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A Capela e o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto (I), por Joaquim Manuel de Macedo

Incêndio no Recolhimento do Parto. Museu da Chácara do Céu. Pintura de João Francisco Muzzi (1789)
Incêndio no Recolhimento do Parto. Museu da Chácara do Céu. Pintura de João Francisco Muzzi (1789)

I

OU César ou João Fernandes. Assim diz um rifão antigo, que com essa injustíssima e cruel antítese faz no nome e sobrenome João Fernandes um sinônimo de nonada, como outro fez também de Manuel de Sousa um sinônimo de tolo.

Protesto contra esses rifões revoltantes e iníquos, e comigo protesta igualmente o Brasil, que debaixo dos pontos de vista da política e da administração, tem sido elevado às grimpas por não sei quantas dúzias de Joões Fernandes e Manuéis de Sousa que se resolveram a felicitá-lo.

Mas, pela minha parte, não me limitarei a protestar; antes, estou firmemente disposto a provar com a lógica irresistível dos fatos a injustiça daqueles rifões. É um serviço que desejo prestar aos estadistas das dúzias de que acima falei, e dou parabéns à minha fortuna, porque já no meu passeio de hoje encontrarei logo ao encetá-lo um João Fernandes, que no Rio de Janeiro se tornou recomendável por uma ação meritória.

Naturalmente hei de nos meus passeios esbarrar mais tarde com algum Manuel de Sousa merecedor de elogios, e ficará por esse modo fundada com a necessária solidez a glória da maior parte dos estadistas de minha terra.

Apesar deste meu empenho há de o passeio de hoje ser feito a galope. Os meus companheiros não se arrepiem com a palavra que acabo de empregar, por nos acharmos todos a pé. Aquele substantivo cavalar ficou definitivamente humanizado desde que nos bailes e nos salões mais elegantes galoparam noites sem conta homens tão sábios como a enciclopédia, e senhoras tão delicadas e mimosas como as violetas e as pumilas.

Passearei, pois, a galope, e é indispensável que o faça, porque, se a custo achei quem me perdoasse o vagar com que passeei por um convento de frades, pela igreja dos padres e por um colégio de meninos e rapazes, não haveria quem me absolvesse e não fizesse maus juízos de mim, se eu procedesse do mesmo modo hoje que, visitando uma das nossas antigas capelas, terei de penetrar também em um recolhimento de mulheres sem voto, por consequência, recolhimento inflamável e tão inflamável que até houve uma noite em que chegou a incendiar-se.

Eia, pois, meus companheiros de passeio, a galope! Vamos ou pela Rua do Parto, (78) dantes tão famosa pelas excelentes balas que tomaram dela o nome e pelos cupidos de alfenim que ali se vendiam, ou pela Rua da Ajuda, célebre pela poderosa Floresta (casa assim chamada) onde se planejou o golpe de estado de 30 de julho de 1832, que felizmente abortou, (79) ou pela Rua de São José, que nos lembra as primeiras campanhas da homeopatia na cidade do Rio de Janeiro, ou enfim, pela Rua dos Ourives, onde quase não há mais ourives. Vamos chegar à capela de N. S. do Parto.

Façamos de conta que viemos pela primeira daquelas ruas. Eis aí a capela, não duvideis. A verdade nem sempre é verossímil. Podeis acreditar que estais diante da pequena igreja de N. S. do Parto.

Reconheço a procedência e o justo fundamento das vossas dúvidas. Este casarão que temos à vista pode muito bem não parecer capela ou igreja a quem ainda não ouvisse dizer que o é alguma pessoa insuspeita e digna de crédito.

A capela apresenta aos olhos do observador duas faces. Uma, que se levanta na extrema da Rua dos Ourives, indica no edifício a existência de três pavimentos que abrem para o exterior, os dois superiores cinco janelas de peitoril cada um, e o térreo apenas alguns respiradouros com grades de ferro. Liga-se esta face à outra que se estende na direção da Rua do Parto, e que é rasgada por duas portas, a primeira abrindo para o corpo da igreja, e a segunda ladeada de janelas defendidas de alto a baixo por grades de ferro, que é a da sacristia. Na parte superior deste lado do edifício mostram-se quatro grupos de janelas, tendo o primeiro quatro de peitoril, duas superiores e duas inferiores, o segundo duas de peitoril, o terceiro outras duas com grades de varões de ferro, o quarto três mais juntas com balcões de grades igualmente de ferro. Os dois últimos grupos parecem pertencer a uma casa estranha ao resto do edifício, pois que até o telhado é nesse extremo muito mais baixo. As janelas não estão dispostas na mesma linha. O aspecto exterior da capela é triste e sem majestade. A arquitetura não se ocupou dele nem metade de um minuto. Torre é coisa que aí não se encontra, e o sino, escondido misteriosamente no interior da pequena igreja, faz às vezes ouvir o seu dobre, que parte de um asilo invisível como a voz que sai de uma gruta profunda.

A este casarão, à capela de N. S. do Parto, une-se outro que se levanta na Rua dos Ourives e chega até à da Assembleia (que ainda há poucos anos se chamava da Cadeia), onde também oferece uma face. Consta de três pavimentos, um térreo e dois superiores. O primeiro, além de uma portaria ladeada de janelas, aloja diversas oficinas. Dos dois outros têm para a Rua dos Ourives o primeiro dezessete, e o segundo ou mais alto, dezoito janelas todas de peitoril; e menos irregular para a Rua da Assembleia, ambos cinco janelas também de peitoril, menos a segunda, que, tanto em um como em outro pavimento, apresenta um singelo parapeito de grades de ferro.

Hoje em dia, este segundo casarão serve para um mister que é absolutamente estranho à capela de N. S. do Parto. Como, porém, tempo houve em que se observava o contrário, e nesse casarão nos espera a lembrança de uma história que parecera um romance, julguei conveniente aproveitar o ensejo para fazê-lo notar.

Ficando assim descrito o aspecto exterior da capela e da casa que a esta se prende, aproveitarei o tempo, enquanto não chega o sacristão que nos deve abrir a porta, para contar-vos o que sei do passado desses dois religiosos tetos.

A capela de N. S. do Parto é a piedosa filha da devoção de um João Fernandes, habitante da cidade do Rio de Janeiro, homem pardo, natural da ilha da Madeira, o qual, depois de levantá-la no ano de 1653, ornou os seus altares e manteve zeloso o seu culto.

E, note-se bem, este João Fernandes não se lembrou de pedir, nem de esperar que por tão boa ação o rei de Portugal, que então era D. João IV, lhe mandasse nem hábito, nem comenda de ordem alguma. Contentou-se o pobre homem com as glórias da sua opa, o que pode muito bem servir de lição àqueles que no nosso tempo apenas acabam de assinar algumas dezenas de mil-réis, ou de prestar algum serviço para uma obra pia, ou de interesse público, ou de manifestação patriótica, vão logo calculando e sonhando com a teteia que devem ganhar por isso, e dão aos diabos a caridade e o patriotismo, quando não ganham aquilo a que aspiram.

A morte do bom João Fernandes não arrefeceu o ardor dos devotos de N. S. do Parto, em cuja capela organizaram-se irmandades e foi exercida uma santa hospitalidade, como o podem testemunhar S. Jorge e S. Pedro. S. Jorge, que até algum tempo depois de 1753 ali se conservou tranquilo e venerado, e que antes houvesse ficado sempre debaixo daquele teto benéfico, porque assim não passaria pelo desgosto de lhe deitarem a casa abaixo, como há bem poucos anos aconteceu para grande vergonha da sua irmandade, que não soube regenerá-la. S. Pedro, que em 1705 ali se foi hospedar, quando S. José, ou por ele a competente irmandade, sem a menor cerimônia o despediu da sua igreja.

No século XVIII ajuntou-se à capela de N. S. do Parto um notável apêndice que modificou não pouco a sua vida suave, modesta e sossegada.

Estêvão Dias de Oliveira deixara por sua morte uma avultada soma para se distribuir em benefício de sua alma, depois de satisfeitos alguns legados que dispusera.

Ah! Que regalo! Que mina de caroço para certos testamenteiros da nossa época! Mas o bispo D. Frei Antônio do Desterro, fazendo-se então testamenteiro do legatário, e vendo cumpridas as disposições por este especificadas, aplicou, obtido para isso, o breve pontifício, mas de quarenta mil cruzados que ainda tinham ficado à fundação de um recolhimento para asilo de mulheres não virgens que, deixando a perversidade do século, fossem ali reformar os costumes repreensíveis, trocando-os por santo e regular comportamento.

No ano de 1742 foi lançada a primeira pedra do estabelecimento, que em breve se mostrou pronto para receber e guardar não poucas arrependidas.

Mas não foram somente arrependidas que para o novo asilo entraram.

Duas classes de reclusas o povoaram. A primeira foi composta de algumas velhas e matronas, umas fugindo cansadas dos enganos do mundo, outras desprezadas pelo mundo delas cansado. Eram as recolhidas voluntárias. A segunda constou de senhoras casadas e moças solteiras obrigadas a retirar-se para essa reclusão em castigo de faltas cometidas ou de supostas faltas, e em punição de desobediência à vontade de seus pais.

Tratarei deste estabelecimento em relação ao segundo fim a que foi destinado. Esquecerei as recolhidas voluntárias, que estavam no seu direito, divorciando-se e separando-se do mundo. Faziam muito bem em esconder-se de um mundo de que não gostavam e que provavelmente já não gostava delas. O que vou dizer não se entende, pois, com as voluntárias.

A segunda classe das recolhidas terá quase exclusiva menção neste passeio, que vai tocar muito de perto nos direitos e na causa social do sexo feminino.

Creio que não havia inconveniência em obrigar a amar exclusivamente a Deus uma senhora casada que tivesse amado demasiadamente a um próximo que não era seu marido. Parece, porém, que alguns lamentáveis abusos misturaram no recolhimento esposas inocentes com esposas culpadas.

Sobretudo, julgaram as senhoras que era uma iniquidade estabelecer-se uma reclusão para as esposas infiéis, onde não havia reclusão para os esposos infidelíssimos.

Devemos todos acreditar que o pensamento do bispo que fez construir aquele recolhimento era piedoso e santo. Mas certo é que os homens se aproveitaram do asilo para atormentar como acabo de dizer, algumas inocentes, e castigar algumas culpadas senhoras, que por isso rogaram pragas ao velho e venerando prelado.

O bispo denominara acertadamente o asilo que levantara recolhimento de N. S. do Parto. As senhoras, porém, em suas conversações particulares, davam-lhe o nome de recolhimento do Desterro, não porque Antônio do Desterro se chamasse o prelado, mas porque um desterro foi considerado por elas aquele asilo.

E não eram somente as senhoras casadas que maldiziam do recolhimento, também as solteiras antipatizavam com ele, pois, sofismado o fim para que se criara o asilo, encerravam-se ali meninas e moças ainda não casadas a pretexto de irem receber no piedoso retiro educação moral e religiosa.

É preciso dizer que o bispo D. Antônio do Desterro foi sempre pouco simpático ao belo sexo, e carregou com as culpas dos abusos a que deu lugar o recolhimento do Parto.

Explicarei os motivos dessa falta de simpatia, e aposto que ainda atualmente as senhoras hão de achar muita razão às suas antepassadas.

D. Frei Antônio do Desterro, prelado distinto por suas virtudes e sabedoria, e pelo seu zelo, era tão simples e humilde que, vestido sempre de monge, conservava também a coroa regular, conformando-se com o mesmo rito no ofício divino. Severo consigo, justo, mas compassivo com todas as suas ovelhas, ativo fiscalizador do proceder dos párocos, mantenedor do culto, benfeitor das igrejas e conventos, e especialmente da mitra fluminense, que lhe deve, além de outros legados, o da chácara do Rio Comprido, que todos conhecem pelo nome de Chácara do Bispo, caiu, apesar de tudo isso, no desagrado das senhoras por um pecado de mau gosto e por um pecado de rabugem.

