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Ermidas do Rio de Janeiro, por Gastão Cruls

Igreja de São Gonçalo de Amarante
Igreja de São Gonçalo de Amarante

Aqui e ali, já temos apontado as ermidas que iam surgindo em vários pontos da várzea, como a de Nossa Senhora do Ó, a da Conceição, no morro depois de São Bento, e a de Santa Luzia. Outras não podem ser esquecidas. A da Candelária, cuja lenda há de ser contada mais adiante. A da Cruz dos Militares, feita sobre os escombros do Forte de Santa Cruz. A de Nossa Senhora do Parto, origem da igreja atual e do recolhimento para “mulheres desonestas que estivessem arrependidas”, já há muito desaparecido.

Capela de Nossa Senhora da Cabeça (1603/1607)
Capela de Nossa Senhora da Cabeça (1603/1607)

Mas não foi apenas dentro do perímetro central que a fé foi implantando os seus marcos. Próximo da Lagoa do Boqueirão, num morro, surgiu a ermida de Nossa Senhora do Desterro, e esse morro passou a ser do Desterro até que fosse de Santa Teresa. Mais além, em outro morro, orava-se a Nossa Senhora da Glória e de Nossa Senhora da Glória ficou sendo o outeiro onde hoje se ostenta a linda igrejinha. Mais longe ainda, na vasta propriedade onde o Dr. Clemente Martins de Matos tinha uma fábrica de anil, e que ia da Praia de Botafogo à Lagoa de Socopenapã, por iniciativa sua erigiu-se uma capela a São Clemente, santo que nunca mais deixou de ser o patronímico de uma das ruas do bairro. Aliás, mesmo junto à Lagoa de Socopenapã, já existia outra capela, e esta datava de muito antes. Dedicada a Nossa Senhora da Cabeça, muito da devoção dos Correia de Sá, [1] fora feita em 1603 ou 1604, quando Martim de Sá restaurara um antigo engenho, ali instalado, e de que até hoje há lembrança no rio chamado da Cabeça, com foz na Lagoa Rodrigo de Freitas. Do outro lado da cidade, no morro em que João Caeiro da Silva possuía uma chácara, no Valongo [2] – morro que por isso se chamava do Caeiro – faziam-se preces a Nossa Senhora do Livramento e, desde que no seu cabeço passou a branquejar a capelinha que lhe foi dedicada, o morro já não quis outro nome que não fosse Morro do Livramento. Em 1634, sempre por iniciativa particular, como as demais, no Morro da Conceição também se erigia a Capela da Conceição, depois doada aos frades do Carmo e ainda depois aos Capuchinhos franceses.

Mas nem os “campos” distantes e as ilhas espalhadas pela baía fugiram ao influxo da religião. Se só a partir do século XVIII, na Ilha do Governador, se erigiram as suas várias igrejas, muito antes, quando era ainda a Ilha dos Sete Engenhos, ela teve também as suas capelinhas: uma dedicada à Conceição de Maria Santíssima e outra à Virgem Nossa Senhora de Guadalupe, esta, talvez, coeva de Villegaignon. Em Paquetá, ao expirar do século XVII, São Roque foi entronizado e daí por diante, até hoje, os homens do mar lhe prestam culto. É de 1635 a devoção de Nossa Senhora da Penha, sempre adorada no alto do mesmo outeiro, onde ainda agora, anualmente, em outubro, vão em romaria os seus numerosos fiéis. Aproximadamente do mesmo tempo é a Capela de Santo Antônio de Lisboa, situada no Engenho da Pedra, e que servia aos moradores de Irajá e Inhaúma. Jacarepaguá também desde cedo teve os seus centros de devoção. Em 1625 era a Capela de São Gonçalo do Amarante, pertencente à Fazenda do Camorim, e levantada por Gonçalo Correia de Sá, na grande sesmaria que coubera a seu pai, o velho Salvador, e que se estendia desde a Barra da Tijuca até perto de Guaratiba. Trinta e tantos anos depois, ainda em Jacarepaguá, quando foi criada a freguesia do mesmo nome, ali se construiu a Capela de Nossa Senhora do Loreto, em terras do Capitão Rodrigo da Veiga Barbuda.

Parecerá estranho que algumas dessas capelas, localizadas na longínqua zona dos “campos da cidade”, fossem erigidas ainda na primeira metade do século XVII quando dissemos, páginas atrás, das dificuldades que teve o colonizador para ir, na direção noroeste, além do quadrilátero central, não só devido à péssima qualidade do terreno que se lhe deparava daí por diante, como também devido às grandes sesmarias que estavam em mãos dos jesuítas. Acontece, porém, que transpostos os alagadiços e ultrapassadas as posses dos Inacianos, os campos que se desdobravam a perder de vista, com fartura de água e terras feracíssimas, eram por demais tentadores. E assim não foram poucos os que, vencendo aqueles óbices, acabassem por ali instalar os seus currais de gado e as suas roças de mantimentos.

