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São Sebastião, por Vieira Fazenda

Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo e Igreja de Santa Luzia na Praia de Santa Luzia – 1817 – Thomas Ender – Akademie der Bildenden Künste Wien.
Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo e Igreja de Santa Luzia na Praia de Santa Luzia – 1817 – Thomas Ender – Akademie der Bildenden Künste Wien.

Aos vinte dias do mês de Dezembro do ano da graça de 1583, vindo do Espírito Santo e após tormentosa viagem, chegou a esta cidade o padre Cristóvão Gouvêa, visitador geral dos Jesuítas trazendo em sua companhia os padres Fernão Cardim e Barnabé Telo. Cordialmente foram recebidos pelo reitor do Colégio, padre Ignácio de Tolosa, e por Salvador Corrêa de Sá (que, pela segunda vez, governava a terra) o qual, apesar de manco de uma perna, não se quis furtar a esse dever de cortesia. Aboletados os recém-vindos no Colégio, aí passaram o Natal e organizaram um lindo presepe, onde o irmão Barnabé alegrava as noites com o seu berimbau!

Havia o padre visitador trazido, engastada em um braço de prata, uma relíquia de São Sebastião, e vindo perto o dia 20 de Janeiro, consagrado ao padroeiro da cidade, resolveu de acordo com o governador, celebrar festas populares em memória da transferência da povoação para o alto do morro, hoje do Castelo, bem como das vitórias alcançadas contra os Franceses e Tamoios seus aliados.

Consistiu a festança em um combate marítimo simulado; e para isso o governador, com os principais moradores a rufarem tambores, com bandeiras desfraldadas, disparando tiros de arcabuz, entrou em uma grande barca primorosamente ornamentada, e em cuja popa foi armado lindo altar ladeado de numerosos círios; sobre ele ostentava-se a preciosa relíquia. Vinte ligeiras canoas seguiam a capitânia da frotinha, todas elas pintadas de várias cores, com folhagens e flâmulas; em uma delas tomou lugar o valente Martim Affonso Arariboia, que, de propósito de São Lourenço viera a tomar parte nos folguedos.

Percorrida pelas embarcações grande parte da baía, ao som das flautas, pífaros e tambores, travou-se combate entre os festins e a esquadrilha, ao som da vozeria dos Índios, do ruído dos canhões e dos mosquetes.

Findo o passeio marítimo, dirigiu-se a comitiva à igreja da Misericórdia, trazendo a relíquia sob um rico pálio, cujas varas eram sustentadas pelos vereadores da Câmara. Aí foi celebrado um auto, em tablado armado às portas da Misericórdia, distinguindo-se os atores pela riqueza de seus vestuários, e sendo para notar um mancebo, amarrado a um pau, representando ao vivo São Sebastião, sendo alvejado pelas setas dos presentes; derramaram os circunstantes lágrimas de devoção e ternura! Houve pregação pelo padre Cardim sobre os milagres do santo e o muito que a cidade devia ao seu padroeiro. Beijada por todos a relíquia, pôs-se em marcha a procissão para o Colégio, subindo a então íngreme e ainda não calçada ladeira (hoje da Misericórdia).

Era o préstito, segundo nos refere Cardim em sua encantadora “Narrativa Epistolar”, na frase de Capistrano de Abreu, formado por uma multidão de meninos índios, completamente nus, com cocares na cabeça, braceletes nos braços e guizos nos pés, cantando e dançando, e declara o Jesuíta ser a mais aprazível dança que vira no Brasil, e que se esses meninos se mostrassem no reino, andariam todos atrás deles.

Terminou a festa na pequena igreja velha, ainda feita de taipa, a cujo lado estava o Colégio em obras, sendo já construídos 10 a 12 cubículos com os tetos forrados de cedro, em um dos quais morrera, em 1570, o célebre Manuel da Nóbrega, que apesar de gago sabia perfeitamente levar a alma de seus catecúmenos à convicção e à prática das boas obras.

Com tudo isso alegrava-se Salvador Corrêa, e mormente porque, nesse ano de 1583, havia ele terminado as obras da igreja de São Sebastião e para ela trasladado os restos de seu primo Estácio de Sá, os quais desde 1567 estiveram sepultados na velha capelinha, na várzea entre o Pão de Açúcar e o morro Cara de Cão.

Era desse modo que, já seis anos depois de fundada a cidade do Rio de Janeiro, seus primitivos moradores comemoravam o dia 20 de Janeiro, o qual, se fossemos um povo de cultura cívica, seria o mais notável e mais festejado desta Capital Federal.

Hoje nem mais luminárias nas noites de 17, 18, 19 nem salvas de Villegagnon, às 8 horas e repetidas às 10, nem a festa das canoas; se não fossem as festividades com que sempre a religião se associa aos grandes dias da pátria, o dia 20 de Janeiro passaria totalmente esquecido. Tirai a missa pontifical celebrada na Arqui-Catedral, tirai as novenas e a festa dos Barbadinhos e a procissão do dia 27, que servirá de assunto ao nosso próximo artigo, e o dia de hoje passaria esquecido!

Se na vida de além tumulo o arrependimento pudesse invadir a alma de um bem-aventurado, certo São Sebastião estaria hoje desgostoso de continuar a dar o seu patrocínio aos descendentes daqueles a quem ele animou, ajudou e protegeu!

E não vem de hoje a sem ventura desse santo, a quem poderemos chamar verdadeiramente caipora. Em uma cidade em que se contam ricas, poderosas e florescentes confrarias, não há uma com a invocação desse mártir, a não ser a modesta liga de São Sebastião, estabelecida na igreja dos Capuchinhos, e lutando com todas as dificuldades. A irmandade, da qual era mordomo Francisco Velho, continuou, ao que parece, até 1716, e depois desapareceu.

Em 1733 D. João V, querendo que continuassem a venerar o glorioso padroeiro, ordenou se constituísse uma confraria na Sé Velha; nada foi conseguido. Em tempos do conde de Resende, pôde este restaurar a antiga igreja de São Sebastião, procurou angariar devotos para uma confraria, e apesar de vice-rei e mandachuva, essa corporação não teve estabilidade! Mas onde deparamos a pouca sorte de São Sebastião, de maneira evidente, é desde quando o fizeram trocar sua antiga pousada, no Castelo, e procurar morada na planície. Quase sempre andou como hóspede, em casas alheias, lutando com a má vontade, as desconfianças, as intrigas dos que o acolhiam por honra da firma. Até a Ordem Terceira de São Francisco de Paula, construindo seu magnifico templo, diminuiu de propósito o âmbito da capela-mor, para que dela não se namorasse o Cabido, levando para lá a imagem de São Sebastião!

Aumentada a população do Rio de Janeiro, estendeu-se ela pela antiga várzea, e foi pouco a pouco abandonado o morro do Castelo. A velha igreja de São Sebastião caía em ruínas e estava quase abandonada por deficiência de meios da Câmara.

Esta, em ofício dirigido ao governador, D. Luiz de Almeida, mostrava a sua má situação financeira, não podendo melhorar a igreja do glorioso mártir, a quem a cidade devia tantos benefícios e miraculosa proteção. O Sacrário, como sabemos, já havia sido mudado para a ermida de São José, e a antiga matriz só era frequentada pelos poucos devotos, que não receavam o sol ardente nem o trajeto por lugares ínvios e perigosos, povoados por audaciosos gatunos.

As coisas chegaram a tal ponto, que o prelado Manuel da Costa e Almeida resolveu, em 1659, mudar, desfabricar e destruir a antiga freguesia.

Dando conta desse procedimento à Câmara, esta em sessão de 13 de Agosto, estando presentes os homens bons, o Governador, o ouvidor e o provedor da Fazenda, protestou solenemente contra a ideia do prelado, por intermédio do procurador Francisco Pires Chaves. Recebido o protesto, Almada escreveu ameaçando o Conselho com as excomunhões da Bula da Ceia e declarando que levaria a efeito seu protesto de mudança – porque em todo o ano não havia quem fosse um domingo à matriz; liam-se os banhos e as cartas de excomunhão às paredes – e faziam-se as festas da Páscoa e Natal aos negros do vigário! Grande conflito ia dar-se entre o Poder Civil e o Eclesiástico; mas preponderaram as opiniões de juristas e sabedores, que foram de parecer nada se fizesse sem ouvir a opinião do rei.

