O Pão de Açúcar, por Vieira Fazenda

Da nunca assaz celebrada Baía Guanabara destaca-se, como guarda vigilante ou sentinela avançada, esta alta e escarpada penedia de 395 metros, à qual o Visconde de Porto Seguro denominou o “cabucho” do Pão de Açúcar, “Pot de beurre”, chamavam-lhe os franceses, como se lê em João de Lery. O nome prosaico que ainda conserva deram os portugueses ao morro. Ao ver deles, o relevo da montanha granítico assemelhava-se à forma de barro em que nos engenhos se coagulava o caldo da cana.
Poetas, prosadores, corógrafos, geólogos e mais cientistas, se pudessem volver a este mundo, de onde já se foram, ficariam estupefatos ante a gigantesca obra, realizada em menos de nove meses pela Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar.
Milagre de única iniciativa particular, esta construção colossal é, no dizer do meu ilustre amigo, Dr. Morales de los Rios, um dos maiores sucessos da engenharia do século vinte.
Que diria Gabriel Soares de Sousa? Asseverou em 1587 ser o Pão de Açúcar excelente para uma fortaleza, mas para seu cume era sempre impossível transportar artilharia grossa!
Saberia Gabriel, hoje, o seguinte: os beneméritos cidadãos que levaram a termo tão audacioso cometimento tiveram de transportar para o alto da Urca e do Pão de Açúcar cerca de 4.000 toneladas de materiais. Demais, para as estações construídas de concreto e aço foi cavada a rocha viva e houve necessidade de fazer concavidades, onde se estabeleceram os complicados maquinismos que funcionam com a regularidade de colossal relógio!
Um parêntese: o nome de Urca provém da semelhança que o morro apresenta com a alta popa de navios flamengos, chamados Urcas, os quais muito frequentes abicavam ao Rio de Janeiro, como se vê na narrativa de João Knivet tão apreciada por Derby, Capistrano de Abreu e Theodoro Sampaio.
Se, há poucos anos, alguém me dissesse: antes de morrer, verás do cimo do Pão de Açúcar o soberbo e empolgante panorama da tua cidade natal, sua esmeraldina baía, suas verdejantes ilhas, suas montanhas sempre cobertas de frondosa vegetação, tomaria eu por utopista ou sonhador quem tal me desse semelhante esperança.
Graças ao meu amigo, o operoso e galhardo Comendador Fredolino Cardoso, um dos diretores da Companhia, no dia 14 de julho do corrente ano tive a plena realidade do que antes pensava ser pura fantasia.
Nunca mais se me apagará da memória tal data memorável, uma das mais felizes da minha não curta existência. Às 10 ½ tomei na Avenida Rio Branco o bonde de Praia Vermelha. No trajeto passei pela mente os audaciosos, que em outros tempos realizavam a ascensão ao Pão de Açúcar. Brauner, o bom e sincero amigo lá foi por três vezes.
Conta Augusto Fausto de Sousa: certo inglês em 1817 subiu e cravou no cume do penhasco a bandeira britânica. Um soldado enxergou nisto uma ofensa. Com perigo de vida galgou as declividades e no dia seguinte arrancava a bandeira inglesa e a substituía pelo pendão lusitano. Valeu-lhe a patriótica façanha baixa do serviço militar.
Mais tarde, outro inglês repetiu o fato do seu patrício. Um grupo de patriotas reuniu-se à noite e resolveu tirar de lá o que era considerado ofensa aos brios nacionais.
Os excursionistas à noite partiram. De madrugada flutuava às brisas do mar a auriverde bandeira brasileira.
Quem não se lembra da coragem e arrojo dos antigos alunos da Escola Militar? Para eles afinal tornou-se a ascensão exercício fácil.
Em 1888, quando D. Pedro II regressava da Europa, os briosos moços estenderam no Pão de Açúcar, do lado do mar, um grande painel em o qual se liam em grandes caracteres a palavra Salve.
Às 11 horas chegava eu à estação inicial da Companhia. Ali me aguardava o comendador Fredolino, incansável cicerone, que tudo explicava, comentava e providenciava com calma, sendo obedecido pelos empregados corretos no trajar e amáveis no trato.
Entrei tranquilo no bonde aéreo. Não me benzi! Esta segurança de espírito deram-me os cientistas, os profissionais, os paredros da nossa engenharia: nenhuma hipótese de insucesso desastroso, ausência de qualquer perigo.
No bonde travei relações com o Sr. Pecego Junior, filho do antigo e provecto funcionário do Banco do Brasil; ia conosco um alemão chegado naquele dia da República Argentina, e de passagem nesta cidade, em viagem para a Europa.
Com o alemão temperou língua o Sr. Pecego. Ficou aquele tão encantado, que prometeu na volta vir fixar residência no Rio.
A pequeno sinal começaram a funcionar as máquinas.
Em menos de quatro minutos estávamos no cimo da Urca a 224 metros de altura. Magnífico panorama!
Havíamos percorrido 600 metros, tal o vão entre a Praia Vermelha e a referida montanha.
Este primeiro trecho foi, como é sabido, entregue ao tráfego no dia 27 de outubro do ano passado. A 2.ª seção que vai da Urca ao Pão de Açúcar mede 800 metros, e só foi inaugurada em 17 de janeiro do corrente ano.
Passamos para outro bonde, cômodo como o primeiro, do qual notamos, com admiração, a imensa floresta que cobre com árvores seculares o profundo abismo que se apresenta aos olhos atônitos dos excursionistas.
À proporção que se vai subindo coisa de cinco minutos parece ir o bonde de encontro ao rochedo.
Pura ilusão! Outra fantasia; o Pão de Açúcar apresenta-se colossal como a querer esmagar os imprudentes que violam os seus domínios de tantos e tantos séculos. Lembra até o monstro descrito por Gandavo.
Eis-nos enfim no termo da viagem.
Pisamos o trono granítico do Capricórnio, como cantou o poeta artista Portalegre!
Da vasta esplanada, que pode conter centenas de pessoas, se nos apresenta o mais maravilhoso e deslumbrante cenário. É imenso mapa desdobrado aos pés do penedo cantado por Gonçalves Dias, Magalhães, e tantos outros.
Se do Corcovado a vista abrange maior horizonte, o Pão de Açúcar leva-lhe vantagem.
Sem binóculo a gente com facilidade localiza os pontos que deseja ver: sinuosidades das praias, direção das ruas e avenidas, estabelecimentos públicos, tudo enfim com prazer e entusiasmo e sem produzir cansaço nos órgãos de visão.
Fica-se “mudo e quedo” diante de tanta magnitude, principalmente em dia como o 14 de Julho de 1913, luminoso, claro e vibrante. Como Camões a gente repete:
“Melhor é experimentá-lo que julgá-lo. Mas julgue quem não pode experimentar!”
Último e incompetente cronista das coisas cariocas, do píncaro do Pão de Açúcar tive a satisfação de ver corroboradas as minhas opiniões sobre a fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Hoje já não é lícito falar em Praia Vermelha. Foi na planície tendo por padrasto o Pão de Açúcar e por atalaia o morro hoje de São João, que Estácio de Sá lançou os alicerces da cidade dedicada a São Sebastião. Quem dúvidas possa ter suba ao Pão de Açúcar.
Ali, na planície, junto ao Morro de São João, deve ser levantado o monumento comemorativo desse fato primordial da nossa história local. Tal deve ser o proceder dos que pretendem levar a efeito o primeiro Congresso de História a realizar-se em 7 de Setembro de 1914.
E porque Varnhagen, interpretando mal um trecho da carta de Anchieta, asseverou o não ser possível do Morro Cameleão avistar-se as redondezas de Paquetá e sim da atual Praia da Saudade, passou o referido por dogma.
Dessa última localidade, positivamente, não se vê o fundo da baía, fato facilmente observado da altura do Morro de São João.
E isto por ocasião da Exposição de 1908 mostrei ao finado Senhor Visconde de Ouro Preto, meu companheiro de viagem em uma das barcas da Cantareira.
Varnhagen, depois Visconde de Porto Seguro, não foi e não podia ser infalível.
Que o digam: Abreu Lima, Homem de Mello, Capistrano de Abreu, João Francisco Lisboa, Augusto de Carvalho e Jayme Reis.
O visconde não conhecia documentos inéditos aparecidos depois de sua morte, as sesmarias da Câmara, os autos de medições destas, a justificação dos serviços de Mem de Sá, o testemunho do Bispo D. Pedro Leitão, a força e alcance da artilharia do tempo.
Dirijo-me agora aos senhores professores de História e Geografia. Por que não levam seus discípulos a um passeio ao Pão de Açúcar?
Que excelente e profícua lição de coisas, que jamais se apagará da memória do rapazio. Preferível é este passatempo a cansar o espírito dos meninos com páginas descritivas, muitas delas inexatas. Decoradas esvaem-se em pouco tempo tais noções como a neblina, que ainda hoje coroava o cume do Pão de Açúcar e pouco e pouco se evaporou aos clarões do sol.
Falta-me espaço. É preciso terminar. Abracei o comendador Fredolino por ter-me proporcionado um dia tão cheio de prazer, estudo e observação! Senti não ver o Dr. Augusto Ramos, o primeiro que ideou o Caminho Aéreo ao Pão de Açúcar, auxiliado sempre por aquele comendador, cujo amor por tão grandiosa empresa se patenteia a todos os instantes.
Aos dois intemeratos cidadãos os parabéns de quem, obscuro, aplaude e aplaudirá sempre varões como estes dois, de iniciativa e fortes de vontade, iguais a Paulo Fernandes, José Clemente, Bittencourt da Silva, Eusébio, João Alfredo, Ottoni, Oswaldo Cruz, e a esse inolvidável Passos, para o qual será sempre pequena a gratidão do povo carioca.
Domingo, 20 de julho de 1913.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Mapa - Bondinho do Pão de Açúcar