O pecado de mau gosto foi cometido pelo bispo, quando proibiu que aparecessem nas procissões da quaresma os penitentes de açoites e outras figuras que tornavam mais divertido o espetáculo religioso. Os penitentes de açoites, sobretudo, trajando ricos vestidos e açoitando-se ou fingindo açoitar-se, davam muitas graças às procissões, apraziam às senhoras, e o prelado teve a ideia infeliz de acabar com aquela variedade de entretenimento.

O pecado de rabugem foi pior ainda. O bispo proibiu, sob pena de excomunhão maior, que os homens se reunissem nos adros e às portas das igrejas para verem entrar e cortejarem as belas devotas. Que estas falassem e conversassem com os homens nestes lugares. E que, enfim, fossem as senhoras às igrejas por qualquer motivo desde o tanger da Ave-Maria até à hora matutina, excetuando-se desta última proibição unicamente as pobres que concorressem às missas e confissões de madrugada.

Não discutirei a procedência das acusações que as senhoras faziam ao velho bispo, e pelas quais o consideravam rabugento e impertinente. Certo é, porém, que os abusos de que algumas foram vítimas depois da fundação do recolhimento de N. S. do Parto deram até certo ponto justificado fundamento, não ao seu ressentimento contra o prelado, mas à sua inimizade ao asilo.

Se o piedoso e santo recolhimento abrisse as suas portas somente àquelas senhoras que voluntariamente fossem procurar o religioso retiro, não havia que dizer, ao menos naquele tempo. Se, além de recolhimento de velhas arrependidas, desvirtuado embora o pensamento que presidira à sua fundação, servisse para receber e educar meninas e jovens, havia muito que louvar, uma vez que a educação fosse ali bem dirigida. Mas o asilo que se levantara foi mais do que isso, foi uma terrível ameaça de pedra e cal, tornou-se em uma espécie de casa de correção feminina, em uma espécie de cadeia que fazia medo não só às más esposas como às esposas de maus maridos, e também às moças solteiras filhas de pais enfezados, cabeçudos e prepotentes.

Realmente era uma questão muito grave que se decidira contra o belo sexo à custa dos mil cruzados do finado, Estêvão Dias de Oliveira.

Naquele tempo (no bom tempo), em grande número de casos o marido não era um consorte, era um senhor, e as moças casavam sem saber com quem, viam os noivos no dia do casamento, porque os pais tomavam pelos noivos e noivas o trabalho de enlaçar-lhes os corações sem consultá-los. O pai do noivo e o pai da noiva namoravam-se mutuamente com todos os preceitos e regras da aritmética, e desde que se punham de acordo na discussão do dote, ficava resolvido que o rapaz e a rapariga se adoravam perdidamente, ainda que nunca se tivessem visto, e realizava-se o casamento.

Quantas uniões infelizes resultavam de semelhante prática pode-se bem calcular. Deviam por certo abundar os maridos tiranos e as mulheres vítimas, as mulheres infiéis e os maridos desgraçados, e verdadeiros purgatórios nas vidas que passavam muitos casais.

Está visto que era a mulher, o ente passivo, a senhora escrava, quem mais tinha de sofrer em tais circunstâncias sociais, e, sem o pensar, veio o bispo D. Antônio do Desterro acrescentar mais um tormento para as vítimas e as culpadas, fundando o recolhimento do Parto.

Em um ou outro caso, sempre por exceção, acontecia que alguma jovem mais esperta ou mais sonsinha chegava a amar algum mancebo sem licença do papai ou da mamãe, e tinha por isso a audácia de resistir ao projeto de casamento ajustado por estes com outro e sem consultá-la, vendo-se por isso condenada à prisão em um quarto escuro, jejuns de pão e água, e às vezes a castigos muito mais cruéis.

Mas os gemidos da vítima chegavam a incomodar os pais, e até a comover-lhes os corações. O recolhimento do Parto foi, portanto, um excelente recurso, e nele tiveram de entrar algumas donzelas desobedientes que se supunham com o direito de escolher maridos.

Acontecia às esposas ainda pior que às filhas. Umas porque realmente mentiam à fidelidade conjugal, outras porque, embora inocentes, eram aborrecidas por maridos indignos que se fingiam ultrajados na sua honra para se livrarem das pobres mulheres. Lá iam em castigo das faltas cometidas, ou sob pretexto de amores impuros, fazer penitência e corrigirem-se da perversidade do século no recolhimento do Parto.

Escusado é dizer que eu me refiro aqui somente aos pais prepotentes e testos, e aos maridos infelizes ou desmoralizados, sendo verdade que, apesar desses rudes e grosseiros costumes da sociedade dos séculos passados, muitos eram os casais que se felicitavam pela virtude e também pelo amor, e também não poucos os pais que não se ensurdeciam à natureza para serem opressores de seus filhos.

Entretanto, estas exceções não destruíam a regra que proviera daquela rudeza de costumes e da educação mais do que austera, quase bárbara, da sociedade daqueles tempos de despotismo do governo do Estado, e despotismo do governo das famílias.

Abusou-se, pois, não pouco, e certamente, como era de prever, do recolhimento do Parto, que se tornou um espectro ameaçador para muitas senhoras, e uma arma de prepotência e de disciplina doméstica para os homens.

Não havia fervura de briga de mulher com marido que não se abatesse com o encanto das terríveis palavras – “Olha o recolhimento do Parto!”.

O marido voltava para casa depois da meia-noite sem explicar o motivo da sua ausência, via sem receio descoberto o segredo das suas infidelidades, negava à mulher um vestido novo para a festa de S. Sebastião, contrariava-lhe os desejos, zombava do seu amor, e se a vítima desprendia a voz e dava princípio a uma tempestade doméstica, o nobre Adão, sem se exaltar, sem se afligir, murmurava apenas – “Olha o recolhimento do Parto” – e a pobre Eva caía fulminada, quando não corria a abraçar o marido.

A ideia do bispo D. Antônio do Desterro tinha sido, portanto, aproveitada com admirável habilidade pelos maridos, e com razão condenada e aborrecida pelas senhoras, que maldiziam do prelado e teimavam em chamar o asilo – recolhimento do Desterro.

Eu vou contando estas coisas sem o mais leve temor de acender empenhos de imitação do passado, porque a nossa atual sociedade contrasta absolutamente com a dos dois séculos anteriores. Não duvido que haja maridos a quem sorrisse o pensamento da restauração do recolhimento do Parto. Nenhum, porém, se lembraria de falar em tal. Pois hoje em dia fora mais fácil estabelecer um asilo onde as senhoras casadas prendessem os maridos do que ressuscitar a antiga providência.

Mas no reinado do século décimo oitavo ainda não se falava em emancipações das mulheres. Ainda não havia no Rio de Janeiro casas de bailes, nem teatro de S. Pedro de Alcântara, (80) nem companhia italiana, nem a Rua do Ouvidor anunciava as ricas lojas de modas, o poder e a influência dominadora do belo sexo.

Os maridos eram senhores ainda, e acharam tão sublime o recolhimento do Parto, que chegaram a reputá-lo insuficiente. E como não tivesse morrido mais algum Estevão Dias de Oliveira, realizou a favor deles um vivo obra igual à que se tinha feito com o legado de um defunto.

Manuel da Rocha, e outros que a ele se reuniram, fundaram em 1764, junto à matriz da freguesia de S. Sebastião de Itaipu (ou Itaipuig) outro recolhimento, sob a dedicação de Santa Teresa, para mulheres a quem agradasse o retiro do século, ou a quem algumas circunstâncias obrigassem a ir habitá-lo por castigo de culpas. O edifício depressa ficou pronto, começou logo a ser povoado, e…

Eu peço aqui toda a atenção das senhoras que porventura fazem a honra de acompanhar-me também no meu passeio.

