Passeio Público, por Magalhães Corrêa
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Numa cabana pequenina, tendo um coqueiro do lado, solitário abrigo, entre vegetação, um verdadeiro oásis, em plena cidade colonial, ao lado da lagoa do Boqueirão, vivia Suzana, a morena cor de jambo, cabelos cor de cabiúna e olhos divinais, em companhia de sua avozinha.
À tarde, reunidos a avozinha, Suzana e seu primo e noivo, conversavam, debaixo do coqueiro, e aí devaneavam em sonhos. O primo Vicente Peres, discípulo de botânica de frei Vellozo, idealizava seu futuro; ela contava que encontrara o Vice-Rei, o poderoso e que seu rosto lhe inspirara confiança; parecia bom e delicado… Assim, o tempo ia passando.
O Vice-Rei Luiz de Vasconcellos e o Mestre Valentim, um o soberano, o outro, o artista, corriam em busca de sensações novas e de arriscadas aventuras. Por acaso, encontraram Suzana, que ia, furtiva, buscar água no chafariz do caminho da Glória, singela e meiga, como as criaturas que não conhecem as maldades e muito menos o mundo. Num golpe de vista, o senhor da terra quis conquistá-la. Ele, o Vice-Rei, transformado em sáurio, vai rastejando espreitar seu ninho; ela, como garça, arisca, desaparece por entre tabuas. Assim prolongada foi a sua caça por longos dias, até que enfim lhe falou.
A jovem, de uma simplicidade pura, disse:
– Vice-Rei, sou pobre, vivo com minha avozinha e estou comprometida com meu primo Vicente.
Aí, o seu amor de Senhor inflamou-se, por ver aquela simples, mas verdadeira flor do Boqueirão, ter por noivo um João Ninguém.
Luiz de Vasconcellos, apaixonado agora, em companhia de Valentim, numa das noites, em que estava de tocaia, atrás de uma moita, surpreende Suzana e Vicente, em confissão de amor, e, mais distante, a avozinha.
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Vicente, queixoso dos amores do Vice-Rei, que rondava o seu futuro ninho, temia que a sua apaixonada avezinha sem proteção, lhe caísse nas mãos!
Suzana, ingenuamente, defendeu Luiz de Vasconcellos, exclamando:
– Ele nos ajudará; é bom e poderoso; como de um senhor, ficaremos escravos, mas da gratidão; não tenhas medo, Vicente! Vai, pede-lhe proteção. A avozinha nada poderá fazer por ti, pois, cansada dos anos, não sairá daqui. Vai! Ele, bom e gentil, protegerá o nosso amor!
No dia seguinte, depois da confissão de amor que ouviu, e da desilusão que tivera, mandou chamar Vicente Peres, a quem disse:
– Foste nomeado sub-secretário de Frei Conceição Velloso, para ajudar e facilitar a publicação da Flora Fluminense, e também para um emprego na Alfândega do Rio de Janeiro, depois de terminada aquela incumbência. Agora vai, e, se quiseres dar-me uma prova de gratidão escolhe-me para uma das testemunhas do teu casamento:
E, foi assim que terminou sua amarga ilusão.
Aterrada a lagoa com o morro da Mangueira, derrubado o matagal, lá se foi a casinha de Suzana, que nos faz lembrar a canção popular:
“Tu não te lembras Da casinha pequenina, Onde nosso amor nasceu… Tinha um coqueiro do lado Que, coitado! – de saudade já morreu…”
Mas, como recordação, teve a feliz ideia de perpetuar no bronze e na pedra, em uma cascata, que deveria ter o nome de “Fonte dos Amores de Luiz de Vasconcellos”, porque ele muito recomendou ao seu amigo Valentim que fizesse a cascata e que, ao centro colocasse o coqueiro da casa de Suzana e, sobre a vegetação, três garças que simbolizassem os felizes habitantes do Boqueirão, e, naturalmente, dois jacarés, que saindo dos rochedos representavam os poderosos que, muitas vezes, caçam as ariscas garças, destruindo assim a felicidade alheia…
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Foi esta singela lenda carioca a origem da cascata do Passeio Público, cuja descrição é a que segue:
Tendo planejado o Passeio Público, o vice-rei D. Luiz de Vasconcellos encarregou Mestre Valentim da Fonseca e Silva do plano e execução do jardim, aproveitando o aterrado da antiga lagoa do Boqueirão.
Ao fim de quatro trabalhosos anos, estava concluído o Passeio Público, o qual foi inaugurado, em 1783.
