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A Lampadosa, por Vieira Fazenda

Igreja Nossa Senhora da Lampadosa
Igreja Nossa Senhora da Lampadosa

Das grandes chácaras situadas no campo da cidade[1], além da vala (Rua Uruguaiana) destacava-se a conhecida pelo nome de Gonçalo Nunes.

Era uma vasta superfície, que se estendia desde a atual Rua da Alfândega até a do Cano (7 de Setembro) e Praça Tiradentes, e da Rua do Fogo, antes da Ópera dos Vivos e hoje dos Andradas até a de São Jorge.

Aí se limitava com a chácara do Campo de São Domingos, foreira à Câmara por dez tostões, terrenos pertencentes ao Dr. João Mendes de Almeida, depois a seu cunhado Paulo Carvalho da Silva e mais tarde ao patrimônio do Hospital da Ordem do Carmo.

Ao capitão-mor José de Vargas Pizarro, secretário do Senado, persona grata dos mandões do tempo, aforaram os vereadores em 1721 a chácara do tal Gonçalo, padrasto do padre Duarte Corrêa Vasqueanes.

Parece que a concessão não era coisa muito para que digamos. E foi contra esta afilhadagem que mais tarde o governador Luiz Vahia Monteiro protestou energicamente.

Falecendo em 1741 o Pizarro, coube à sua filha D. Leonor Maria de Vasconcellos essa grande zona da cidade.

Com consentimento do Senado da Câmara, e mediante o foro de três mil e duzentos, D. Leonor em 1747 vendeu a Pedro Coelho da Silva, parte de sua grande propriedade, compreendida entre a atual Avenida Passos e a Rua de São Jorge, local em que está hoje o Tesouro Nacional (antiga Casa dos Pássaros) até a Rua do Alecrim (Hospício).

Ora, in illo tempore, existia na Igreja do Rosário a Irmandade da Senhora da Alampadosa, como então se dizia. Ou por brigas com os donos da casa, porquanto o hóspede depois de três dias fede, ou porque os da Lampadosa quisessem proclamar sua independência, certo é que procuraram levantar, habitat próprio.

Veio-lhes em auxílio Pedro Coelho da Silva. Ele e sua primeira esposa Tereza de Jesus de Almeida (a segunda chamava-se Maria da Penha) doaram, com o palacete da Câmara, aos confrades da Lampadosa seis braças de frente e vinte e cinco de fundos, com as condições constantes da escritura de 7 de Fevereiro de 1748.

Neste documento se lê que a testada ou a frente do terreno cedido olhava para a Rua da Cruz (Ouvidor). Prova isto que naquele ano ainda não estavam povoados o Largo de São Francisco de Paula e vizinhanças. Era um imenso descampado, onde só em 1749 se tinham de lançar os alicerces da Sé Nova (Escola Politécnica), único edifício em construção, que existiu até muitos anos depois nessa grande área. Outro houve, a “Casa da Aula”, mas esta fora removida mais para as bandas do sertão. Desta casa, pertencente aos Jesuítas, já me ocupei em 1901.

Não eram de todo caiporas os devotos da Lampadosa. Anos antes (em 1745) haviam obtido também do licenciado Plácido Pereira dos Santos dez braças de testada com vinte de fundos para construção de uma capela. Queriam a terra sem foro, a título de esmola, e para isto dirigiram requerimentos ao rei D. João V. O Fidelíssimo mandou ouvir a opinião de Gomes Freire de Andrada. Este declarou que a graça podia ser concedida contanto que fosse em terras para o fim do Campo, porquanto “nele se fazem exercícios gerais das tropas”. Parece, salvo melhor juízo, que não pegaram as bichas.

Não aconteceu o mesmo com a doação de Coelho da Silva. Antes que este se arrependesse, e para evitar dúvidas, levantaram ali os devotos um cruzeiro com concessão do bispo Dom Antônio do Desterro. Benzido o terreno pelo cura da Sé, Manuel Rodriguez Cruz, em 23 de Março começaram paulatinamente as obras concluídas, diz Noronha Santos, em 31 de Agosto de 1772.

Para saber o que foi esse santuário até nossos dias, basta ler a descrição feita em 1877 pelo Dr. Moreira de Azevedo: – templo acanhado, feio, mais próprio de uma aldeia do que de uma capital. Já no tempo do padre Luiz Gonçalves dos Santos escrevia este, que a Igreja da Lampadosa, servida por uma confraria de pretos minas, devia ser dissolvida, tão indecente era!

Mudaram-se os tempos, e a sorte da capela também. Gente operosa tomou conta da administração. A Irmandade passou a Ordem Terceira, fizeram-se obras importantes, ou antes, fez-se completa reconstrução. Hoje a Lampadosa é templo elegante e não faz mau papel entre as modernas construções do antigo Campo da Polé.

O presente aí está à vista de todos.

Interior da Igreja
Interior da Igreja

Do feio passado existe memória em uma estampa da obra de Debret. Nela se vê o campanário com dois sininhos, e a fachada baixa e sem elegância. Notam-se também os fundos da casa do brigadeiro Manuel Luiz Ferreira, o Manuel Luiz, o da segunda Casa da Ópera há pouco demolida, nas proximidades da Câmara dos Deputados.

Naquela casa da Rua do Sacramento morou, é bom lembrar, José Bonifácio, na época da Independência. Mais tarde nas lojas funcionou a Fama do café com leite, do célebre Braguinha.

