Convento de Santa Teresa (II), por Joaquim Manuel de Macedo
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II
Por mais que se esconda no seio profundo do bosque, a baunilha se anuncia ao longe pelo ativo perfume que em torno derrama, e de que as auras que passam voando levam as asas embalsamadas. O retiro a que se acolhe às vezes a virtude, a modéstia com que esta se furta à admiração do mundo, não a ocultam jamais tão completamente que além dos muros de um e dos véus da outra não se faça sentir a sua fragrância celeste.
A casa arruinada da chácara da Bica tinha-se tornado objeto do mais vivo interesse e de veneração para os habitantes da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro: nela se asilavam as duas flores precursoras do Carmelo brasileiro.
A fama das virtudes das duas exemplares donzelas, e especialmente a reputação de santidade que sem o pensar havia adquirido Jacinta de S. José, transformaram aquele velho e humilde teto em um recolhimento prestigioso, santificado pelas orações e aplaudido pelos anjos.
Ninguém via as duas religiosas, à exceção do padre José Gonçalves e do confessor que as dirigia; ouviam-se, porém, as suas vozes, entoando cantos e rezando o ofício de Nossa Senhora.

Depois de terminadas algumas obras indispensáveis para tornar verdadeiramente habitável a casa arruinada, Jacinta determinou fazer levantar ali mesmo uma capela consagrada ao Menino Deus. Sentia que lhe faltavam recursos para realizar um tal empenho. Contando, porém, com o auxílio da Providência, vendeu algumas jóias que possuía e com o produto delas ousou encetar a construção da capela.
Era então governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade, depois conde de Bobadela e sabendo ele do que se passava, e vindo no conhecimento de que o bispo d. frei João da Cruz tinha dado autorização para aquela pia e modesta obra, quis também ter nela a sua parte e concedeu uma subvenção mensal, que junta às esmolas dos fiéis, facilitaram a Jacinta de S. José e a Francisca de Jesus Maria os meios de executarem o seu pensamento.
Os trabalhos progrediam com uma atividade infatigável. Os operários aproveitavam todas as horas do dia, e à noite, ao clarão do luar, os curiosos viam os vultos brancos de duas mulheres silenciosas que sobre seus ombros carregavam pesadas pedras para junto das paredes que se levantavam. Eram elas as duas irmãs que esqueciam o descanso, e o sono, e a delicadeza do seu sexo, levadas pelo desejo ardente de verem mais depressa acabada a sua capela.
Em 1743, no dia de S. Silvestre, o cônego doutoral Henrique Moreira de Carvalho, com autorização do bispo, benzeu a nova capela, e no dia da Circuncisão do Senhor, do ano de 1744, as duas irmãs vestidas de capas e saias pardas, e com um véu preto na cabeça, receberam ali o pão dos fortes.
Do lado do Evangelho, sobre o presbitério da capela, Jacinta fizera colocar um postiguinho com o seu ralo de folha, e ainda um pano que impedia a vista, para servir de confessionário.
Esta capela subsiste ainda hoje, e encontrá-la-eis na rua de Matacavalos[1], entre as do Lavradio e dos Inválidos. Se quiserdes visitá-la, entrareis por um simples portão em um pátio de triste aspecto. No fim do portão achareis uma varanda que não menos triste vos parecerá. Da varanda passareis à capela de limitadíssimas proporções. Vereis sobre o presbitério dois velhos postigos; sobre o altar a imagem santa do Menino Deus; para trás do altar, e do lado do Evangelho uma portinha baixa e estreita que se abre para a sacristia pequenina e acanhada, como o corredor de uma casa humilde.
Não gastareis na vossa visita mais de dez minutos, e voltareis desagradavelmente impressionados pela pobreza ou quase miséria em que se deixa a capela do Menino Deus, e pela ruína que a ameaça e que nos ameaça de perder nela, além de um puro e sagrado seio de orações, um teto histórico e recomendável por suavíssimas recordações, e por um passado cheio de mística poesia.
No Brasil ainda não começou a demonstrar-se verdadeiro empenho em conservar igrejas, capelas, simples casas ou simples objetos que se recomendem por algumas recordações históricas. Destruímos esses tesouros do passado sem dó nem piedade, e quando os não destruímos, deixamos que o tempo os destrua sem nos lembrarmos de que há uma espécie de indiferença que um pouco se aproxima do vandalismo.
A capela do Menino Deus parece condenada por essa fatal indiferença, e nem lhe vale o sentimento religioso, que a devia defender.
Praza ao céu que estas minhas palavras consigam despertar o zelo que dorme, e fazer com que apareçam alguns católicos dedicados que auxiliam os últimos devotos que ainda não abandonaram aquele humilde, mas sagrado teto.
A capela do Menino Deus nunca chegou a ser o jardim do Carmelo brasileiro. Ali, porém, nasceu e foi acariciada, cultivada e fortalecida a idéia da fundação do primeiro convento de carmelitas descalças no Brasil. Ali passaram oito anos as duas irmãs em solidão completa, sós e sem saudades do mundo. Ali sofreu Jacinta duros martírios, multiplicando-se extraordinariamente os seus padecimentos nervosos e as lutas com o demônio, e ali também ela fruiu gozos celestes do amor divino nas suas visões admiráveis e no embevecimento de uma devoção profunda. Ali, enfim, novas irmãs e novas esposas de Cristo foram encontrá-la mais tarde, atraídas pelo encanto da virtude e da religião.
A primeira que bateu à porta do recolhimento do Menino Deus foi Rosa de Jesus Maria, que se acolheu àquele retiro aos 15 de Março de 1748. Mas, a 14 de Julho do mesmo ano, Francisca de Jesus Maria saía pela mesma porta para entrar pela do céu.
A irmã de Jacinta morreu com a mais perfeita contrição: morreu sorrindo, como se saudasse a hora do seu triunfo. No meio de aflições dolorosas que precederam ao seu passamento, adivinhou-se-lhe o padecer, mas não se lhe ouviu uma queixa; e dizendo-lhe o confessor que podia gemer para desafogo da dor, ela entreabriu os lábios e murmurou somente: “Ai, meu Deus!”.
Refere a crônica fenômenos surpreendentes que se observaram nessa piedosa donzela ainda depois de morta; e eu não hesitarei em lembrá-los, embora reconheça que não me cumpre discuti-los.
Disse-se que o rosto da finada se mostrara risonho, que seus olhos tornaram a abrir-se e brilharam com o fulgor da vida; que seu corpo perdera a rigidez cadavérica, e que durante dois dias se conservara incorrupto. Acrescenta-se que o povo correra em multidão a testemunhar o milagre; que os terceiros de S. Francisco, excitados por tais boatos, acudiram a exigir a defunta, pretextando ter Francisca pertencido à sua ordem; e que então Jacinta, adivinhando o motivo de um zelo tão inesperado, e desejando que ficassem na capela os restos mortais de sua irmã, com fé viva em Deus se voltara para o cadáver e lhe falara, dizendo: “Francisca, veste-te de corrupção!” E que a estas palavras o corpo, de súbito, se corrompera e se tornara hediondo e fétido, retirando-se logo os terceiros de S. Francisco sem mais repetir suas instâncias.
Em troco da irmã que perdera, viu Jacinta, nos últimos meses daquele mesmo ano e nos dois anos seguintes, chegarem mais dez irmãs espirituais ao recolhimento; e contando as novas flores que rescendiam naquele jardim, compreendeu que era tempo de transformá-la em berço do Carmelo brasileiro, e começou a fazer praticar as regras de Santa Teresa, por isso mesmo que pareciam mais severas e difíceis.
O governador e o bispo foram visitar o santo retiro, e tão completa pobreza encontraram, que tiveram de descansar, sentando-se no degrau da porta por não haver cadeiras. O governador Gomes Freire de Andrade resolveu auxiliar eficazmente a construção de um convento, que se determinou levantar ao lado da capela de Nossa Senhora do Desterro, no monte do mesmo nome, e recomendou ao bispo que tratasse de obter as licenças do rei e de Sua Santidade; e o bispo d. frei Antônio do Desterro concedeu que as religiosas trocassem a saia e a capa de droguete castor pardo e véu de fumo, que até então haviam usado, pelo hábito de estamenha parda e capa de baeta branca e touca desta mesma cor, modificando assim o hábito das carmelitas descalças em atenção ao clima ardente do Brasil.
No dia 21 de Junho de 1750, foi lançada a primeira pedra do mosteiro de Santa Teresa; e um ano depois, Jacinta e suas companheiras ouviram missa e receberam o pão sacramental, pela última vez, na capela do Menino Deus, e foram habitar a casa do Desterro onde em algumas acomodações provisórias deveriam ter o seu noviciado.
O breve de Sua Santidade, chegado então, dispunha que as religiosas professassem a regra de Sta. Clara. Jacinta de Jesus, porém, insistiu em querer para si e suas irmãs as instituições de Santa Teresa. Freire de Andrade, protetor destas religiosas, empenhava-se em realizar os seus desejos. O bispo, pelo contrário, sustentava a conveniência da disposição do breve, e não se queria prestar a intervir em favor da pretensão das reclusas.
O bispo d. frei Antônio do Desterro obedecia a um conselho da consciência, procedendo assim, porque entendia que a regra de Santa Teresa tinha graves inconvenientes para ser observada escrupulosamente no Brasil, à vista de certas condições naturais do país. Parece, porém, que a discordância de opinião entre ele e o governador acabou por tornar-se em uma luta caprichosa, pela qual não pouco sofreram as reclusas.
É notável a carta que, a 22 de Abril de 1753, dirigiu o bispo ao governador. Ei-la aqui: “Esteja V. Ex. certo de que o mosteiro do Desterro há de ser mosteiro de religiosas carmelitas reformadas, e que se há de servir a Deus nele, e que Deus lho há de pagar a V. Ex.: nisto tenho eu fé; mas se Jacinta de S. José há de ser freira nele ou não, para isto nem tenho fé, nem tenho luz; mas é grande e infinita a misericórdia de Deus, e sua divina onipotência.”
E esta profecia realizou-se, porque o mosteiro do Desterro tornou-se convento de carmelitas descalças. Mas, nem o conde de Bobadela pode vê-lo, nem Jacinta de S. José conseguiu ser freira professa. nem o bispo d. frei Antônio do Desterro testemunhou aquele fato, pois que todos morreram antes que isso tivesse lugar.
Entretanto, a diretora das reclusas, Jacinta de S. José, não se dobrava à manifestação da vontade do bispo. Parecia-lhe que em suas visões recebia do céu uma ordem para prosseguir no seu empenho. Quando o silêncio reinava para todas as suas companheiras, a voz de um anjo, a voz de Santa Teresa, a voz de Deus soavam aos seus ouvidos e lhe diziam: “Avante!” A flama da inspiração cada vez mais brilhante se acendia em sua alma.
Em Novembro de 1753, Jacinta deixou inopinadamente o mosteiro, e embarcando-se para Lisboa, dali voltou em 1756, chegando ao Rio de Janeiro a 17 de Abril e trazendo consigo um breve apostólico que satisfazia as suas aspirações, e que obtivera por pedido feito por el-rei a Sua Santidade.
Mas, nem assim, pôde vingar a suave esperança de Jacinta. Os anos correram em lutas estéreis e em objeções multiplicadas.
No dia 1.° de Janeiro de 1763, o conde de Bobadela, estremo protetor das reclusas, exalava o último suspiro, e antes de morrer manifestava a pena que sentia por não ter podido consumar os seus desejos em prol da instituição das carmelitas reformadas, dizendo: “A casa de Bobadela fica feita; mas as minhas filhas ficam ainda sem casa.”
A casa de Gomes Freire de Andrade estava, com efeito, pronta na igreja de Nossa Senhora do Desterro. O seu cadáver foi encerrado em um jazigo do presbitério dessa capela, e sobre a campa não se lhe gravou epitáfio algum.
Quase seis anos depois, a 2 de Outubro de 1768, Jacinta de S. José morria placidamente no meio de suas irmãs, que a cercavam banhadas em pranto.
A história desta piedosa donzela é um longo canto de amor celeste e de puro misticismo; um longo gemido de dores e sofrimentos na terra. Não é a história de uma mulher, é a lenda de uma santa. A imaginação e as prevenções de alguns dos seus contemporâneos encheram de absurdos e ridículos episódios a relação da sua vida. Mas, indubitavelmente, passaram-se nela fenômenos extraordinários, e é pelo menos impossível duvidar do entusiasmo que exaltava a donzela, da inspiração que enlevou o seu espírito e das virtudes que lhe deram reputação de santidade.
Jacinta não foi carmelita descalça: foi, porém, a verdadeira fundadora do Carmelo brasileiro.
Como era de prever, os restos mortais daquela religiosa inspirada descansaram na igreja de Nossa Senhora do Desterro. A flor murchou, desfolhou-se e caiu no seio do próprio jardim.
A rainha d. Maria I, por decreto de 11 de Outubro de 1777 confirmou licença e graça concedidas por el-rei seu pai às religiosas reclusas; e enfim, o bispo do Rio de Janeiro d. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, com pomposa solenidade, lhes deu clausura canônica em 16 de Junho de 1780, e pontificando no seguinte dia na igreja do novo convento, vestiu aquelas dedicadas filhas de Santa Teresa canonicamente de seus hábitos e lhes abriu o noviciado.
A 23 de Janeiro de 1781, tomaram o véu as primeiras freiras professas de Santa Teresa do Rio de Janeiro.
Três dias antes dessa solenidade, os habitantes de Sebastianópolis acudiram a testemunhar um espetáculo novo para eles, e que talvez mais nunca se repita.
Para se proceder ao ingresso do convento e a outros atos relativos à profissão das novas esposas de Cristo tiveram as noviças de recolher-se ao mosteiro das religiosas de Nossa Senhora da Ajuda, e desceram, pois, procissionalmente do monte do Desterro, seguindo até aquele convento acompanhadas por imensa multidão que as olhava misturando uma explicável curiosidade com o respeito o mais profundo. As noviças, confusas e tímidas, atravessavam as ruas de um mundo que já não era delas, e por baixo de seus véus ardiam-lhes as faces com o fogo de um santo pejo, quando ouviam as aclamações de um povo essencialmente religioso.
Na véspera do dia solene, voltaram elas seguidas do bispo e entraram para o convento que começava a ser de Santa Teresa.
Viram-se então, naquela comovedora cerimônia da tomada do véu, religiosas que tinham entrado moças e envelhecido no recolhimento, e jovens que ali haviam achado um berço, pois que apenas com alguns dias de nascidas, ou com dois anos de idade, tinham sido trazidas por seus pais ao piedoso retiro.
Era uma vitória, depois de longos anos de constância e luta.
Era a flor mimosa da mais ardente esperança de Jacinta de S. José que desabrochava enfim sobre o jazigo da donzela inspirada, triunfo de além túmulo, como o triunfo dos poetas.
Trinta e nove anos tinham corrido depois que Jacinta de S. José e Francisca de Jesus Maria se haviam retirado para o asilo da chácara da Bica, e vinte depois que o mosteiro de Nossa Senhora do Desterro abrigara as primeiras religiosas dirigidas por Jacinta.
Eis aqui a história que me propus a contar-vos. Agora levantemo-nos e vamos de mais perto ver o convento que temos diante de nós.
Uma ladeira calçada de pedra nos conduz ao mosteiro. Deixamos à mão direita uma casa de sobrado, que é destinada ao capelão das freiras, e subindo por uma escada de pedra, entramos em um pátio cercado de grades de ferro e que se estende aos pés da igreja e do convento.
O mosteiro é pequeno, e no exterior não se recomenda por condições arquitetônicas; antes se ressente da necessidade que houve de se aproveitar a igreja primitiva de Nossa Senhora do Desterro.
A face principal do convento, que, aliás, consta de dois únicos pavimentos, apresenta dez janelas, olhando para a barra, e defendidas por grossas e rudes grades de ferro. Na extremidade do lado esquerdo liga-se à torre, e esta à igreja.
A igreja tem uma porta lateral à esquerda. Do mesmo lado, e um pouco para trás, fica a sacristia, a que se prende um muro.
