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Santa Luzia, por Vieira Fazenda

Igreja de Santa Luzia
Igreja de Santa Luzia

Quantas recordações de infância me desperta o nome da advogada das moléstias de olhos, da qual é, amanhã o dia da festa, comemoração tradicional e antiquíssima por parte dos habitantes desta cidade! Para evitar o sol de Dezembro ia-se a pé, à missa, às 6 horas da manhã, e era de ver-se a romaria imensa de devotos levando promessas, velas de cera e flores para deporem aos pés da Virgem mártir. A praia ornada de bandeiras, galhardetes e palmeiras plantadas de véspera, apresentava um aspecto festivo e loução, como diria frei Luiz de Sousa.

Quanto entusiasmo, quanta sinceridade de crenças, quanto amor às tradições dos antigos!

A praia não ostentava ainda o hospital da Santa Casa, cujas obras, tão bem descritas pelo Alencar na sua Viuvinha, iam em bom andamento, graças à perseverança de José Clemente.

Via-se aí o muro do antigo cemitério da Misericórdia, transferido em 7 de Dezembro de 1840 para a Ponta do Caju, com o nome de Campo Santo, denominação que perdeu em 5 de dezembro de 1851, para tomar a de Cemitério de São Francisco Xavier. Via-se também um prolongamento do Hospital velho, no fim do qual havia um portão, por onde, das 9 às 10 horas da noite, os serviçais faziam a limpeza das enfermarias. Os antigos estudantes aproveitavam-se dessa circunstância para escapulir e poderem ir a uma tasca próxima comprar, para ceia, pão, sardinhas, bananas e queijo.

Devem ainda existir pensionistas desse tempo, os quais não me desmentirão.

Os sinos tocavam alegres, e, de vez em quando, o foguetório excitava a turba dos moleques que se atropelavam por disputar as flechas. Voltando da missa, almoçava o autor destas linhas, e antes de chegar ao Victorio comprava em um armarinho cartuchos de estalos para atirar nas salas do colégio.

Queria isto dizer que se aproximava o dia das férias, e que desde o dia 13 até o dia 20 tudo era permitido, e a palmatória, também chamada Santa Luzia, entrava em descanso. Nessa última semana havia indulgência e a rapaziada podia pintar a manta, porquanto ninguém lhe ia à mão [1]. O suete durava até 7 de Janeiro, que era para os meninos o dia mais triste da vida!

Igreja de Santa Luzia, por Eduard Hildebrandt,
Igreja de Santa Luzia, por Eduard Hildebrandt, via SMB

E por falar nisso, porque se teria dado à palmatória o nome de Santa Luzia? Seria porque a férula tinha cinco buraquinhos? Havia quem dissesse que, enchendo um dos tais orifícios com uma bolinha de cera e um cabelo, a Santa Luzia rachava infalivelmente. No meio das muitas diabruras da minha meninice nunca fiz essa experiência, e é pena, porque poderia dizer agora alguma coisa. O que sei é o seguinte: quando nos caía nos olhos algum cisco ou argueiro era receita certa o dizer-se: – “Santa Luzia passou por aqui, no seu cavalinho comendo capim”, esfregavam-se brandamente as pálpebras, e o cisco que nos incomodava batia em retirada. Bom meio; – não eram precisos os colírios de sulfato de zinco ou de ácido bórico para curar as inflamações de olhos, bastando quando muito um pouco de água posta ao sereno, ou que fosse tirada do poço de Santa Rita.

Para tudo isto bastava ter fé em Santa Luzia e eis por que o Gama Lobo enxergava na santa uma concorrente mais temível do que os seus rivais em oftalmologia.

Parece que me vou desviando do caminho; não fui convidado para tratar dessas frioleiras, mas para descrever antiguidades da igreja e da praia da supradita Santa. Eu principio.

Pouco tempo depois de fundada a cidade, no morro do Castelo, ergueu-se em baixo, na vargem, a ermida de Santa Luzia, na praia da Piaçaba, a qual, começando na ponta do forte de Santiago (hoje Arsenal), do Cafofo e depois do Calabouço, ia terminar p’ras bandas da Lagoa Grande (Passeio Público). Nessa praia construiu, antes de 1646, Duarte Corrêa Vasqueanes uma muralha, que foi destruída pelo mar. Havia aí um trilho sinuoso, chamado posteriormente caminho do vintém, e em eras antigas caminho da forca, pois esse instrumento de suplício estava sempre armado para o que desse e viesse. Isto não é invenção minha; encontrei a sinistra denominação em uns autos, em que estão trasladadas sesmarias dos primeiros povoadores do Rio de Janeiro, e onde a aba do morro do Castelo, que cala para o lado do mar era conhecida pelo nome de morro do Descanso. Isto é o que se chama uma novidade em matéria de História pátria!

Em 1592, governando o Rio de Janeiro Salvador Corrêa de Sá, chegaram da Bahia dois frades franciscanos: frei Antônio dos Mártires e frei Antônio das Chagas, com intuito de fundar casa aqui. Salvador, de acordo com o Conselho e com o prelado Bartolomeu Simões Pereira, mostrou-lhes vários sítios da cidade, obtendo preferência o lugar de Santa Luzia; e por um conchavo com a respectiva confraria, o que tudo consta de uma extensa escritura, aí se aboletaram eles, vivendo em comum com os devotos de Santa Luzia, e para clausura e recolhimento dos Capuchos foi-lhes doado: «todo o chão que há começando de uma cruz de pedra que está antes da dita ermida vindo pelo caminho debaixo e partindo com os chãos de Gonçalo Gonçalves daí irão correndo ao longo da cerca dos padres da companhia até o forte já dito que está abaixo da Sé, deixando à mão direita o caminho da rua pública e do dito baluarte irão correndo pelo trasto desta cidade partindo com ele pela banda debaixo até os chãos de Anna Barroza e daí rumo direito ao mar ficando sempre o caminho livre e serventia pela praia ao longo e irá correndo até dar com os chãos do dito G. Gonçalves pela parte do mar e daí correndo direito à cruz donde começamos a demarcação».

Safa! que estopada! dirá o leitor. Prova-se com isto, porém que a igreja atual de Santa Luzia não está colocada no primitivo lugar.

De fato, com o correr dos tempos, arruinando-se a ermida, a requerimento de Diogo da Silva, ergueu-se a moderna capela em terrenos doados em 1752 por João Pereira Cabral e sua exma. senhora. Foi do meu tempo a igreja de Santa Luzia, apresentando uma modesta torre e um frontispício mais que modesto.

Há poucos anos foram construídas as duas elegantes torres e deu-se ao templo um aspecto mais agradável, abrindo-se portas laterais que dão para uma galeria sustentada por arcos.

Isso facilitou o serviço, sobretudo em dias de festa, em que a concorrência era imensa e tornava-se impossível o ingresso.

Um dos infalíveis devotos dessa festa é o venerando senhor marquês de Tamandaré, que amanhã completa mais um aniversário e que felizmente lá irá, como de costume, render homenagem à mártir de Siracusa.

Altar da Igreja de Santa Luzia
Altar da Igreja de Santa Luzia

Festeja-se também nessa casa religiosa Nossa Senhora dos Navegantes, padroeira dos pescadores e homens do mar, os quais levam às costas, cantando hinos religiosos, o velame roto de suas embarcações pelos vendavais.

É triste e ao mesmo tempo poético e sublime observar esses homens valentes curvando-se diante da proteção da Virgem, cujo auxílio invocaram no meio do perigo.

A imagem de Santa Luzia, que orna o altar-mor, figurou na exposição de Paris e foi oferecida pelo comendador P. Velloso; a antiga acha-se no consistório.

É também digna de nota a imagem de Nosso Senhor do Bonfim, presente do comendador Bernardes.

Os amantes de Caligrafia podem admirar o compromisso-manuscrito, que à primeira vista parece obra de verdadeira imprensa, com ornato de vinhetas, de flores e frutos, cuja pintura de cores vivas parece ter sido feita há dias.

Deve-se a d. João VI a abertura da rua que vai da igreja até o canto da Ajuda, e esse melhoramento foi devido a uma promessa feita pelo rei. Adoecendo dos olhos e ficando bom o infante d. Sebastião, neto de d. João VI, resolveu este levá-lo em 1817 a Santa Luzia. Havia porém uma dificuldade: os carros da Casa Real não podiam passar pelo lado da Misericórdia, onde junto ao Recolhimento havia uns becos estreitos, tanto que o trânsito era feito por baixo de um arco, cujos vestígios ainda se notam no atual edifício da Escola de Medicina. Pelo lado do Matadouro, onde depois esteve o Asilo de Mendigos, a rua vinha pela frente deste e dava volta pela hoje praça de D. Constança, costeava o mar, no ponto em que houve um jogo de bola, e voltava em direção à igreja.

O caminho era interceptado pela grande chácara de d. Anna Francisca da Cruz, viúva de Estevão da Silva Monteiro, chácara cujo portão se abria na praia.

A viúva opunha-se a que se tocasse nos seus muros e pedira indenização na forma da lei pela sua propriedade. Paulo Fernandes Viana meteu-se nisto, foram satisfeitas as exigências da Ordenação; houve vistoria, avaliações, citação dos interessados, julgamento final; d. Anna recebeu 800$, e o rei pode com facilidade cumprir o seu voto.

Tudo isso consta de uns documentos, que li, de uma demanda que durou onze anos, por pretender o célebre Manuel Fernandes da Costa, tapar nessa época o caminho considerado como logradouro público, pois sustentava ele serem seus os terrenos por onde o povo passava, e cuja serventia não era necessária portanto, depois da abertura da nova rua.

Esse Fernandes da Costa também teve demandas com todo e mundo, inclusive com as freiras da Ajuda, com o Seminário de São José, com vários moradores do lugar, argumentando sempre com o teor de sesmarias antigas, pelas quais se conhece quais os primitivos povoadores dessas localidades.

O tal homenzinho tinha filhas dignas de si e animadas de temperamento demandista. Uma delas só arriou bandeira em 1811, depois de sessenta anos de questões com as freiras da Ajuda sobre a posse das terras da Rua do Passeio, parte das quais o Governo considera suas, e que existem ali apresentando aos olhos do nosso high life o aspecto de uma suja dentadura, da qual se tivessem arrancado os grossos molares. E, como o Governo está metido nisso, a Municipalidade nada diz, porque certo é o ditado “com teu amo não jogues as peras” ou antes “o poder é o poder”.

Nesse local foi construída em 1731 uma caixa d’água, reservatório do antigo encanamento da Carioca, o qual passava pelos fundos das casas da hoje rua Evaristo da Veiga.

O moderno aqueduto foi obra de Bobadella, em 1750, e passam hoje por cima dele (dele aqueduto) os carros elétricos da Ferro Carril Carioca.

Mas onde iremos nós parar? Desta maneira iremos até ao Corcovado.

Voltemos ainda à Santa Luzia para dizer alguma coisa sobre a casinha que se nota junto à igreja, circulada por um belo jardim, que era a menina dos olhos de um padre há pouco falecido. Nesse prédio residia o capelão da Irmandade, e esse sacerdote exerceu, por longos anos, tal mister. Só a morte pôde arrancá-lo às suas rosas, cravos, amores-perfeitos e violetas. No tempo da revolta nunca arredou pé dali. Todas as tardes vinha para o portão gozar da fresca da tarde e admirar o belo panorama da baía.

Tinha uma celebridade: além de passar muito bem de barriga, fumava mais de cem cigarros de papel durante o dia!

E a charneca de lua, conhecem? Tal foi o nome dado pelo velho Areias, primitivamente, ao seu estabelecimento de banhos, hoje muito aumentado e frequentado.

E viva Santa Luzia! O resto fica para o ano.

12 de Dezembro de 1896.

Nota

  1. Havia nos colégios do tempo do Tico-Tico a festa de Santo Aleixo em 17 de Julho. Nesse dia enfeitava-se de flores e fitas a palmatória ou Santa Luzia, e havia grande pândega em que tomava parte o alegre rapazio de então.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Veja também

Mapa – Igreja de Santa Luzia