Nossa Senhora do Carmo da Lapa, por Augusto Maurício
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Segundo os apontamentos constantes do arquivo de Frei Alberto Nicholson, Definidor da Província Carmelitana no Rio de Janeiro, e que está escrevendo uma grande obra sobre a Ordem religiosa, a fundação do respectivo Convento data de 1590, isto é, de quando aqui chegaram, vindos de Santos, os primeiros frades. Eram eles chefiados por Frei Pedro Viana, que acabava de fundar o recolhimento naquela cidade paulista e para aqui se dirigira com o mesmo objetivo.
Nessa ocasião foi concedido para a edificação do cenóbio o terreno onde se achava a capela sob a invocação de Nossa Senhora do Ó, na atual Praça 15 de Novembro, esquina da Rua 7 de Setembro, e que de 1581 até 1590 servira de residência aos dois primeiros padres beneditinos que pisaram nesta metrópole.
Frei Pedro Viana e seus companheiros deram logo início à construção do convento, tendo conseguido do Governo grandes favores. O povo do Rio de Janeiro, tradicionalmente católico na sua quase totalidade, acorreu a auxiliar essa obra tão meritória e necessária à formação espiritual da nossa nacionalidade. Desfrutando justo prestígio, conseguiram os Carmelitas, entre outros apreciáveis donativos, a cessão da Ilha das Enxadas para dela retirar toda a pedra que se tornasse precisa para a edificação do recolhimento e da igreja que carecia de acomodações mais amplas do que as que oferecia a Ermida do Ó.
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O convento, passados alguns anos, estava concluído. Tinha três pavimentos, solidamente construídos, pedra sobre pedra, e a sua resistência tão vigorosa que ainda hoje está de pé, em ótimas condições, nele funcionando a Academia de Comércio Faculdade de Direito Candido Mendes, além de outras instituições de ensino e religiosas.
Quanto à igreja, foi edificada logo depois do convento. E a sua construção foi algo precipitada por motivo de lamentável acontecimento que enlutou várias famílias da época. Esse desastre ocorreu num dia de festa, na ocasião em que se celebrava o culto religioso, estando o pequeno templo repleto de fiéis. Súbito a ermida, já velha e arruinada, fendendo o teto, abateu-se completamente sobre toda a gente que ali prestava seu culto a Deus. Contaram-se muitos mortos e enorme número de feridos.
Em seguida, porém, depois de refeitos do abalo causado pela dolorosa ocorrência, ergueram os carmelitas nova igreja, para cuja obra tiveram a proteção e a ajuda valiosas do Conde de Bobadela, então Governador do Rio de Janeiro. Essa edificação se fez, no entanto, paulatinamente, com muita lentidão; todavia não deixaram os frades um só instante de cuidar do seu templo.
Mas não se resumia apenas nesse empreendimento a atividade dos frades carmelitas. Outras funções da maior importância e responsabilidade desempenhavam eles no Brasil: – socorriam os necessitados, pregavam a palavra Divina, embrenhavam-se pelos sertões selvagens e inóspitos, dando a todo o momento sobejas provas de abnegação e caridade. E tantos benefícios prestavam, que o rumor de suas obras chegou ao conhecimento do rei D. Pedro II de Portugal, que, em 1694 dirigiu ao Provincial Frei Inácio da Graça, uma longa carta, da qual destacamos o seguinte trecho:
– “E pelo que toca aos vossos religiosos, vos torno a encommendar muito, que os promovereis não só conservar e augmentar no estado perfeito de religião, mas que prosigam no exercido das missões, inclinando-se todos elles, tomando-se a pratica das linguas, e exercitando-se também, quando lhes fôr possível, naquelles actos de caridade e pobreza que são necessários nas aldeias, dando doutrina aos índios, excusando-se por êste modo os missionários estrangeiros que ao menos fazem entender nas partes donde vêm, que nos mesmos domínios não há os que se requerem para êste ministério”.
Em 1711 outra carta régia do mesmo soberano, dizia:
– “… Fui servido a mandar escrever esta carta para que me ajudeis a descarregar nesta parte a minha consciência mandando de vossa Ordem os mais missionários que puderdes e julgar dispor Ministros do Sagrado Evangelho naquellas remotissimas partes, para accudir à extrema necessidade espiritual em que se acham tantos milhares de almas, porque nisto fareis um grande serviço a Deus Nosso Senhor, a mim e a todos os que forem a tão santo ministério”.
Como, se depreende dessas duas mensagens reais, são relevantíssimos e incalculáveis os serviços prestados pela Comunidade Carmelitana nos primeiros tempos que se seguiram à descoberta do Brasil.