Junto da torre está a portaria, e sobre esta uma única janela com a sua grade de ferro.
O edifício é solidamente construído, e na altura em que se mostra, dominando o mar e a cidade, parece, tranquilo e impávido, desprezar a violência das tempestades que às vezes revolta a face de um, e enfurece o coração da outra.
Por detrás do mosteiro, alarga-se a cerca ou quintal, todo murado, e tendo em seu seio tetos de abrigo para as religiosas que ali vão em horas de recreio ou nos três suaves dias que a regra anualmente lhes impõe para higiênico descanso e passeio.
Penetremos na igreja.
Ela é pequena, triste e pobre.
Tem três altares. O altar-mor é consagrado à Sacra-Família. a do lado do Evangelho a Nossa Senhora do Carmo. a do lado de Epístola a Santa Teresa.
No fundo da igreja, vêem-se dois coros, um inferior e outro superior, defendidos por grades e por véu denso e preto.
No coro superior, o curioso descobre, através do véu, sombras imóveis à hora da missa. São as freiras, que logo depois se fazem sentir entoando o tantum ergo no momento solene de levantar-se a Deus.
O coro que fica por baixo desse é reservado para os dois ofícios extremos da freira: Para a profissão e para o enterro, para o véu e para a mortalha; para a perpétua despedida do mundo e para a eterna despedida do mosteiro. É ali que a freira recebe a solene consagração dos votos que um dia antes fizera no capítulo, e que mais tarde o seu cadáver terá de receber as orações dos finados.
Além da porta lateral que dá entrada aos fiéis para a igreja, há outra do mesmo lado, na capela-mór, comunicando com a sacristia, que é de uma extrema simplicidade, e apenas se faz notar por um quartinho escuro que tem no fundo e no ângulo mais próximo do arcaz.
Esse quartinho é um dos dois locutórios das freiras, que vêem às vezes falar a seus parentes, fazendo ouvir a sua voz ou recebendo a voz do visitante através de um ralo coberto com um véu.
Como disse, o convento consta de dois únicos pavimentos, para os quais se entra pela portaria.
A portaria tem dois altares, um que pertence a Nossa Senhora do Carmo e outro a S. Elias. A mãe de Deus e o profeta do monte Carmelo fazem a guarda do mosteiro.
No pavimento inferior, vê-se o Claustro com arcaria, que forma no seu centro um pátio, onde as freiras cultivam algumas flores com que ornam os altares do interior. Além do claustro, acham-se aí as catacumbas e a cozinha. Uma porta comunica o pátio com a cerca.
Neste pavimento, além de diversos altares, está a capela do capítulo.
No pavimento superior, há um segundo locutório, que fica exatamente por cima do que existe no fundo da sacristia. Há dez altares, e destes, sete dos passos do Senhor; e há as celas das freiras e das noviças separadas em duas filas por um longo corredor, que dantes se chamava o corredor escuro, e que ainda hoje é assim designado, embora as últimas obras executadas no mosteiro lhe tenham dado luz bastante para fazê-lo perder aquela triste denominação.
Cada cela tem a sua janela abrindo para o pátio, ou para receber o ar e a luz. Três rudes tábuas, e sobre elas um enxergão e uma esteira, um duro travesseiro e uma simples cobertura, formam completamente o leito onde descansa a freira; e esse leito e um banquinho muito baixo, onde ela escreve ou coloca objetos de trabalho, resumem toda a mobília e todos os ornatos da cela.
As celas são em número de vinte e uma, e nem devem ser mais, porque também só vinte e uma podem ser no máximo as freiras do mosteiro de Santa Teresa. Além dessas, há apenas três reservadas para as noviças.
Não há enfermaria no mosteiro. A religiosa que adoece é tratada na sua cela e tem o direito de escolher o médico de sua confiança.
No seu aspecto interior, o convento apresenta o quadro da maior pobreza e humildade. Não se vêem ali nem ornamentos de arte, nem objetos próprios para o cômodo da vida. As freiras não têm ao menos bancos e cadeiras em que se sentem e repousem. Sentam-se e descansam no chão.
Reina a mais perfeita igualdade entre as filhas de Santa Teresa. A superioridade da priora sente-se somente na direção e governo do mosteiro. Em tudo mais são irmãs, e vestem as mesmas roupas, um escapulário pardo, hábito também pardo e manto branco, todos de sarja, uma touca branca e um véu preto ou branco, conforme elas são ou coristas, ou conversas e noviças. Calçam todas simples sandálias e não trazem meias.
As freiras não têm escravos nem criadas para seu serviço: são as servas de si mesmas. Outrora, aproveitavam o tempo que não consagravam à oração para entregar-se a delicados trabalhos de arte, e eram notáveis no Rio de Janeiro em obras de flores artificiais.
O bispo d. frei Antônio do Desterro, quando se opunha a que essas religiosas fossem sujeitas à regra de Santa Teresa, porque a reputava perigosa em um clima como o do Brasil, dizia muitas vezes que o convento das carmelitas reformadas poucos anos se poderia conservar como tal, porque teria de tornar-se em um hospital de inválidas.
Entretanto, a regra severa de Santa Tereza é escrupulosamente observada no mosteiro, com a única modificação do tecido do hábito; os preceitos, os jejuns, o silêncio e a devoção austera se cumprem com o maior zelo, e aquelas esposas de Cristo não desanimaram ainda.
A morte inevitável tem visitado repetidas vezes o convento e feito secar com o seu enregelado sopro muitas flores daquele jardim do Senhor. Novas religiosas, porém, vão logo pedir o véu das carmelitas; donzelas na primavera dos anos correm a entrar no mosteiro, e vêem sem pesar a tesoura da austeridade cortar seus negros e longos cabelos, que lhes caem aos pés em enchentes de belos anéis. E ainda atualmente, enfim completo se acha o número das freiras de Santa Tereza, tendo apenas, há quatro meses, começado o seu noviciado a última candidata que se apresentou.
O exame do obituário do convento mostra igualmente que a regra de Santa Tereza não encurta a carreira da vida às suas filhas; das primeiras religiosas que tomaram o véu, a maior parte chegou a uma idade muito avançada. É, porém, notável que ultimamente se comece a observar o contrário, e que as novas freiras vão prematuramente descendo a povoar os jazigos do mosteiro.
Esta observação pode talvez despertar considerações que se referem às condições higiênicas, cuja falta a cidade do Rio de Janeiro experimenta, e ainda aos novos costumes e à educação amolecida e defeituosa que recebe a mocidade.
Basta. Não perturbemos por mais tempo a solidão e o silêncio desse asilo religioso e respeitável. Desçamos o monte de Santa Tereza para subi-lo mais tarde uma outra vez, quando em passeio mais festivo e brincalhão eu tiver de levar-vos a outros sítios onde o riso e as alegrias do mundo podem cabidamente fazer-se sentir.
Qualquer que seja a minha opinião individual sobre os conventos de freiras, onde votos perpétuos se pronunciam, onde não há recursos para um arrependimento possível, e então se paga a Deus à força o que Deus só aceita quando se lhe dá com o coração cheio de vontade; qualquer que seja a minha opinião sobre esses mosteiros de freiras, que são para muitas, sem dúvida, asilos tranquilos e enlevadores, e que podem também ser para outras muitas sepulturas em que se enterram vivas, prisões onde se abafam os gemidos e se escondem as lágrimas que pareceriam sacrilégios; qualquer que seja a tal respeito a minha opinião, repito, eu rendo tributos de verdadeira admiração a essas criaturas que se tornaram proscritas do mundo para aproximarem-se do céu, a essas venerandas religiosas que, no recolhimento de sua devoção, de suas orações, de sua penitência, pedem a Deus ainda mais por nós do que por si mesmas.
Nota
Fonte
- Macedo, Joaquim Manuel de. Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro. Edição revista e anotada por Gastão Penalva e prefaciada por Astrojildo Pereira. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde, 1942. (Edições do Senado Federal, vol. 42, Brasília, 2009).
Texto original
- Veja o livro original no Portal Domínio Público
Mapa - Convento de Santa Teresa e Capela do Menino Deus