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Órfãos de São Pedro, Vieira Fazenda

Imagem da Igreja de São Joaquim e da antiga sede do Externato de Pedro II, do livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, de Joaquim Manoel de Macedo, publicado na década de 1860.
Imagem da Igreja de São Joaquim e da antiga sede do Externato de Pedro II, do livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, de Joaquim Manoel de Macedo, publicado na década de 1860.

Em afetuoso e significativo festim celebram os bacharéis em letras o sexagésimo quinto aniversário da conversão em Colégio Dom Pedro Segundo do antigo Seminário de São Joaquim, primitivamente Colégio dos Meninos Órfãos de São Pedro.

Tal acontecimento realizou-se, como é sabido, sendo regente do Império Pedro de Araújo Lima, mais tarde Marquês de Olinda, e ministro o inolvidável Bernardo Pereira de Vasconcellos, os quais em 2 de Dezembro de 1837 assinaram o decreto dando nova organização a essa casa de estudos, conhecida hoje pelo nome de Ginásio Nacional.

O histórico dessa instituição desde seu modesto início em um sobradinho da então Rua do Licenciado Antônio Carneiro (hoje de São Pedro) até nossos dias tem sido feito por exímios e ilustrados escritores.

Seria temerário arrojo tentar fazê-lo em algumas tiras de papel, sobretudo quando na comemoração de hoje será ouvido com máximo interesse um distinto filho dessa academia de letras incumbida de tão útil quão importante missão.

Em homenagem, porém, à data deste dia procuraremos estudar a veracidade da opinião do autor dos Annaes do Rio de Janeiro, o Dr. Balthazar da Silva Lisboa, que em contrário do geralmente escrito dá como fundador do Seminário de São Joaquim o Dr. Ignácio Manuel da Costa Mascarenhas.

De fato, à página 119 do 5º volume da supracitada obra assim se exprimiu esse mui conhecido escritor:

“Por ocasião do abandono dos infelizes órfãos, o Dr. Ignácio Manuel da Costa Mascarenhas, vigário colado da freguesia da Candelária, pediu licença para principiar um Recolhimento de meninos órfãos, debaixo da inspeção do Diocesano.

Por provisão de 16 de Dezembro de 1734 mandou-se ouvir a Câmara; esta em carta de 16 de Abril de 1735 informou que aquele digno pároco com esmolas adquiridas com o seu zelo queria dar princípio àquele recolhimento, perto da Igreja de Santa Rita, obra que era muito útil ao serviço de Deus, e ao bem comum; tal foi a origem do Seminário de São Joaquim, destinado para os meninos órfãos, aos quais se dava a educação, que era conveniente aos que buscavam ter ingresso no estado Eclesiástico.”

O ilustrado e operoso Dr. Moreira de Azevedo em sua obra Pequeno Panorama, descrevendo o Colégio D. Pedro II seguiu as opiniões dos autores que o antecederam; porém mais tarde refundindo aquele trabalho e dando-lhe novo título, cita sem comentários a opinião do Dr. Balthazar Lisboa.

Na impossibilidade de analisar esse asserto, recorrendo aos livros da Municipalidade, os quais, como sabemos, foram destruídos pelo incêndio de 1790, lançamos as vistas para as Publicações do Archivo Público.

Com efeito à página 407 do 1º volume das referidas Publicações, lemos a provisão de 16 de Dezembro de 1734 mandando o governador informar o requerimento de Ignácio Manuel da Costa Mascarenhas, vigário colado da freguesia de Nossa Senhora da Candelária, para que se lhe concedesse licença para principiar um recolhimento, nesta cidade, dirigido pelo bispo.

Não dispondo de tempo para consultar os velhos códices do Archivo Publico, confiamos essa incumbência ao inteligente senhor Eduardo Marques Peixoto, digno funcionário daquela repartição. Com a maior presteza encontrou ele o requerimento do vigário da Candelária e mais documentos anexos sobre a questão, enviando-nos, com toda a gentileza, bem acabado resumo.

Na petição inicial o Dr. Mascarenhas declara que, desejando obviar o grande dano espiritual em que caíam muitas mulheres donzelas e órfãs, obrigadas da necessidade, pois, conforme o estilo da terra, às que caíam em pobreza regularmente lhes não restava outro caminho mais que o da mendicidade ou serem más, com repetidas ofensas de Deus, descrédito seu e de seus parentes, dos quais, por isso desamparadas se viam muitas vezes obrigadas a perseverar nas mesmas culpas, e para desviar estes incômodos e perigos, de que a larga experiência de dez anos de pároco o tinha informado, perigos que tinham movido o rei D. Pedro conceder a licença aos oficiais da Câmara desta cidade, pelo alvará de 9 de Janeiro de 1695, do qual a Câmara se tinha usado, e, confiado nas promessas de Deus e nas das esmolas, determinara erigir junto e contígua à Igreja de Santa Rita um recolhimento para 30 órfãs e mulheres pobres, onde vivessem em clausura até tomarem seu estado, e tendo o beneplácito do bispo, por quem devia ser dirigido, e não pelo governador, como ordenava o alvará, por ser a obra fundada, delineada e principiada pelo suplicante, pessoa eclesiástica, por isso pedia licença para principiar o recolhimento de que tratava na forma requerida.

A Câmara, em 16 de Abril de 1735, informava que não oferecia dúvida àquela corporação, nem aos moradores da cidade, por ser a obra do serviço de Deus e bem comum.

Em 4 de Maio do mesmo ano enviou mais o Senado ao governador a cópia do alvará de 9 de Janeiro de 1695.

Em 8 de Maio, ainda de 1735, dava ao Governo da metrópole o brigadeiro José da Silva Paes, substituto de Gomes Freire de Andrade, a seguinte e curiosa informação ao intento do pároco da Candelária: “que o requerimento daquele vigário era tão justo e de tanta utilidade para as órfãs desamparadas deste povo, em que os vícios eram mais frequentes que nos mais, que por si trazia aprovação, não tendo a Câmara desta cidade até então obrado cousa alguma àquele respeito, do qual se não oferecia dúvida pela sua representação junta, porém não devia eximir-se da proteção real, como lhe foi concedido no alvará, pois era sem dúvida que nestas conquistas se não devia inovar estabelecimento algum que Sua Majestade não protegesse pelos seus governadores, sem que aquela permissão pudesse embaraçar que o Reverendíssimo Bispo visitasse e encaminhasse para o bem espiritual tudo quanto julgasse mais conveniente para sua criação. Nesta conformidade devia deferir não derrogando a sua resolução”.

De tudo resulta: tratar-se de um recolhimento para órfãs e não meninos órfãos; o sítio designado junto a Santa Rita exclui a ideia do Colégio dos Meninos Órfãos de São Pedro que, como sabemos, foi ereto junto ao templo dessa invocação. A exigência de ser essa casa sujeita à fiscalização do governador e não do prelado, esfriou o zelo do caridoso vigário, que deu de mão ao projeto, dispensando seus paroquianos das esmolas prometidas.

Pode bem ser que tal instituto não fosse levado a efeito, à vista da deliberação da Misericórdia de fundar um recolhimento de órfãs, cujas obras, iniciadas na provedoria do Dr. Manuel Corrêa Vasques, estavam paralisadas. Havia-se recorrido a uma subscrição pública, diz Felix Ferreira, que nada produzira, e o conde de Bobadella, que tudo podia, nada fazia em bem de uma obra tão digna de seu valimento como a construção de um modesto asilo para órfãs desamparadas; e, se não fossem dois beneméritos e modestíssimos irmãos, Francisco dos Santos e Marçal de Magalhães Lima, essa obra ficaria inacabada, Deus sabe por quantos anos.

Em todo o caso, fica provado que nada tem com o Colégio dos Órfãos de São Pedro e Seminário de São Joaquim o Dr. Ignácio Mascarenhas, como erradamente pretendeu o Dr. Balthazar Lisboa.

Eis como provecto escritor descreve a origem do Colégio dos Meninos Órfãos de São Pedro:

“Há mais de um século, naqueles tempos em que a nossa terra se achava sujeita ao arbítrio dos vice-reis e à vontade da coroa portuguesa, existia em um pequeno sobrado próximo à igreja de São Pedro, um mísero proletário, cujo nome se perdeu, e que exercia o cargo de sacristão-mor, ao ser inaugurado o templo que hoje se ostenta à esquina da Rua dos Ourives. Era o pobre hostiário uma destas almas não enregeladas pela penúria. Lutando pela vida, repartia pelos bairros da miséria o pão que apenas lhe chegava, e nunca malsinando de seu fado acolhia com carinho os seus companheiros de adversidade, os seus amigos de desventura. Um dia, o caridoso sacristão correu ao catre de um inditoso viúvo e o viu cercado de seus dois filhos, infelizes meninos que, extáticos, assistiam ao consumir da existência de seu pai, quase nos estertores da agonia e nos paroxismos da morte.

O sacristão protegia aquele lar, havia muito desfalcado, e previu que dentro em pouco ficariam os dois menores na mais completa orfandade. No meio das dores e dos prantos, no seio da pobreza, que geme calcinada pela escassez de recursos, encontram-se muitas vezes espíritos fortes, a quem os embates da sorte não fazem sucumbir. Desta têmpera era o sacristão; e quando o viúvo exalou o seu último suspiro, não trepidou em trazer para seu tugúrio os infelizes órfãos, sopesando o grande encargo de dirigir aqueles dois entesinhos quase abandonados. Cumprido estava um ato de nobreza, mas aos dois meninos era mister não só alimentar-lhes o corpo, era também necessário esclarecer-lhes a inteligência, ilustrar-lhes o cérebro, e torná-los prestimosos para o trabalho. Grande problema para ser resolvido por quem tinha a bolsa como um tonel das Danaides sempre a esvaziar-se em benefício dos desvalidos. Decorreu pouco tempo; uma manhã um grupo original, esquisito mesmo, era visto a percorrer as ruas desta cidade ainda não emancipada; dois meninos de vestes talares de baeta branca, ostentando no peito uma cruz de baeta encarnada, eram acompanhados por um homem respeitável, que tomava o caminho do paço do governador.

Era o sacristão com seus dois órfãos, que se dirigia para a casa do chefe da cidade; e aí chegando narrou-lhe a triste história dos dois infelizes, contou-lhe a impossibilidade de dar-lhes instrução, porque os seus haveres não o permitiam, e apresentou-lhe uma folha de papel para que abrisse a subscrição em favor dos dois menores. O governador assinou a quantia de 400$, no que foi imitado pelo bispo D. frei Antônio de Guadalupe, a cuja porta também bateu o sacristão.

Percorrendo em longa peregrinação as residências das abastadas famílias dessa época, o sacristão formou o mealheiro dos órfãos, já conhecidos por órfãos de São Pedro; e em sua morada iniciou com eles uma casa de caridade, onde foi crescente o número de socorridos.

Vivendo sempre a expensas do público, constituindo um pequeno pecúlio à custa de esmolas e donativos, saíram os órfãos do sobradinho, residência do sacristão, e então o bispo D. Antônio de Guadalupe instituiu o Seminário dos Órfãos de São Pedro em uma casa próxima à primeira, porém de maior largueza, ereta em terrenos do padre Marques Esteves. Tal é a tradição conservada. Pode bem ser tivesse o sacristão a ideia e o bispo a ampliasse.

Deu-lhe este organização e existência legal; como bem diz o Dr. Moreira de Azevedo, “devemos saudar, pois, o nome do prelado. Sem a sua proteção, sem a sua mão poderosa, teria sobrevivido o Colégio dos Órfãos de São Pedro? Poderia o sacristão-mor sustentá-lo? Não morreria com o seu fundador um estabelecimento tão útil e caritativo? Se o bispo não foi o iniciador da ideia da criação do colégio, foi quem lhe deu vida; não foi o pai, mas foi o poderoso tutor, que instituiu regularmente o seminário”.

A personalidade, pois, de Guadalupe, não pode, nem deve ser esquecida na solenidade de hoje. Em seu favor falam bem alto a provisão de 8 de Junho de 1739 e os estatutos do Seminário dados em 20 de Outubro do mesmo ano.

Benemérito protetor da modesta instituição foi sem dúvida Ignácio da Silva Medella, que em testamento legou certo número de prédios, que por muitos anos enriqueceram o patrimônio do Colégio D. Pedro II. O retrato desse caridoso negociante existe em São Francisco da Penitência e na galeria dos benfeitores da Misericórdia.

Cumpriram-se as previsões do virtuoso Guadalupe, quando, no prólogo dos estatutos, mostrava a necessidade e vantagens da educação da mocidade e quanto dela a pátria devia esperar.

Por notável coincidência assistirá à festa o Sr. arcebispo, que se sentirá contente, vendo em torno de si os sucessores dos meninos de São Pedro, representados pelo que o Brasil tem de mais ilustre nas letras, nas ciências e nas posições sociais, inclusive o próprio chefe do Estado, cujo nome figura nas brilhantes tradições daquela casa de instrução, que tem a glória de haver, como disse alguém, com largo contingente de bem preparados operários colaborado na obra da mentalidade nacional.

2 de Dezembro de 1902.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Mapa - Igreja de São Joaquim