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Em 1808, Napoleão, imperador dos Franceses, na sua incontida ânsia de domínio, invadira Portugal; e num dia de março, as naus lusitanas, conduzindo a família reinante, aportavam à Guanabara. Vinham para aqui, então colônia portuguesa, o Príncipe-Regente D. João, Dona Carlota Joaquina, D. Pedro, D. Miguel, as princesas e numeroso séquito de nobres e servidores do Paço. Foi-lhes dado para residência o Palácio dos Governadores (atual edifício dos Telégrafos Paço Imperial). Era essa casa, no entanto, pequena para abrigar tanta gente. Assim tiveram os religiosos de Nossa Senhora do Carmo de ceder o seu convento para a “entourage” dos monarcas de Lisboa.
Uma ponte foi colocada por cima da Rua da Misericórdia, estabelecendo ligação entre os dois edifícios, para melhor comodidade dos intrusos que vinham perturbar a vida pacata, mas trabalhosa, da comunidade carmelitana. E a igreja que ainda não estava terminada, foi também, ipso facto, transformada em capela-real.
Os frades foram, pois, forçados a mudar-se. Foram homiziar-se, em junho do mesmo ano de 1808, no hospício de Nossa Senhora da Oliveira, na Rua dos Barbonos (hoje Evaristo da Veiga), no local onde está sediado o Quartel da Polícia Militar.
Nessa residência provisória estiveram os carmelitas pelo espaço de dois anos, até que em 1810 foi-lhes doado pelo então Bispo Diocesano, Dom José Caetano da Silva Coutinho, o seminário e uma pequena capela sob a invocação de Nossa Senhora da Lapa do Desterro, cuja construção em terreno oferecido pelo Capitão Ribeiro Pereira, iniciada em 1751, não estava ainda concluída.
Passaram, então, os frades para a nova casa, cuja denominação foi alterada para Carmo da Lapa. O seminário transformou-se em convento, e a capela que tinha a invocação de Nossa Senhora da Lapa do Desterro (Desterro porque ficava próxima ao Morro de Santa Tereza que então era por aquele nome designado), passou a ser de Nossa Senhora do Carmo da Lapa.
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A trasladação da imagem de Nossa Senhora do Carmo foi realizada em solene procissão, no dia 24 de outubro de 1810, sendo colocada no altar-mor da igreja, no mesmo lugar até então ocupado pela Senhora da Lapa, que foi transferida para um dos altares laterais do templo.
Houve brilhante festa nessa ocasião. Dom João, príncipe-regente, e toda a corte compareceram à igreja para receber a Santa e assistir à sua entronização. A imagem foi conduzida sob o pálio juntamente com o SS. Sacramento trazido pelas mãos do Bispo.
Após a cerimônia religiosa queimaram-se fogos de artifício, ouviu-se música executada pela Banda Militar, e em seguida foi oferecida uma lauta merenda aos soberanos (onde estivesse D. João tinha que haver comida…) e às pessoas que os acompanhavam. Todos comeram e beberam fartamente, e até, por descuido, é claro – um dos convidados reais levou consigo uma das facas do serviço de prata, cujo valor o Convento teve que pagar…
É bastante simples o aspecto exterior do templo construído pelos carmelitas, em substituição à antiga capela. Sua construção trai logo a arquitetura da época: um chalé encimado por uma cruz, uma torre à esquerda, e à direita apenas a coluna em que deveria ser erguida a segunda torre, caso a igreja chegasse a ser matriz. Três portas dão acesso à nave, e três janelas clareiam o coro. O revestimento de azulejo azul imprime às paredes um aspecto de antiguidade, entretanto somente por volta de 1886 foi ali colocado aquele revestimento.
Por dentro o templo é também singelo.
No altar-mor está a imagem da padroeira Nossa Senhora do Carmo, cujo camarim foi executado pelo Mestre Valentim da Fonseca e Silva. Aos lados, sobre cantoneiras pousam Santo Elias e Santo Elizeu, fundadores da Ordem Carmelita. Ainda na capela-mor vêm-se Santo Alberto e São Francisco de Paula. O altar tem o frontal e a banqueta de prata lavrada, com o escudo da Santa e algumas passagens do Evangelho, e também são do mesmo metal os preciosos castiçais que alumiam a Virgem.
O painel pintado no teto da capela-mor é uma verdadeira maravilha de execução. Não se conhece, todavia, o autor. O arco cruzeiro só foi colocado em 1827, e nele se vê o escudo do Carmelo – o monte com três estrelas de ouro, tendo acima a coroa da Rainha do Céu.
No chão do presbitério dorme o sono eterno Frei Pedro de Souza de Santa Mariana, Bispo de Crisópolis, ex-lente da Real Academia Militar; possuía ele tão grande talento e tão profundo saber que foi escolhido para exercer a honrosa função de preceptor de D. Pedro II na sua infância. O príncipe estimou-o tanto que nunca mais o deixou. Quando subiu ao trono em 1840, assumindo a direção do Brasil, Frei Pedro continuou sempre em sua imperial companhia no Palácio da Quinta da Boa Vista, até quando, adoecendo gravemente, foi recolhido ao Hospital da Ordem do Carmo, às vésperas de morrer, o que sucedeu em 1864. E no seu leito de enfermo muitas vezes recebeu a grata visita do imperador que ia levar-lhe sua palavra amiga e o seu coração cheio de tristeza. Sobre a campa de Frei Pedro de Souza de Santa Mariana há uma lápide que se conserva intacta, com expressiva inscrição em latim.
Na nave há quatro altares. Nos dois do lado do Evangelho encontram-se Nossa Senhora das Dores e uma bela imagem evocando um dos Passos do Senhor; no primeiro do lado da Epístola, está entronizada a Sacra Família, e no outro, Nossa Senhora da Lapa, imagem histórica que desde 1810 até 1849 esteve no interior do Convento. Essa imagem é a mesma que sai no préstito que se organiza a 16 de julho em honra da padroeira.
Os azulejos que formam uma barra azul em toda a volta da igreja datam de 1881 até 1890, não sendo, portanto, tão antigos, como parece. O templo é iluminado por lustres de cristal pendentes do teto.
E neste ambiente sagrado que tão perto fala à nossa História, muitas vezes D. Pedro II assistiu à festa do Espírito-Santo. Nessas ocasiões armava-se camarim especial na tribuna, para maior conforto de Sua Majestade.
À mão direita de quem entra, no fundo da nave, está situada a Capela do SS. Sacramento, em cujo altar Frei Alberto Nicholson celebra diariamente o ofício Divino. Sobre o altar está uma magnífica imagem do Sagrado Coração de Jesus, ladeada por Maria Madalena de Pazzis e Margarida Maria Lacoque.
Na sacristia, sobre o arcaz de jacarandá, preso à parede, um grande Crucifixo modelado em madeira chama a atenção pela perfeição de suas linhas. Quatro quadros antiquíssimos, já reconstituídos, representando passagens de vida de santos encontram-se também nessa dependência da igreja, assim como se vê ali o lavatório de mármore com a data de 1844; no teto, entre outros painéis, há o de Nossa Senhora do Carmo entregando o escapulário a São Simão.
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O convento propriamente, não é obra antiga. Os frades foram-no construindo à medida de suas possibilidades, a partir da data em que se estabeleceram naquele local, em 1810. Não obstante, acham-se ali autênticas preciosidades, conservadas com o maior carinho.
Entre aqueles objetos de inequívoco valor há no vestíbulo um quadro de Nossa Senhora do Carmo, pintado sobre tela por Raimundo da Costa e Silva. Esse artista, segundo conta Moreira de Azevedo através da biografia que dele fez, pintou inúmeros quadros, inclusive “a Senhora do Carmo, que se encontra na portaria desse Convento. Era Major de Ordenanças, e mui devoto da Senhora do Carmo, que festejava todos os anos em sua casa”.
No andar térreo, além da sala de visitas confortável, mobiliada sobriamente, há o refeitório, o pátio e outras dependências; no segundo plano estão as celas dos frades, a esplêndida biblioteca admiravelmente cuidada e conservada contando volumes que valem grandes somas, e ainda inúmeros outros que se esgotaram, e que, por isso mesmo, são verdadeiras raridades. [1]
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Em 1857, o Capítulo Provincial ordenou aos religiosos do Carmelo que fundassem uma escola de ensino primário, o que somente em 1861 foi cumprido, funcionando até 1866, quando foi extinta por motivos que desconhecemos.
No ano de 1884, abriu-se novamente, mas teve curta duração. Em 1906, porém, voltou definitivamente a receber alunos, e até hoje está em pleno funcionamento, com avultado número de meninos. Esse estabelecimento denomina-se “Escola Carmelitana Santo Alberto”, e está situada em terreno próprio, ao lado do convento, dando frente para um largo pátio calçado de pedra, plantado de palmeiras, e cercado com gradil de ferro.
É isso o que podemos dizer em linhas gerais sobre os religiosos do Carmelo e a respeito da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Lapa.
Nota do Editor
- ↑ A sede da Província Carmelitana Fluminense foi destruída pelo incêndio de 14 de setembro de 1958.
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Templos Históricos do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda., 1946. 310 p.
Mapa - Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro