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Morro da Viúva, por Vieira Fazenda

Morro da Viúva visto do Morro da Urca
Morro da Viúva visto do Morro da Urca

Amável compatrício apreciador de velharias foi em companhia de amigos dar uma volta pela esplêndida Avenida Beira-Mar.

Malgrado o dia carrancudo de Domingo passado chegaram os passeantes “sem acidente” ao Morro da Viúva.

Iam em alegre palestra recordando fatos, que tiveram por teatro a Praia do Flamengo (outrora da Aguada dos Marinheiros, de Pedro Martins Namorado, do sapateiro Sebastião Gonçalves e também de Lery ou Leripe).

Contemplavam o Pão de Açúcar envolto em nuvens.

Viram o sítio da Sapoicatoba, a foz do Carioca e Villegagnon tão célebre nos nossos anais, aforada depois pelos Jesuítas por seis galinhas, etc.

Ao chegarem ao supradito morro, grande foi o espanto dos joviais excursionistas ao verem restos de uma fortificação, e em uma gruta dela as armas da cidade.

Interrogado o chauffeur, que os conduzia, disse ser tudo aquilo, propriedade da Municipalidade, que naturalmente comprou ao Governo.

Tudo isto foi assunto de amistosa carta, que me dirigiu o referido compatrício pedindo lhe pusesse a coisa em pratos limpos. Quer o Sr. Galvão (tal o nome do missivista), saber se a Municipalidade obteve, comprando, esse imóvel, o qual segundo o mesmo senhor devia pertencer ao Governo por ali existirem restos de um fortim.

Antes de ir adiante devo dar o parabém aos passeantes de Domingo passado. Encontraram um chauffeur inteligente e sabedor de coisas cariocas, um bom cicerone, coisa rara, pois que a gente dessa classe em sua maioria não dá a taramela nem cuida de tais ninharias. Estou em dizer que este modesto guia, além da perícia com que conduziu o Sr. Galvão e seus amigos a porto e salvamento, lavrou um tento. Assegurou, até certo ponto sem o querer, o direito inconcusso da Municipalidade sobre o Morro da Viúva. E digam lá que o Rio de Janeiro não é a cidade das maravilhas!

Para tranquilizar o espírito do meu interrogador volto-me para o passado. E se cair em alguma repetição de coisas muito sabidas dos leitores, carregue o Sr. Galvão com a responsabilidade dessa falta. Foi ele quem encomendou o sermão de hoje.

Entro em matéria. O atual Morro da Viúva teve esta denominação por haver pertencido o seu domínio útil a D. Joaquina Figueiredo Pereira Barros, por herança do marido Joaquim José Gomes de Barros.

Até 1753 não teve tal morro nome especial. Foi chamado também de Lery ou Leripe por ter residido na chamada casa de pedra, durante quatro meses, o célebre protestante João de Lery, que para fugir às perseguições de Villegagnon veio residir no continente. Esta “casa” foi, segundo uns, edificada pelo mesmo Villegagnon, e conforme outros, levantada por Martim Affonso de Sousa quando em 1532 aqui esteve durante três meses.

Já por vezes procurei provar: – o primitivo Morro do Lery foi o da Glória. E só depois que este, graças à ermida ali levantada, foi perdendo a primeira denominação dada, foi transferida para o atual Morro da Viúva. Trinta e quatro braças afastadas dele e servindo de peão à referida casa de pedra, começou a linha divisória da sesmaria da Câmara, nas medições de 1667 e 1753.

Que muito antes destas duas diligências, a Câmara se julgava senhora do referido morro, prova o seguinte documento que darei em resumo. Aos oficiais do Concelho João de Sousa Pereira, Crispim da Cunha, Manuel Rodrigues Sepúlveda e Luiz Cabral de Távora foi dirigido o seguinte requerimento pedindo por aforamento terras. Seu teor é o seguinte: “O abade e mais clérigos do Mosteiro do Patriarca São Bento, desta cidade, querem com o favor de Deus começar sua igreja, para a qual hão mister muita pedra para arcos, portais, colunas, janelas, e frestas, a qual se não acha em nenhuma parte a não ser em um outeiro que está nas terras do Concelho, indo para Carioca à mão esquerda da banda do mar, passando a primeira praia, onde há muita cópia dela. Pedem a Vossas Mercês que visto ser a bem o que querem edificar para obra pública e que muito aumenta a nobreza desta cidade e o que principal é ser necessário para o culto divino e veneração de Deus Nosso Senhor, lhes deem vinte braças de pedreira no dito outeiro pegadas à pedreira, que no caminho abriu no dito sítio Sebastião Gonçalves, das quais se lhes passe carta. Receberão mercê e esmola.”

Foi concedida a competente carta em 9 de Dezembro de 1618. Pagariam os religiosos Beneditinos duzentos réis do foro em cada ano.

Obtida a concessão, começaram os monges a levar o material necessário para as obras do Mosteiro.

Houve ali uma espécie de granjearia, onde habitava um religioso. Tinha por incumbência fiscalizar o serviço. Neste posto estava frei João do Rosário, requerido como louvado por parte da Câmara, na segunda medição de sua sesmaria (1753), presidida pelo desembargador corregedor da comarca Dr. Manuel Monteiro de Vasconcellos.

Conquanto o morro ficasse fora do rumo desta segunda medição, todavia a Câmara sempre se julgou senhoria direta dele. Ou fosse devido à posse antiga ou em virtude da chamada sesmaria de sobejos, nunca lhe foi disputado tal direito.

Esta sesmaria concedida pelo governador D. Pedro de Mascarenhas (1667) consistia em todos os terrenos para a parte da cidade, os quais ficaram fora do rumo da primeira medição.

Significa isto que a Câmara se tornava senhora de terras não ocupadas por outros, isto é, do que sobejasse das possessões alodiais. Assim sempre tenho interpretado semelhante concessão de sesmarias.

Pretendem alguns, sem nenhum fundamento, serem os sobejos todo o território da cidade, desde a antiga Guarda Velha até o mar.

Não se compreende como um simples governador pudesse por um rasgo de pena ofender direitos alodiais adquiridos pelos primeiros habitantes e seus sucessores. E isto saltando por cima da lei das Ordenações, em que pelos legisladores era respeitado o direito de propriedade em toda sua plenitude!

Pelo referido já se deixa ver que a Municipalidade podia mandar colocar as armas da cidade em um imóvel pertencente a seu patrimônio.

Naturalmente, e é fácil averiguar, da antiga pedreira se utiliza a Prefeitura para as muitas obras de melhoramentos da cidade.

Passo aos restos da fortificação observada pelo Sr. Galvão e seus amigos companheiros de passeio. São de data moderna. Foi construída por ocasião do conflito com a Inglaterra, a chamada Questão Christie. “Era uma bateria levantada em 1863 com o fim de defender a baía de Botafogo e a enseada do Flamengo, até em frente do Passeio Público, auxiliando a defesa de algumas das faces das fortalezas de São João, Lage e Villegagnon”, refere o ilustre engenheiro militar Dr. Augusto Fausto de Sousa em uma memória impressa na Revista do Instituto Histórico, tomo 48º.

“O espaço acanhado, de que dispunha a mesma bateria, acrescenta o mesmo profissional, a pouca elevação e a facilidade de ser ofendida por fogos curvos, não permitem ligar a esta obra grande importância”. Eis explicado o abandono desta posição.

Ignoro porque os antigos não fortificaram o morro da Viúva, o qual tantos serviços prestou por ocasião da revolta de 1893-94. Não tenho notícias de fortim ali colocado nos tempos coloniais. Nada dizem a respeito o Marquês do Lavradio, os generais Roscio e Funks que deram planos para ser fortificada a nossa cidade. Nada encontro a respeito nas relações enviadas à metrópole pelos governadores como Antônio de Brito Meneses, Aires de Saldanha e outros e os vice-reis Luiz de Vasconcellos, conde de Azambuja o conde de Resende.

No tempo deste foi aqui escrito um Almanak pelo tenente de Bombeiros Antônio Duarte Nunes. Neste documento, publicado no tomo 21º da Revista do Instituto, não se menciona fortificação alguma no morro colocado na entrada da antiga baía de Francisco Velho, de João de Sousa Botafogo.

Fica assim provado que os restos da bateria não têm o valor histórico, que se prende às ruínas de antigas edificações.

É tempo de terminar esta parlenda. Quando os governos para obras de defesa, fortificações ou salvação pública se apoderam de qualquer terreno particular, nem por isto perdem o direito de domínio e posse os legítimos proprietários da zona utilizada. Isto é mais velho que azeite e vinagre. Cessada a urgência ou necessidade, tudo volta ao poder dos antigos donos.

Aconteceu o mesmo com o Morro da Viúva. Abandonada a bateria, a Câmara tomou posse do que era seu, como senhora direta, bem como os que lá possuem o domínio útil. Deste modo, salvo erro, repito, a Prefeitura podia mandar colocar, quantas vezes quisesse, as armas da nossa Sebastianópolis.

Não sei se o meu amável consulente ficará satisfeito.

Cada um enterra seu pai como pode.

Corre-me, porém, ao findar estas mal traçadas regras, agradecer ao benevolente missivista as expressões de gentileza, com que me honrou em sua carta de 10 do andante mês.

Domingo, 15 de Outubro de 1911.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Veja também

Mapa - Morro da Viúva