A Candelária, por Vieira Fazenda

Foi ontem permitida a entrada de visitantes na igreja de Nossa Senhora da Candelária, que se acha em reconstrução.
Vimos ali entrar, sucessivamente, grupos e grupos de pessoas, que iam admirar aquele vasto templo, de uma magnificente construção e de elevada riqueza.
Eis um monumento que, no seu gênero, se pode defrontar com os mais citados das principais cidades europeias.
O guarnecimento de suas paredes é todo de mármore, na parte superior branco e no sopé preto raiado; assim como de mármore são os altares, as colunas e o coro. Foi a casa Cresta, desta cidade, que se encarregou da importação e fornecimento desta pedra da Itália.
O corpo da igreja tem seis altares, três de cada lado, e na nave central, vastíssima e elegante, existem mais dois, sendo o da esquerda destinado ao Santíssimo Sacramento e o da direita a Nossa Senhora das Dores.
Todos os altares são de mármore branco, tendo duas colunas de talhe perfeito. Sobre os dois da nave central, salientam-se as cúpulas, douradas, com quatro escudos cada uma, onde sobressaem, em alto relevo, figuras de santos, em busto todas prateadas.
O zimbório, que jorra flocos de luz sobre aquela nave, ilumina esplêndida e artisticamente diferentes pinturas, em tamanho mais do que natural para a altura em que se acham, representando assuntos bíblicos, e que guarnecem não só o teto do mesmo zimbório, como o da capela-mor. Aquela luz, incidindo sobre esses quadros, faz-lhes ressaltar os dourados e as cores vivas e verdadeiras que os animam.
A capela-mor grande e suntuosa, tem de cada lado duas tribunas, cuja balaustrada, formada por colunatas de um torneado difícil e elegante, lhe imprime feição característica.
O altar-mor, suntuosíssimo, forma, à frente, como que um pórtico sustentado por duas grossas colunas, as quais por seu turno, sustentam um frontão, que é, talvez a obra mais admirável que vimos naquele conjunto de coisas admiráveis.
Pena é que a figura de anjo, que encima o frontão, não esteja em relação com os outros dois anjos, que estão dos lados, num plano bastante inferior e mais saliente. Estes, que são de uma escultura irrepreensível, representam figuras de menor dimensão do que aquele – o que não devia ser. Além disso o anjo, que parece acaçapado (permita-se-nos o termo), tanto por estar mesmo de encontro ao teto como pelo modelado do pescoço e da cabeça, tem esta de um tamanho enorme, relativamente ao corpo.
Este e o das pinturas ou quadros do zimbório foram os únicos defeitos com que deparamos na rápida visita que fizemos ao formoso templo da Candelária, cujas obras, salvo incidente inesperado, deverão estar concluídas em 1898.
Vamos agora dizer duas palavras sobre os quadros que hão de decorar a nave central e o coro, e que são devidos ao pincel do célebre e distinto professor João Zeferino da Costa.
Dos esboços que vimos achamos que não podiam ser melhor escolhidos os assuntos, nem estes aproveitados com mais arte e mais distinção.
O primeiro quadro representa a partida dos fundadores da primitiva capela da Candelária, da ilha de Palma para as Índias, em 1630.
O segundo, a tempestade, a promessa e o milagre, em alto mar, na mesma época.
Neste destaca-se a cabeça e o rosto de Antônio Martins de Palma, de uma brilhante concepção.
O terceiro, representa o desembarque, no Rio de Janeiro, no referido ano. Aqui chama a atenção o grupo que, ao desembarcar, dá graças a Deus, sendo admiráveis as duas mulheres que estão de joelhos.
O quarto é a inauguração nesta cidade e no mesmo ano, da capela da Candelária, em cumprimento do voto.
O quinto, a benção da primeira pedra do atual templo, no Rio, em 1775. Neste quadro, de um trabalho soberbo e atraente, não foi descuidado o mais insignificante detalhe; desde o prelado, que vem lançar a benção, até ao servente de pedreiro, tudo perfeito. Que belo conjunto, em que há tanta verdade e tanta arte!
O sexto apresenta-nos a primeira parte do atual templo e a trasladação das imagens para o mesmo em 1811.
O sétimo, é a coroação da virgem.
O oitavo, a invocação de Santa Cecília; este maravilhoso trabalho, de uma acariciante poesia, merece um estudo e uma descrição especiais.
É admirável o que o esboço nos representa; é admirável a perspectiva do quadro, Aguardamos, pois, a tela, com seus coloridos; aguardamos essa deslumbrante obra, quando completa, para dela dizer a grata impressão que nos causou, para dizermos como nos deleitou a vista.
Aguardaremos… se Deus quiser.
* * *
Pretendem muitos que a fundação da igreja da Candelária foi em 1630; mas essa pretensão, ainda agora revelada nos quadros ontem expostos, parece errada.
A lenda diz que Palma fizera o voto de erigir a capela logo que chegasse ao primeiro porto. Ora, não é natural que ele só tratasse de o cumprir em 1630, quando em 1613 já estava no Rio, e tão conhecido era, que foi nomeado, nessa época, para comissão que só se dava a homens bons e abonados.
É o que se prova com a cópia do seguinte documento, tirado de uma obra intitulada “O Tombo ou cópia fiel da medição e demarcação da Fazenda Nacional de Santa Cruz, segundo foi havida e possuída pelos padres da Companhia de Jesus, por cuja extinção passou à nação.” – 1829 –. Tipografia de Lessa e Pereira.
Convém notar que o Dr. Mello Moraes viu esse documento, citando-o apenas perfunctoriamente em um dos seus trabalhos sobre a Candelária.
Damo-lo por extenso para servir de base às investigações dos que houverem de escrever ainda sobre a origem e fundação desse templo visitado pela imprensa desta capital, ontem, quando foi admirar os cartões do eminente mestre brasileiro, o pintor Zeferino da Costa.
“Aos quatorze dias do mês de setembro do ano de mil seiscentos e treze, pelo Reverendo Padre Procurador da Companhia de Jesus, Matheus Tavares, foi dada a mim Escrivão esta petição com o despacho nela conteúdo, para que citasse a Baltazar Borges para uma medição, que ia fazer aonde chamam Guaratiba, e eu dito escrivão logo no dia dito citei a Baltazar Borges, e o notifiquei para a dita medição e me disse que não tinha dúvida a se fazer a medição, que se fizesse mui embora e de como assim se passa na verdade, fiz este termo e eu Manoel da Rocha, Escrivão das medições o escrevi – Manoel da Rocha.
“Em os dezessete dias do mês de setembro de mil seiscentos e treze, em Guaratiba, nos currais dos Reverendos Padres da Companhia, aonde chamam Santa Cruz, eu Manoel da Rocha, Escrivão das medições, dei juramento dos Santos Evangelhos a Antônio Martins da Palma, conforme o despacho atrás para que bem e verdadeiramente fizesse a medição de que era encarregado e o dito Antônio Martins assim o prometeu fazer de que eu dito Escrivão fiz este termo que assinei com o dito Antônio Martins da Palma. – Manoel da Rocha da Ilha. – Antônio Martins da Palma.”
22 de Setembro de 1896.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
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