Ao fundo do jardim, junto ao terraço e lado oposto do portão principal, erguia-se uma cascata, formada de grande bacia de pedra trabalhada, cujo desenho era um arco de círculo polilóbulo, de belíssimo efeito. Do centro, eleva-se uma base semicircular com um amontoado de pedras, dentre as quais a vegetação era exuberante em avencas, cardos, tinhorões e samambaias e, do centro, seu elegante coqueiro de bronze, com os respectivos frutos, todo, pintado ao natural.
Dentre as folhagens, três garças de bronze, de cujos bicos caía água num gotejar contínuo, e por baixo do amontoado de pedras, como numa toca, saiam dois jacarés entrelaçados, de bronze, de cujas mandíbulas jorrava água, produzindo o murmúrio característico da queda do líquido no tanque.
Ao fundo, lateralmente, duas escadarias de treze degraus, e balaustrada de ferro e bronze, dando acesso ao terraço, ligadas pelo corpo central de pedra, que, em forma de frontão curvo, arrematava na parte superior com as armas de D. Luiz de Vasconcellos, em mármore. O aspecto de conjunto dava a impressão de um triângulo isósceles, tendo por base o tanque, por lados as escadarias e, por vértice, as armas do vice-rei.
Do lado oposto do corpo central da cascata, e no patamar do terraço, achava-se colocado ao centro desse frontão uma estátua de Menino, de mármore, com um cágado na mão, que lançava água num barril de pedra, com os respectivos arcos de bronze, em número de quatro. O menino, nu, era circundado por uma fita com a frase: “Sou útil inda brincando.”
O terraço formava um fundo para a cascata, no qual, na linha do patamar, corria um parapeito, aberto ao centro para entrada do mesmo. Era assim nesse tempo a “Cascata do Passeio Público”.
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Todos os trabalhos dela foram executados por Mestre Valentim, artista do tempo dos vice-reis, que modelou o coqueiro, as garças e jacarés e fundiu-os em bronze na Casa do Trem (Arsenal de Guerra). Passando os jacarés a bronze, a fundição falhou, o que irritou Luiz de Vasconcellos: mas Mestre Valentim prometera que, em certa data marcada, o Vice-Rei poderia ir à Casa do Trem, caso ouvisse rojões e os sinos tocarem, o que aconteceu, encontrando os jacarés fundidos…
Belos tempos em que o Vice-Rei se interessava pelo artista e sua obra e, hoje, tão desprezados pelos governantes!
Era, nesse tempo, o Passeio Público o centro das reuniões da elite carioca e todas as festas eram aí realizadas, mesmo o carnaval.
No vice-reinado do Conde de Rezende, nada se fez nesse recanto bem carioca. Devido ao pouco caso e ao descuido dos sucessores de Luiz de Vasconcellos, bem como as intempéries, arruinou-se o coqueiro de bronze e caiu. No tempo do Vice-Rei Conde dos Arcos, foi substituído pelo busto de Diana, em mármore, colocado sobre uma coluna de pedra tosca.
As avezinhas, as pobres garças, voaram, naturalmente devido à má companhia, e foram pousar em algum solar dos pais da pátria daquela ocasião…
Na época de D. João VI, muita coisa do jardim “foi na onda”, naturalmente com os estragos havidos pelo mar em 1817…
No reinado de Pedro I, continuou em abandono o Passeio Público e com ele a cascata e o chafariz, tanto assim que por questões políticas, o povo, em 1831, arrancou do portão principal as efígies dos reis portugueses, e da cascata o escudo de Luiz de Vasconcellos, os quais, felizmente, voltaram aos respectivos lugares, tempos depois.
Na regência de Feijó, em 1835, foi cercado o jardim com grades de ferro, e houve reforma no terraço e pavilhões.
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Durante esses trabalhos desapareceu o “Menino de mármore”, provavelmente cobiçado por algum colecionador, tanto que o governo o procurou por toda a parte e não o encontrou, resolvendo então fazer outro igual e para isso quem o quisesse executar que se apresentasse na Repartição das Obras Públicas, mas por pouco dinheiro; o que foi feito, porém, em vez de mármore, em chumbo. O trabalho foi colocado no mesmo lugar do outro e representava o “Menino nu”, alado (asas de lepidóptero) como um Zéfiro em sua leveza aérea, partindo da mão esquerda uma fita, que circundava o seu corpo e sobre ela as palavras: “Sou Útil Inda Brincando”; da mão direita jorrava a água que se projetava no barril de pedra.
Foi este que veio até nós, sem ser conhecido o seu autor, e o cágado desapareceu de vez.
Durante o ano de 1839, foram feitas obras no Passeio Público, segundo relatório, acabaram-se e assentaram-se doze peças de cantaria pertencentes à borda dura do tanque, três lages e dois encostos; abriram-se caixas e chumbaram-se vinte e dois gatos de bronze; fez-se uma peanha para o menino de chumbo. O tanque acha-se inteiramente pronto.