Muitas dessas ermidas, que amiúde substituíram meros cruzeiros implantados no centro de aldeamentos e povoados, por sua vez, não raro, foram o berço de novos e mais grandiosos templos, sempre levantados no mesmo local ou arredores, e quase sempre conservando a sua invocação de origem. Duas delas, aproveitando-se de situação privilegiada, subiram ladeira acima e foram ser o Mosteiro de São Bento e o Convento de Santo Antônio, que com a capela do Morro da Conceição e os edifícios religiosos no alto do Castelo terminaram por coroar os quatro montes que cercavam a cidade nascente. E este seria um dos aspectos mais curiosos do Rio de antanho. Pelo menos, dois desses morros, Castelo e São Bento, com o casario branco no cocuruto, chamavam logo a atenção dos viajantes aportados à Guanabara, como aconteceu com Froger, em 1695. Século e tanto mais tarde, Otto von Kotzebue compararia esses templos, então já semeados em muito maior número pela enfesta dos outeiros, com “os ninhos que as andorinhas fixam nos muros”.

Foi junto à Capela de Nossa Senhora do Ó, onde residiram, desde a chegada ao Rio, os primeiros Carmelitas, que se construiu o Convento do Carmo, por eles ocupado até o começo do século XIX, e hoje dificilmente reconhecível, após as muitas reformas por que passou, no velho casarão que, na Praça Quinze, faz esquina com a Rua Sete de Setembro. Da localização desse convento é que veio o nome da Rua do Carmo, primitivamente Rua Detrás do Carmo, e também o nome que anteriormente teve aquele logradouro de Praça ou Terreiro do Carmo. Esse terreno, de acrescidos ganhos ao mar, tinha sido aforado aos Carmelitas, que com isso se precatavam de outras construções feitas defronte à sua propriedade, como já acontecera com o prédio da nova Cadeia, atual Palácio Tiradentes. Em 1808, com a chegada ao Rio do Príncipe D. João e a sua corte, o Convento do Carmo passou a ser uma dependência do Paço e a sua igreja foi elevada a Capela Real e Catedral, a nossa Catedral Metropolitana, à Rua Primeiro de Março. Sempre dentro da cerca dos frades do Carmo, em 1661 os Irmãos Terceiros do Carmo iniciaram a construção da sua capela, mais tarde transformada na atual Igreja do Carmo.

Notas

  1. Este culto, sempre por iniciativa da mesma família, espalhou-se por vários pontos da cidade. De outros dois engenhos de igual nome se tem noticia: um na Tijuca e outro em Jacarepaguá. Este último ainda existe. É o Engenho d’Água. Fazendo parte do corpo da casa, à esquerda da alpendrada. Lá está a capelinha de invocação à mesma Virgem que, segundo Monsenhor Pizarro, “obra muitas maravilhas, a favor de todos os que padecem dores de cabeça”. No seu interior, como verificamos em recente visita, podem ser vistas muitas oblatas de cera, principalmente moldagens de cabeça. O Engenho d’Água pertenceu a Salvador Correia de Sá e Benevides e, depois, a seu neto o 4.° Visconde de Asseca. Em 1606, Martim Correia de Sá fizera colocar uma imagem de Nossa Senhora da Cabeça na Igreja de São Sebastião, do Castelo, e para festejar-lhe o culto, instituíra patrimônio especial. Essa imagem, tida por sua padroeira, acompanhou o Cabido nas suas mudanças, primeiro para a Igreja da Cruz e, depois, para a do Rosário. Como era de barro aconteceu, porém, que se partisse, numa dessas peregrinações. A Lisboa foi então encomendada outra, agora de madeira, que está hoje na Catedral, onde é festejada anualmente.
  2. É uma abreviatura de vale longo, trazida de Portugal, onde, no Porto, há uma localidade com igual denominação. O nosso Valongo era uma grande área compreendida entre o Morro de São Francisco da Prainha e a Ponte da Saúde.

Fonte

  • Cruls, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro: Notícia histórica e descritiva da cidade. Prefácio de Gilberto Freyre, desenhos de Luis Jardim e fotografias de Sascha Harnisch. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. 2 v. (Edição do IV Centenário, 1965).

Mapa - Capela de São Gonçalo de Amarante em Camorim e Capela de Nossa Senhora da Cabeça no Jardim Botânico