E Manuel da Costa, o principal fundador do recolhimento de Itaipu, recebeu desde então o título grandioso de Protetor do Bem Comum!

Como o chamaram pela sua parte as senhoras, não sei. Mas sou capaz de jurar que foram os maus maridos que inventaram aquele título, os maus maridos que desde 1764 puderam dizer às suas mulheres – “Olhem o Itaipu”!

No recolhimento do Parto ainda as pobres reclusas podiam por entre as grades da sua prisão ver o povo passar pelas ruas, ver nas janelas fronteiras e em todas as que, embora afastadas, a seus olhos se mostravam, senhoras, talvez algumas amigas que as saudassem com os lenços, talvez algum primo… algum mancebo muito amado que as consolassem, correspondendo-se com elas por meio da telegrafia amorosa. Podiam ouvir o ruído das festas, e também conversar às vezes do locutório. Mas no recolhimento de Itaipu o desterro era completo, completa para as pobres moças a solidão.

O recolhimento de Itaipu foi prosperando. Mas à medida que ele prosperava, decaía o de N. S. do Parto, e a tal ponto que, em 1787, tanto a sua administração como as obras e o material da casa acharam-se no mais lamentável abandono.

Que causas determinaram a decadência desse estabelecimento?

Disseram uns que a expulsão dos jesuítas, em 1759, arrefecera o zelo religioso dos habitantes do Brasil, ressentindo-se disso algumas piedosas instituições. Mas os fatos provam o contrário, e semelhante explicação não passou da roda das velhas confessadas dos padres da companhia.

Sustentaram outros que a decadência do recolhimento proviera da influência que exercia o belo sexo sobre o muito sensível vice-rei marquês do Lavradio. Mas ainda aqui o erro é positivo, porque o vice-rei marquês, sem dúvida muito apaixonado de todas as moças bonitas, e mesmo de muitas feias, era como S. Tomás, e queria que a seu respeito se dissesse também – façam o que ele diz e não o que ele faz.

Afirmaram, enfim, algumas senhoras que o fato era devido a um requinte de crueldade dos maus maridos, que, para mais atormentarem as suas mulheres, preferiam encerrá-las no recolhimento de Itaipu, esquecendo assim o de N. S. do Parto. As senhoras, porém, eram muito suspeitas para poderem ser imparciais juízes do caso.

O recolhimento do Parto decaiu, porque ainda não tinha rendas suficientes, e por que administradores desmazelados e sem capacidade deixaram que se fosse estragando a obra caridosa do bispo D. frei Antônio do Desterro.

Eis aí a melhor e a mais segura das explicações. Falta de dinheiro. Já viram lâmpada sem óleo conservar a sua luz? Desmazelo e incapacidade de administradores. Não estamos vendo todos os dias os resultados fatais de semelhante praga?

E ainda bem que para regenerar o recolhimento do Parto vão aparecer o vice-rei Luís de Vasconcelos e o seu braço direito, o mestre Valentim.

Mas também terá de mostrar-se, erguendo um facho de incendiária, uma mulher que violentamente se revoltou contra aquela instituição.

Deixai-me respirar. Contar-vos-ei esta curiosa história no próximo passeio.

Notas

  1. Rua que ligava a dos Ourives ao Largo da Carioca.
  2. Chácara da Floresta, onde passa hoje a Rua México.
  3. João Caetano, na Praça Tiradentes.

Fonte

  • Macedo, Joaquim Manuel de. Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro. Edição revista e anotada por Gastão Penalva e prefaciada por Astrojildo Pereira. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde, 1942. (Edições do Senado Federal, vol. 42, Brasília, 2009).

Texto original

Veja também

Mapa - Atual Igreja Nossa Senhora do Parto