De decadência em decadência, desprezado o jardim, as grades de ferro caíram atacadas pelos sais marinhos.
Mas no reinado de Pedro II, em 1854, foram concluídos os pavilhões octogonais, nos triângulos do jardim e, a 1º de dezembro desse ano, inauguraram-se os lampiões a gás.
Em 1860, contratou o governo com F. José Fialho a transformação do jardim, que foi uma coisa horrível; a imprensa protestou, houve o diabo, como aconteceu com a transformação da Praça 11 de Junho…
Em 1862, colocaram as grades, em forma de lança, que até há bem pouco tempo se viam por traz da cascata, encimando a muralha parapeito do terraço e que, por duas colunas prismáticas, sustentavam dois belos vasos de mármore; aquelas duas colunas eram ligadas por belíssimo e bem trabalhado portão de ferro e bronze, coroados com as armas da cidade-império.
Na República, substituíram as armas do império pelas da Prefeitura Municipal.
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Tudo desapareceu com o Prefeito Carlos Sampaio: uma verdadeira metamorfose se operou no Passeio Público; grades abaixo. O terraço transformado em Cassino, isto é, duas construções estilo colonial, uma de cada lado, como parelhas ligadas por uma canga, a pérgula. E a pobre cascata sofreu; desapareceram três degraus das escadarias, agora são nove; o busto de Diana ficou sem o nariz; o barril do chafariz do Menino foi aumentado de quarenta centímetros; não é mais barril e sim funil…
Assim, estraçalhado e sufocado, pouco resta desse recanto admirável do tempo dos vice-reis!
Mas, foi transformado pela intelectualidade da nossa terra esse bosque sagrado dos cariocas em Panteon dos artistas brasileiros, onde os profanos não entram, e, para nossa honra, lá estão os eternos bronzes de gloriosos vultos: Mestre Valentim, Castro Alves, Gonçalves Dias, Victor Meirelles, Pedro Américo, Ferreira de Araújo, Rodolpho Bernardelli, Hermes Fontes, Irineu Marinho e Olavo Bilac.
No delírio da febre das construções de arranha-céus, muito tem sofrido a cidade, interceptando colinas, desmoronando morros como o do Castelo para elevar-se outros de cimento armado, assim como, sufocam jardins, como o pitoresco Passeio Público. No entanto, a Secretaria de Viação e Obras poderia designar a repartição competente para estudar um plano geral – o cadastro, em que ficariam subordinadas essas construções e não o que se vê todos os dias, construções mastodônticas elevarem-se em ruas de pouca largura, sem o necessário recuo; resolvendo depois de concluídas as obras o alargamento, o que aconteceu com a pretendida investida contra o jardim do Passeio Público.
Felizmente à testa do governo da Cidade está um carioca, Dr. Henrique Dodsworth, Prefeito, interventor, tendo como Secretário da Viação e Obras o Dr. Edson Passos. Sob a orientação deste foi traçado, de acordo com o interventor, modificações no Passeio Público, foram demolidos os edifícios do Teatro e Cassino Beira Mar, não só para descortinar o panorama do jardim como para permitir a alteração do tráfego de bondes e automóveis, que passará a ser feito pela Rua Luiz de Vasconcellos, face direita do jardim, convenientemente alargada para mais doze e meio metros, conquistados ao jardim do Monroe e cedidos pelo Senado, alienação sem a devida autorização do Poder Legislativo e cancelamento no Domínio da União.
Alargada a Rua Luiz de Vasconcellos, passaram a trafegar por ela os bondes e automóveis, de modo que a Rua do Passeio ficará destinada ao tráfego de pedestres. Na face do antigo terraço passam os bondes, ficando entre a Fonte dos Amores e a Rua Valentim um refúgio, onde pretendem fazer gabinetes subterrâneos.
Do velho Passeio Público tudo será conservado, desde as árvores, nas quais ninguém tocará, até as lages exteriores. A Fonte dos Amores, do Mestre Valentim, é claro que será mantida em sua integridade. Do recinto do passeio s6 saíram dois gabinetes, Que já foram demolidos, e o “aquário” que não corresponde à harmonia do ambiente e veio depois da construção do Passeio Público. Tudo, pois, será feito com respeito às árvores e acatamento às tradições.
Fonte
- Corrêa, Armando Magalhães. Terra Carioca - Fontes e Chafarizes. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939. 214 p. Ed. do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Reimpressão feita pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Coleção Memória do Rio, vol. 4).
Veja também
- Passeio Público, por Noronha Santos
- Passeio Público, por Ferreira da Rosa
- Passeio Público, por John Luccock
Mapa - Passeio Público