A Câmara, em uma longa representação, que assinaram além do procurador Pires os vereadores João Baptista Jordão e Manuel da Rocha, expôs a questão. A coisa deu em nada, e ainda dessa vez ficou descansado São Sebastião. Elevado o Rio de Janeiro à categoria de bispado, na antiga igreja do Castelo funcionou o 1º bispo D. José de Barros e Alarcão e teve assento o primeiro corpo capitular. Por um documento por nós encontrado no Arquivo Público, vemos que o tesoureiro da Sé, o Dr. Clemente Martins de Mattos, para melhor acudir ao serviço da catedral dirigiu ao rei uma petição em 1689, pedindo a desapropriação de uns terrenos pertencentes a Victória de Sousa, viúva do mulato Domingos Corrêa, para melhorar uma casa e quintal, que ele Mattos possuía para as bandas da ladeira do Poço do Pateiro (hoje do Seminário).

Esse Dr. Clemente foi dono da grande chácara de São Clemente, onde fundou uma capela, que ainda hoje deve existir no fim da Rua de Humaitá, e nessa grande zona estabeleceu a primeira fábrica de anil.

Vai começar para São Sebastião o seu longo e verdadeiro martírio de andar de Herodes para Pilatos, tudo sempre por motivo a falta de dinheiro!

Repetindo-se os roubos e sacrilégios praticados contra a Sé – o 2º bispo D. frei Francisco de São Jerônimo lembrou ao rei a conveniência da mudança para a ermida de São José. Apesar da planta feita em Lisboa pelo padre Francisco Tinoco, e orçando a nova obra em cem mil cruzados, deu-se de mão ao projeto. Houve ideia de ser aproveitada a igreja da Cruz, mas no meio de delongas, requerimentos, informações e consultas nada se conseguiu. Foi afinal resolvida a mudança para a Candelária, aplicando-se para as obras quantia necessária. Em 1721 morreu o bispo D. Francisco, e tudo ficou no statu quo.

Em 1733 o bispo Guadalupe consegue a transferência, afinal para a igreja da Cruz, apesar dos embargos da Câmara. Teve lugar a mudança em 23 de Fevereiro de 1734, mas não a furto e de noite, como erradamente diz Pizarro.

Houve o seguinte, segundo lemos em uma cópia das Consultas do Conselho Ultramarino, pertencente ao Arquivo do Instituto Histórico: o governador, a Câmara e o bispo concordaram em deixar na velha Sé a imagem grande de São Sebastião, sendo trazida em solene procissão para a Cruz uma imagem pequena. Terminada a festividade, com surpresa de todos foi em uma das noites seguintes trazida do Castelo para a Cruz a imagem grande, carregada em um palanquim à cabeça de negros. Os causadores desse escândalo foram acremente censurados e repreendidos pelo Governo. Como é de todos sabido, da Cruz saiu São Sebastião para a igreja do Rosário, onde esteve por cerca de 70 anos, e durante esse tempo o nosso santo mártir assistiu com resignação a essa verdadeira guerra do Alecrim e da Mangerona entre o Cabido e a Irmandade dos Pretos, litígio que só terminou com a chegada da Família Real. Em 1746, veio ordem de Portugal para construir-se uma catedral digna desta cidade. Escolhido o local, foi a 20 de Janeiro de 1749 lançada a primeira pedra; começaram as obras, mas tiveram de parar por falta de dinheiro, e a Sé Nova desapareceu como um sonho, continuando São Sebastião a sua triste sina de não ter casa própria e a passar por hóspede importuno.

Tendo sido em 1808 transferida a Catedral para a igreja dos Carmelitas, aí descansou o santo por muitos anos; mas sendo necessário separar a Capela Imperial, foi São Sebastião transferido para a igreja da Ordem do Carmo. Veio a República, houve a separação da Igreja do Estado, esgotaram-se as quantias votadas e o Santo esteve ainda como hóspede por mais de 12 anos, até que, graças ao venerando Sr. arcebispo atual, entrou o glorioso mártir na sua antiga morada, em dias do ano passado. No frontispício da nossa Arqui-Catedral lá está a imagem do padroeiro desta terra, olhos volvidos ao céu, implorando a proteção divina para os ingratos e que por aí indiferentes passam, ignorantes do grande valor moral, cívico e histórico encarnado na memorável data de 20 de Janeiro.

20 de Janeiro de 1902.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Veja também

Mapa - Castelo