Na Lampadosa existia a devoção do rei Balthazar, composta de pretos africanos de diferentes nações. Elegiam imperador, imperatriz, rei e rainha. Nos domingos e dias festivos saíam à rua, cantando e dançando à moda de seu país com o fim de tirar esmolas para o seu patrono negro. No tempo do Conde da Cunha resolveram os pretinhos coroar imperador o fâmulo do vice-rei – Antônio da Nação Rebolo Tunda. Eis uma prova de que o engrossamento é tão velho como o mundo e apanágio de todas as raças. O conde consentiu na coroarão e permitiu as festanças costumadas.

O ouvidor do crime, Carvalho chamava-se ele, permitiu a primeira parte do programa, a segunda não. Ora aí está um magistrado mais realista que o próprio rei. Se vivesse, era capaz ele proibir as romarias da Penha, assinaladas hoje pelos rolos, cabeças quebradas, revólveres e facadas. E se duvidassem acabava com o carnaval, as manifestações, os cinemas et reliqua. Mas o Carvalho antecessor do Vidigal morreu, e não há mal que sempre dure.

Em 1781 restauraram os pretos o Império, e tudo ficou como dantes. Que os folguedos continuaram, di-lo o Conde dos Arcos em uma carta particular. Parece que Dom Marcos de Noronha e Brito era apreciador desses zés pereiras. Disse ele que tais divertimentos deviam ser permitidos, quando não perturbassem a ordem pública. Era um meio de suavizar aos pobres escravos as agruras do cativeiro e as saudades das ardentes terras africanas. Já se vê que o conde era homem de ideias adiantadas.

Dizem vários historiógrafos: que antes de subir ao patíbulo o Tiradentes ouvira parte da missa ajoelhado à porta da Lampadosa. Esse fato mais me convence de ter sido o infeliz Mineiro supliciado no antigo Campo da Polé. Era o único lugar apropriado para uma execução espetaculosa. Aí faziam as tropas exercícios.

Entre as minhas notas encontro uma, que mais justifica a minha humilde opinião. Em 23 de Setembro de 1780 a Câmara deliberou estabelecer no referido campo uma feira semanal de cavalos, boi e mais animais. D. Beatriz de Vasconcellos protestou contra o esbulho de terras, de que tinha domínio útil. Pediu retribuição, dando-se-lhe outras braças em sítio próximo. Ouvido o escrivão, reconheceu o direito da reclamante. Mais tarde, em 1791, o síndico declarou que o mercado público não fora levado a efeito; mas que o Conde de Resende o destinava para Rocio da cidade. Em todo caso, muito antes de 21 de Abril de 1792, D. Leonor foi indenizada, ficando livre e desimpedido todo o terreno que ia por traz da Sé Nova, frente da Lampadosa e todo o campo que vai até à Rua do Piolho (Carioca).

Percorrendo o Santuário Mariano não encontrei até 1723 igreja alguma em Portugal e no Brasil com a invocação de Lampadosa.

Nos nossos antigos anais marítimos figura, no tempo de Bobadela, uma importante nau de guerra com aquele nome. Lampadosa foi a alcunha de um antigo delegado de polícia no tempo do Império. Se me não falha a memória chamava-se Cunha, e era médico.

Nos jornais da oposição, no tempo da regência, encontram-se alusões à Lampadosa. Falam em devotos da Lampadosa, em Clube das Lampadosas, em milagres da Lampadosa, etc. Houve até um jornaleco: “O Sino da Lampadosa”. Moraria por ali algum mandachuva do tempo, ou alguma deidade a que os magnatas prestassem culto? Nunca achei quem me explicasse tal insistência nos corsários desse tempo, tão cheio de ódios e rivalidades políticas.

No domingo atrasado celebrou-se na Lampadosa a festividade a São Crispim e São Crispiniano. Sei que estes dois mártires são patronos dos sapateiros. Em Soissons há um grande templo a eles dedicado. Em Lisboa houve uma igreja elevada no tempo de Dom Affonso Henriques em 25 de Outubro para comemorar a tomada da cidade aos Mouros pelo primeiro rei português. Esse templo foi destruído pelo terremoto de 1755. Mais tarde foi reconstruído e ainda lá existe.

Quanto à Irmandade dos referidos santos no Rio de Janeiro, só posso informar que é antiga. Conheço um testamento feito em 1667 por um sapateiro apatacado, Manuel Pereira. Deixou à Misericórdia duas casas na Rua da Candelária, um preto, oficial do mesmo ofício, peças de cordovão, carneiras, pano de linho, etc. Neste documento Pereira declara ser confrade do Rosário e de São Crispim e São Crispiniano.

Sei também que, antes destes santos virem para a Lampadosa, estiveram na Candelária e na Igreja de São Joaquim (hoje demolida).

É o pouco que tenho a responder ao amável missivista anônimo que se assina humilde sapateiro. Se o meu admirador (sic) não ficar satisfeito, tem bom remédio. Recorra ao Dr. Antônio Luiz Pedro de Alcântara e ao meu amigo Arthur Sabrosa (secretário de São Crispim), cuja casa comercial é ali no Canto da Portuguesa com a Rua de Antônio Martins de Palma, ou em linguagem moderna, Hospício e Candelária.

Quem dá o que tem não é obrigado a mais.

Domingo, 20 de Novembro de 1910.

Nota do Editor

  1. Chamava-se Campo da Cidade toda a vasta superfície compreendida entre o antigo fosso (Rua da Vala) e os mangues de São Diogo (hoje Cidade Nova). Ainda em 1711 toda esta imensa área era assim designada nas memórias que relatam a tomada da Cidade pelos franceses, apesar de se achar já por esse tempo retalhada e edificada em muitos lugares por diferentes chácaras. (Haddock Lobo no livro Tombo das Terras Municipais, pág. 10. 1863)

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Mapa – Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa