal Martins Alonso, nosso querido companheiro do “Jornal do Brasil” onde exerce a função de Secretário da Redação, e que era afilhado daquele ilustre Ministro de Deus.
Um dia Padre Séve foi prevenido por um amigo de que um grupo de rapazes que não se haviam ainda conformado com o estabelecimento da disciplina que o sacerdote exigia para a assistência aos ofícios religiosos, preparava-se para fazer-lhe uma desfeita. Haviam eles comprado muitos quilos de batatas, que foram entre eles distribuídas, para serem atiradas sobre o padre, logo que este, durante o sermão, voltasse a insistir contra aquilo que eles achavam muito natural…
Não se amedrontou o padre com a ameaça, nem, tampouco, desistiu de falar naquele dia. Ao contrário, ao assomar ao púlpito foi declarando aos ouvintes que o tema escolhido para sua preleção era baseado na mais comovente das virtudes teologais – a Caridade.
Elegera esse assunto deveras emocionado, porque soubera que várias pessoas do maior respeito ali presentes se haviam cotizado e adquirido grande porção de batatas que seriam oferecidas aos pobres da paróquia por intermédio do seu Vigário. A seguir, em palavra fluente, plena de frases brilhantíssimas, coloriu sua peroração sobre a Caridade, e terminou o sermão elogiando e agradecendo o gesto espontâneo da rapaziada.
No fim da missa, os jovens, arrependidos, procuraram na sacristia o Padre Séve, a quem confessaram o seu condenável intento e, pedindo perdão, entregaram as batatas ao padre para que, realmente, fossem distribuídas pelos seus pobres.
Padre Séve era assim. Vencia pela brandura, conquistava pela inteligência.
Outra obra do inesquecível Vigário foi a fundação da Escola Paroquial de São Cristóvão. Nesse estabelecimento de ensino aprenderam as primeiras letras os filhos dos operários e pescadores do bairro; e tudo isso inteiramente grátis. Os recursos para fazer face às despesas com professores, livros, roupas e até merenda, eram conseguidos com esmolas que a generosidade do povo oferecia para que o Padre Séve pudesse manter a sua utilíssima fundação.
Nota do Editor
- ↑ Inaugurado em 12 de março de 1979, o Museu do Primeiro Reinado situa-se no bairro de São Cristóvão, instalado no palacete que pertenceu à Marquesa de Santos, que ali viveu de 1826 a 1829 (RioTur).
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Templos Históricos do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda., 1946. 310 p.
Imagem destacada
- Igreja de São Cristóváo
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