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Nossa Senhora da Lampadosa, por Augusto Maurício

Igreja Nossa Senhora da Lampadosa
Igreja Nossa Senhora da Lampadosa

Devemos a Noronha Santos, um dos mais profundos conhecedores da história do velho Rio de Janeiro, e a Everardo Backheuzer, não menos dedicado ao estudo das coisas cariocas, e que nos aproximou daquele outro historiador, – a possibilidade de escrever sobre a Igreja da Lampadosa, pois a própria Irmandade pouco possui a respeito de seu passado.

Noronha Santos abriu-nos gentilmente as portas de sua preciosa biblioteca, e dali, do convívio com velhos livros, pudemos retirar tudo quanto se fazia necessário para dizer algo aos nossos leitores relativamente ao pequenino e simpático templo da Avenida Passos.

A Irmandade da Lampadosa (ou Alampadosa, segundo se pronunciava antigamente) foi fundada antes de 1740 por um grupo de devotos, e ficou sediada na Igreja do Rosário e São Benedito.

A invocação de Nossa Senhora da Lampadosa, padroeira dos escravos, provém de uma imagem da Virgem, venerada na ilha de Lampedusa, no mar Mediterrâneo, entre a Sicília e o norte da África. A devoção tem, assim, origem europeia.

A Irmandade, primitivamente era composta de escravos. Essa confraria permaneceu no Rosário até o ano de 1748, quando, desejando os irmãos construir sede própria, encontraram na boa vontade e espírito religioso de Pedro Coelho da Silva e sua mulher, Tereza de Jesus de Almeida, amplo campo à satisfação do seu objetivo. Assim, espontaneamente, aquele casal doou à Irmandade o terreno que houvera de Leonor Maria de Vasconcelos, e que media seis braças de frente por 25 de fundos, conforme consta da escritura de 7 de fevereiro de 1748, e onde ainda hoje se encontra edificado o templo da Santa.

Transcrevemos a seguir o teor da resposta do Bispo, datada de 20 de dezembro de 1747, à petição de licença que lhe foi dirigida pelos irmãos da Lampadosa, para levantarem o seu santuário:

– “D. Frei Antônio do Desterro, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo do Rio de Janeiro e do Conselho de Sua Majestade, faz saber aos que esta Provisão virem, etc. Fazemos saber que atendendo ao que nos pediram os irmãos da Irmandade da Alampadosa, sita na Igreja de Nossa Senhora do Rosário desta cidade, que houvemos por bem de lhe conceder licença para que possam erigir de novo uma igreja à mesma Senhora.

Será edificada em lugar decente, separada de casas e livre dos usos dos mestiços”.

De posse da provisão, dias depois novo pedido foi endereçado a D. Frei Antônio do Desterro. Dessa vez era para que aquela autoridade eclesiástica permitisse benzer o local, tornando-o, desse modo, digno de receber os alicerces para a casa de oração. Eis os termos da solicitação:

– “Dizem o juiz e mais irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Alampadosa, sita na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos pretos, que eles suplicantes alcançaram de V. Excia. Revma. Provisão para colocarem a mesma Mãe de Deus na terra que por esmolas lhes doou Pedro Coelho da Silva e como agora para maior veneração querem benzer a referida terra erigindo de novo um cruzeiro, pois querem os Suppl. dar princípio a dita o que visto ser para obra tão pia não pode haver a menor dúvida. Pedem a V. Excia. Revma. que atendendo ao requerido, assim o determina… E, receber mercê”.

A propriedade do aludido terreno foi, posteriormente, confirmada por cartas régias, datadas de 1750 e 1793.

Iniciada a construção do templo, o que se verificou com grande morosidade e, segundo Noronha Santos, só no ano de 1772, em 31 de agosto, foi benzida a capela-mor pelo Bispo da Diocese – passaram a ser realizados ali os cultos religiosos, enquanto não se ultimava o corpo da igreja.

Interior da Igreja
Interior da Igreja

O terreno doado à Lampadosa compreendia vasta extensão de uma zona então completamente desabitada, pois o limite da cidade era na Rua da Vala (Uruguaiana). Dessa rua para cima era um grande campo vazio. Atualmente pode-se ter melhor ideia de suas dimensões, pois abrange toda a área que vai desde o N.º 13 da Avenida Passos até o N.º 51-A da rua Luiz de Camões. Tudo isso ainda é, hoje, propriedade da confraria.

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Segundo lemos em “História da Polícia do Rio de Janeiro”, magnífico volume de Melo Barreto Filho e Hermeto Lima, nos primeiros tempos da instituição da Irmandade, quando a mesma era constituída apenas de pretos-minas, realizavam eles imponentes festas, de sabor tipicamente africano, evocando usos e costumes das nações selvagens de onde provinham.

Grupos de pretos, então, percorriam as ruas da cidade, vestidos de curiosas roupagens, dançando e cantando em língua nativa ao som de complicados instrumentos, os ritmos bárbaros da longínqua África. Angariavam esmolas em benefício da agremiação a que pertenciam, tudo, porém, na melhor ordem, harmonia e respeito. Elegiam um rei e uma rainha, aos quais eram conferidas todas as dignidades inerentes à sua “elevada” condição, tal como se fossem de fato soberanos de uma nação imaginária. A propósito, oferecemos a transcrição de um termo de coroação dos “monarcas”, passado pelo respectivo capelão da Irmandade:

– “Aos seis dias do mês de outubro de 1811, nesta Capela de Nossa Senhora da Lampadosa, tiveram posse e se coroaram de Rei, Caetano Lopes dos Santos, e de Rainha, Maria Joaquina, ambos, da Nação Cabundá, por estarem eleitos pela sua nação e por terem licença do Ilmo. Sr. Intendente Geral da Policia, e para constar se lhe mandou passar este termo no dia, mês e ano acima declarados. a) Padre Thomaz Joaquim de Mello, Capelão”.

Além dessa faceta interessantíssima da religião dos africanos, havia ainda outra, de acordo com a mentalidade dos seus cultores – a do Rei Baltazar, que festejavam com pompa, escolhendo igualmente imperador e imperatriz. Diz Vieira Fazenda, em seu livro “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”, que certa vez foi coroado “imperador” um criado do Vice-Rei Conde da Cunha, como monarca da Nação Rebolo Tunda. O Vice-Rei achou graça e não se opôs à “honraria” conferida ao seu servidor, e até permitiu que se realizassem os habituais e correspondentes festejos.

Entretanto, apesar do consentimento do governador do Brasil, o Ouvidor do Crime na ocasião, não permitiu as comemorações; somente poderia ser realizada a coroação. Achava ele que essa festa era um atestado do atraso mental daquela pobre gente, o que devia ser impedido.

Com a morte daquele Ouvidor, veio substituí-lo outro de visão mais ampla, que não achava que a mentalidade brasileira pudesse ser aferida por uma festa de escravos. E a tradição foi restabelecida. O então Vice-Rei, Conde dos Arcos, disse através de uma carta escrita a um seu parente, que aqueles “divertimentos deviam ser permitidos, quando não perturbassem a ordem pública. Era um meio de suavizar aos infelizes escravos as agruras do cativeiro e as saudades das ardentes terras africanas”.

Só o tempo, o adiantamento e a compreensão poderiam dar cabo desse sentimento. E foi o que, por certo, aconteceu. Hoje não mais se realizam tais práticas.

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Palácio Tiradentes
Palácio Tiradentes

A Igreja da Lampadosa figura também entre os fatos ocorridos nas últimas horas de vida do Alferes do Regimento de Dragões, Joaquim José da Silva Xavier. Tendo saído da Cadeia Velha (onde hoje está a Câmara dos Deputados Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ), às 8 horas da manhã, o préstito em que vinha Tiradentes tomou a Rua da Cadeia (Assembleia), entrou na Rua do Piolho (Carioca), atravessou o Campo dos Ciganos (Praça Tiradentes), e dirigiu-se para a do Erário (Avenida Passos), a caminho da forca.

Passando pela Igreja da Lampadosa, por cerca das 10 horas, notaram que celebrava-se missa naquele templo. Como era uso na época, foi concedida ao condenado a graça de assistir, pela última vez, ao sagrado ofício, detendo-se então o préstito em frente ao santuário.

Tiradentes foi conduzido até a porta, em cuja soleira ajoelhou-se, e ali permaneceu orando, somente até a elevação da hóstia (aos condenados não era permitido ouvir a missa inteira), quando se retirou para prosseguir até o local do patíbulo, armado no Campo de São Domingos (na ocasião Campo da Polé [1]. Esse logradouro público ficava situado entre as ruas General Câmara e São Pedro, e desapareceu com a abertura da Avenida Presidente Vargas, no ano de 1943).

Chegou o Alferes Silva Xavier aos pés da forca aproximadamente às 12 horas do dia 21 de abril de 1792. Ali pagou com a vida o crime – o maior delito de então – de desejar a liberdade para a sua terra.

A título de curiosidade, transcrevemos o teor da sentença para a execução do Tiradentes:

“JUSTIÇA que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde.

MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi.

      Sebão. Xer. de Vaslos. Cout.º”

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Museu Tiradentes em Sebollas
Museu Tiradentes em Sebollas

A igreja dos nossos dias tem aspecto colonial, depois da remodelação por que passou em 1936. Não apresenta mais o adro cercado com grade de ferro, nem a “fachada acanhada e feia, mais própria de uma aldeia do que de uma capital”, no dizer de Moreira de Azevedo. Tem agora o frontispício alto, uma porta larga e duas pequenas janelas. Acima da porta está colocada uma imagem da padroeira, modelada em cimento, e no alto se vê um pequeno sino, pendente num simulacro de torre. No terreno que servia de adro, há hoje um prédio comercial de três pavimentos, que fica na esquina da Rua Luiz de Camões; do lado esquerdo outro edifício de dois pisos, ambos pertencem à Irmandade. Na rua acima citada (Luiz de Camões) possui também a confraria um outro prédio, esse de apartamentos, contando três pavimentos.

Entre a propriedade residencial e a casa da esquina havia, até bem pouco tempo, um estabelecimento de penhores, denominado “Casa Gonthier”, que foi forçado a fechar as portas em virtude de um Decreto do Governo proibindo essa espécie de negócio. O privilégio para essa atividade comercial, de desaperto às finanças, foi concedido à Caixa Econômica, que realiza aquelas operações a juros módicos.

Onde funcionava a casa de usura – que foi demolida, construiu a Irmandade, em 1945, uma capela com comunicação interna pela nave da igreja, dando saída para a Rua Luiz de Camões, observando-se na sua fachada o mesmo estilo arquitetônico do frontispício da Avenida Passos.

O interior do templo é simples e agradável. No trono do altar-mor, construído em madeira caprichosamente trabalhada, encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Lampadosa, e, aos lados, em prateleiras suspensas à parede e cobertas por cúpulas também de madeira, estão São José e Nossa Senhora das Dores.

Ao fundo ao altar-mor cinco vitrais esplêndidos dão luz e elegância ao recinto.

Nos altares laterais, que são quatro, todos de mármore, estão Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora da Conceição, do lado do Evangelho, e do lado da Epístola, São Mateus e Nossa Senhora Aparecida, havendo ainda outras imagens, como São Baltazar, São Sebastião e Santo Antônio que está logo à porta de entrada, à esquerda, onde é venerado por milhares de devotos que lhe vão pedir proteção.

Não se vê mais no templo as imagens dos mártires São Crispim e São Crispiniano, patronos dos sapateiros, e que até 1910 ali se encontravam, tendo anteriormente estado nas igrejas da Candelária e de São Joaquim (não a da Rua Joaquim Palhares, mas a que foi demolida pelo Prefeito Francisco Pereira Passos, no princípio deste século, para estabelecer a idêntica largura entre as ruas Larga de São Joaquim e Estreita de São Joaquim – hoje Avenida Marechal Floriano Peixoto – e Visconde de Inhaúma respectivamente).

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Escola Municipal Tiradentes
Escola Municipal Tiradentes

Atravessando a sacristia, que fica ao lado esquerdo da nave, lá bem no fundo do terreno, encostada ao muro, está uma grande cruz de ferro – é o Cruzeiro das Almas. Existe esse cruzeiro desde quando foi reformada a igreja, em 1936. Procedendo-se ao trabalho de escavações ali, foram encontradas várias ossadas humanas que, por certo, eram de escravos sepultados no templo que eles próprios levantaram, com imensos sacrifícios e muita dedicação.

Recolhidos os ossos, foram os mesmos depositados sob a cruz, como relíquia, ou como homenagem reconhecida aos primitivos irmãos que tanto se devotaram ao santuário.

Nesse local, diariamente, centenas de velas, fornecidas pela própria igreja a troco de alguns centavos, são acesas em intenção à alma de algum parente morto, ou das almas que penam no purgatório…

Nas segundas-feiras, que é o dia da semana destinado pela igreja ao culto das almas, é intensa a romaria ao cruzeiro da Lampadosa.

Nota

  1. Há várias versões acerca do local onde foi enforcado o Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Alguns historiadores dizem que o patíbulo foi armado na atual Rua Visconde do Rio Branco, esquina da Avenida Gomes Freire, justamente no sítio em que está a Escola Tiradentes.
    No entanto, Joaquim Norberto de Souza e Silva, membro do Instituto Histórico Brasileiro, em seu livro “História da Conjuração Mineira”, editado em 1860, pág. 405, sustenta que o suplício teve lugar no campo existente entre as Igrejas de São Domingos e da Lampadosa.Também Vieira Fazenda, depois de acuradas investigações nos arquivos públicos, onde remexeu documentos da época, chegou à conclusão de que a morte do Tiradentes ocorreu no antigo Largo de São Domingos. A propósito escreveu em “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro” uma longa série de artigos, através dos quais provou o acerto da sua opinião.
    Adotemos, pois, o que nos ensinam os mestres.

Fonte

Mapa – Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa