Mãe dos Homens, por Vieira Fazenda

Encravada e como escondida em quarteirão comercial desta cidade, existe pequena e elegante igreja, em cujo frontão está inscrito o lema Stella matutina.
Dedicada à Senhora, sob a invocação Mãe dos Homens, é esta padroeira, com pompa, anualmente festejada no primeiro domingo do mês de maio, graças ao zelo e devoção da venerável Irmandade.
É o santuário em seu interior de forma octogonal com dois lindos altares e capela-mor, ornados de rica obra de talha. Possui a igreja ricas alfaias, paramentos e joias de muito valor.
Ali se admiram, também, algumas boas pinturas devidas ao artista brasileiro Joaquim Lopes de Barros Cabral.
Está o templo situado na atual Rua da Alfândega, um pouco acima do canto, antigamente – da Quitanda dos Pretos, da Quitanda do Marisco, do Capitão Alexandre de Castro, e mais tarde de Pero Domingues.
Aquela rua, – antigo caminho de Capueruçú, – teve os nomes de Diogo de Brito, do Governador, Quitanda do Marisco, travessa da Alfândega, Mãe dos Homens até à da Vala, dos Ferradores até à da Conceição, de Santa Ifigênia até à travessa de São Domingos, de São Gonçalo Garcia até o Campo e também do Oratório de Pedra (ainda existente) e que pertenceu a um certo Barbosinha.
Segundo lemos algures, em antiga escritura, existiu em tempos idos nas vizinhanças da quitanda um oratório com a imagem da Mãe dos Homens. Como era de uso, uma lâmpada alumiava o nicho durante a noite, e em certos dias os devotos do lugar, prostrados ante a Senhora, entoavam o terço. No dia próprio era a Mãe dos Homens festejada, à custa de esmolas, na igreja mais próxima. Aumentando o zelo religioso e os recursos, os crentes buscaram sítio conveniente para levantar capelinha, onde melhor pudessem exercer o culto. Eis a origem provável da Mãe dos Homens, idêntica à de muitas corporações não só do Rio de Janeiro como de outras partes do Brasil.
Ereto canonicamente em 1758, esse sodalício teve vida modesta e pouco pôde fazer em benefício da projetada ideia. Segundo Pizarro, foi o primeiro compromisso aprovado em 25 de julho de 1782, e confirmado pelo beneplácito régio de 21 de fevereiro de 1784.
Já em 1758, um certo Ignácio Martins Aranha formara, com uma casa que possuía na Ilha Seca, o patrimônio da capela desde então existente.
Em documento encontrado no arquivo da Irmandade, com data de 11 de novembro de 1779, consta a medição e custo da cantaria da fachada e do interior do templo, feita por contrato e pelo preço de 2:887$417.
No antigo compromisso lemos ser obrigação da Irmandade sair incorporada em todas as terças-feiras e sextas, logo depois das Ave-Maria, cantando o Santo Terço e Ladainha de Nossa Senhora.
Vem aqui a pelo algo dizer sobre o terço e reproduzir o que nos foi narrado por testemunha ocular, e vemos confirmado em trabalhos do Dr. Moreira de Azevedo. Os meninos iam acompanhar o terço; cada um levava a sua caçamba, que era uma haste de madeira sustentando uma espécie de candeeiro de folha de Flandres, onde era colocado um bico de cera. Logo que este chegava ao meio, os rapazes o apagavam e ocultando-o pediam outro ao regente, que levava um saco cheio de pedaços de velas; o regente dava o cavaco, clamava contra o rapazio, – chamava-lhes furta bicos, mas afinal dava-lhes novo toco.
Não era tudo: os furta bicos faziam grandes bolas de cera e as amarravam com barbantes muito compridos. Quando a reza ia muito animada, os endiabrados atiravam a bola à cabeça de algum devoto e rapidamente puxavam o projetil. Daí gritos, reclamações, brigas e questões desagradáveis.
Com muito vagar continuavam as obras do novo templo, quando resolveu a Irmandade demolir duas casinhas nos fundos da capela para acréscimo da igreja e cemitério; e logo em 1803, deliberou continuar com as obras que há muito tempo estavam paradas. Que o cemitério da Mãe dos Homens chegava até à rua, hoje, General Câmara, temos a prova na descoberta de ossadas humanas, noticiada por um jornal em 12 de abril do corrente ano, nas casas pertencentes à Irmandade, e onde por muito tempo funcionou a Biblioteca Fluminense.
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Em uma das estampas da obra de Debret lá está representada a Igreja da Mãe dos Homens, com a mesma disposição interna que atualmente.
Em 1825 assim se exprimia o padre Luiz Gonçalves dos Santos:
“Tem esta linda capela duas torres, das quais somente a do lado esquerdo está concluída; nela há uma confraria que serve com zelo a Maria Santíssima, concorrendo com o aumento de seu santuário, no qual, nos dias festivos, como nos de trabalho, há sempre concurso de pessoas devotas, que ali acham prontamente missa desde a manhã até ao meio dia.”
A cantaria da torre que falta, há muito tempo, preparada e é guardada em armazém da vizinhança. Dizem ser intuito das futuras administrações dar início a essa obra para complemento da fachada.
Pondo de parte minúcias, facilmente apreciadas nos respectivos relatórios, não devemos calar os serviços importantes prestados pelo juiz jubilado Joaquim José Corrêa, cujo retrato existe em uma das dependências da igreja. Concorreu ele por si e seus confrades para as importantes obras feitas em 1856, tais como: pintura e douramento, abertura dos púlpitos, renovação do soalho do templo e revestimento de mármore do presbitério. Há poucos anos passou ainda a Mãe dos Homens por uma quase reconstrução: foi encanado gás não só para o interior como para a fachada; romperam-se compartimentos estreitos e escuros, o chão foi todo revestido de mosaico, houve pintura geral, douramento e muitas outras modificações, que seria longo enumerar.
Apesar de tão grandes despesas, graças ao tino das administrações, a Irmandade da Mãe dos Homens vai a caminho de prosperidade e, não obstante os tempos que atravessamos, apresenta em seus relatórios importantes saldos. Há pouco tempo foi criada a Caixa de Caridade – destinada ao socorro dos irmãos pobres, e esse nascente instituto já possui bom patrimônio representado por títulos da dívida pública.
O patrimônio da Irmandade, além de apólices, consta dos seguintes prédios: – Rua d’Ajuda n. 12, doado, em 1772, por D. Marianna Maria de Jesus, por escritura lavrada no tabelião Fernando Pinto de Almeida; São José n. 97, edificado em 1792, em terreno que servia de quintal à casa da Rua d’Ajuda. Nesse prédio residimos por mais de dez anos, tendo apenas sofrido um pequeno aumento de 15$000; Alfândega n. 37, construído em 1851, por Francisco Nogueira da Luz, em terreno onde a Irmandade tinha um telheiro, levantado por José Green & Comp., em 1828; Alfândega n. 47, legado por Sebastião Pereira da Silva, em 1820; e o prédio da Rua General Câmara, acima referido, no terreno do antigo cemitério, onde em 1826 construiu uns telheiros Joaquim de Mattos Costa & Comp.
Antes de prosseguir cumpre mencionar o nome de Antônio Ferreira Maciel, um dos mais ardentes devotos da Mãe dos Homens, o qual em 1757 contribuiu para a construção do templo e deixou avultada esmola, bem como pediu em seu testamento que a Irmandade mandasse dizer por sua alma anualmente uma capela de missas, três responsos e mais três missas pelos irmãos que falecessem sem conhecimento da Irmandade, distribuindo-se, no dia dessas missas, mil réis pelos irmãos pobres, que aparecessem na igreja.
Por breves apostólicos do papa Pio VI, de 13 de junho e 14 de dezembro de 1785, goza a Irmandade da Mãe dos Homens do privilégio e faculdade de fazer celebrar a festa da Maternidade da Senhora com o seu rito e missa própria, ainda que suceda transferir-se para outro qualquer dia, de maior rito; bem como a graça de usar sobre a murça uma verônica com a efígie da Virgem.
Por breve apostólico de 12 de novembro de 1861, foi concedido à Irmandade constituir-se em Ordem Terceira dos Irmãos Seculares de São Francisco de Paula. Dependendo o mesmo breve de beneplácito do poder civil, diz em seu relatório (1891) o secretário Jerônimo de Barros Freire:
“Tem a Irmandade, até o presente, permanecido nas condições de sua criação, posto que haja solicitado, em 1874, essa autorização. Sem solução do Estado a respeito do requerido e sempre na esperança dela, depois do referido ano não foi mais assunto de providência da Mesa trazer à evidência o proveito daquele breve… parece-me, porém, pela independência existente da Igreja do Estado, ser ocasião propícia proceder-se nesse empenho, porquanto somente da Diocese depende a provisão competente. Segundo pensamos, nada se tem feito sobre tal assunto, e a Irmandade da Mãe dos Homens está ainda sujeita à jurisdição do pároco da Candelária.”
Antes de terminar estes apontamentos não vem fora de propósito lembrar fatos que, por associação de ideias, se ligam à Igreja da Mãe dos Homens. Perto desse templo habitava Ignácia Gertrudes de Almeida, viúva de Francisco da Silva Braga, a qual, segundo documento do Arquivo Municipal, obtivera da Câmara, em 17 de maio de 1783, carta de trespasse e aforamento, por arrematação em praça. Aí vivia D. Ignácia, com uma filha, que há muito tempo sofria de uma úlcera em um pé. Sabendo uma mulata, – diz Joaquim Norberto, – que o merecimento de Tiradentes não se limitava à prenda de dentista, pois conhecia a virtude de muitos medicamentos particulares, apresentaram-no à viúva e com tanta felicidade, para mãe e filha, que dentro em dois a dois e meio meses operava-se a cura com o emprego de uma água misteriosa.
Desconfiando Silva Xavier da contínua espionagem de que era objeto por parte de Luiz de Vasconcellos, e resolvido a sair do Rio de Janeiro, obteve cartas de recomendação para Ignácio de Andrade Souto-Maior Rendon, fazendeiro em Marapicú. Necessitando ocultar-se por dois ou três dias antes de seguir viagem, pediu hospitalidade a Ignácia Gertrudes. Tendo esta uma filha solteira, não lhe pareceu decente recolhê-lo, como era seu desejo. Lembrou-se, porém, a viúva de recorrer à amizade de Domingos Fernandes da Cruz, homem solteiro, residente à Rua dos Latoeiros, ao qual chamava de compadre. Um sobrinho da velha, o padre Ignácio Nogueira, foi encarregado da missão. Passando por alto particularidades que constam da devassa e do processo, como é sabido, foi o Tiradentes preso em casa de Domingos Cruz, no dia 10 de maio de 1789, por uma escolta comandada pelo alferes do regimento de Extremoz, Francisco Ferreira Vidigal.
A viúva, a filha, o padre e o Cruz, completamente inocentes, como depois ficou provado, foram presos incomunicáveis, e tiveram a primeira e o último os bens sequestrados. Gemeram por longos meses na cadeia.
Na escuridão da masmorra, entre lágrimas, sustos e soluços, segundo é fama, pegava-se D. Gertrudes com a Mãe dos Homens, de quem era ardente devota.
A Senhora ouviu as súplicas e não desamparou a pobre velha, a qual, como o holandês, pagara o mal que não fez!
5 de maio de 1903.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Livro digitalizado
Veja também
- Nossa Senhora Mãe dos Homens, por Augusto Maurício
- Manhã da Quarta-Feira Santa na Igreja, por Jean Baptiste Debret
Mapa - Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens