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Largo da Carioca (III), por Vieira Fazenda

GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.
GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

III

Negras nuvens, nesses princípios de abril de 1831, obscureciam o horizonte político do Brasil, anunciando terrível tempestade prestes a derrocar o edifício da Monarquia, aceita e jurada em 12 de outubro de 1822. No dia 7 rebenta a revolução, que trouxe como resultado a abdicação do 1º imperador e a sua partida para Europa.

Começava o período regencial, – uma das mais importantes e agitadas épocas de nossa história, – batida pelas lutas partidárias, motins, revoluções em várias Províncias, cheio de dificuldades e perigos iminentes. Tempo memorável, durante o qual apareceram os maiores vultos políticos do Brasil, pelo patriotismo, abnegação e talento com que souberam defender os sagrados interesses da pátria, na conquista das liberdades públicas, sufocadas pelos anteriores caprichos do governo pessoal.

Largo da Carioca, via
Largo da Carioca, via Library of Congress

Para Teófilo Otoni o 7 de abril foi uma verdadeira journée des dupes. Projetado por homens de ideias liberais muito adiantadas, jurado sobre o sangue dos Canecas e dos Ratclifs, o movimento tinha por fim o estabelecimento do governo do povo por si mesmo, na significação mais lata da palavra.

“Vi com pesar apoderarem-se os moderados do leme da revolução, eles que só na última hora, tinham apelado para o juízo de Deus”.

Está provado hoje, que eles (os moderados) não pretendiam a revolução; desejavam fosse o imperador mais constitucional e se mostrasse possuído do sentimento brasileiro.

Existe ainda quem dos próprios lábios de Evaristo Ferreira da Veiga, consultado sobre o movimento, ouvira, com referência a Dom Pedro I, as seguintes palavras: – mal com elle, peior sem elle.

Moderar o impulso do carro revolucionário foi desde logo o intento de um grupo de patriotas, os quais desse modo procuravam comprimir a válvula da anarquia, que ameaçava o Brasil inteiro.

O exímio escritor Francisco Otaviano confessava, em carta impressa na Reforma, haver pesquisado, coligido e cogitado com o intuito de escrever alguma coisa para memória dos serviços prestados pelos homens do Sul, no período da Regência; faltou-lhe, confessa, tempo e saúde para complemento de seu trabalho. Indicava para tal cometimento dois ilustres brasileiros: Sales Torres Homem e José Maria do Amaral.

Infelizmente, porém, sobre tão importante estádio não há ainda trabalho completo: existe todavia abundante cabedal nos jornais do tempo e em pequenas memórias. Vão sendo trazidos à luz da publicidade documentos autênticos, que muita luz derramam e nos vão dando a psicologia dos nossos homens de Estado de 1831-1840.

Entre os escritos ultimamente publicados destacarei um: a excelente memória do Sr. João de Moraes, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, recentemente distribuída. Nesse consciencioso trabalho encontra-se uma carta do regente Francisco de Lima e Silva, datada de 12 de setembro de 1833 e dirigida a seu colega Costa Carvalho, então, por motivo de moléstia, afastado do Governo e residindo em Piracicaba. Nessa missiva existe ligeira referência a triste fato, de que foi teatro o Largo da Carioca. Eis o conteúdo do documento:

“Ilmo. Exmo. Sr. – O Exmo. Sr. Conde de Valença, portador desta, dirá a V. Ex. o desgosto porque ora passo com o acontecimento do meu filho Carlos. Eis o resultado da liberdade de licença da imprensa. Tenho estado a ABEDICAR (sic) a Regência, meus amigos e parentes têm se oposto, porém não sei ainda o que farei. As Câmaras vão ser outra vez prorrogadas; nada se tem feito, nem mesmo lei do orçamento. Desejo a V. Ex. saúde, envejo-lhe o sossego em que está. Sou etc.”

Qual seria, pois, o grande desgosto que acabrunhava a alma desse membro da Regência permanente e lhe dava vontade de resignar o poder? Essas tribulações de espírito eram justificadas por mais de dois anos de lutas, dificuldades, perigos a vencer, sufocando anarquistas e fazendo frente aos retrógrados, que sonhavam a volta do 1º imperador. A ausência prolongada de seu colega Costa Carvalho e ainda mais a falta de harmonia com o 3º regente, João Bráulio Moniz, explicam suficientemente a situação de Lima e Silva. Chegou mesmo a nutrir a ideia de violento golpe de Estado, proclamando a ditadura militar. Desse intento, foi, porém, demovido por motivos perfeitamente explicados pelo referido Sr. Morais, com o testemunho de provas autênticas.

À Regência permanente faltavam força e prestígio, que lhe tinham sido tirados pela Câmara dos Deputados. Os representantes do Poder Executivo estavam desarmados para jugular os perturbadores da ordem pública, os desordeiros, que em todos os ângulos do país não cessavam de fazer guerra aberta ao governo regencial por diversos meios, servindo-se de todas as armas, inclusive a difamação e a calúnia. Após a revolução, os autores do 7 de abril dividiram-se em dois grandes grupos: os exaltados e os moderados.

Aqueles procuravam sem boa orientação curar os males da pátria com remédios violentos, demissões, deportações, perseguição aos sectários do 1º imperador. Por qualquer motivo vinham para a praça pública promover desordens e açular contra os contrários as massas populares. Na imprensa eram representados pela Nova Luz Brasileira, o Exaltado e o Jurujuba.

Diante de tantos perigos acumulados a Regência, em boa tendo por sede de suas reuniões a Sociedade Defensora. Seu principal chefe, Evaristo Pereira da Veiga, na Aurora Fluminense, combatia com calma as diatribes dos antagonistas, procurando salvar da anarquia o regime monárquico constitucional.

De uma abnegação sem exemplo, esse ilustre Brasileiro foi o verdadeiro diretor espiritual dos governos de então. Indicava regentes, ministros, presidentes de Província; podia ter sido tudo, contentava-se com sua cadeira de deputado, a sua Aurora. Fora livreiro e livreiro morreu! Nem assim escapou à tentativa de assassinato, planejado por inimigos desleais, que nas folhas oposicionistas declaravam ser tudo aquilo ridícula farsa, engendrada pelos próprios correligionários da vítima!

Para aumentar os males da situação arregimentava-se um terceiro partido, o Caramuru, formado pelos apeados das posições oficiais, por homens de fortuna, proprietários e capitalistas que reprovaram apaixonadamente o 7 de abril e por todos os modos procuravam conseguir a volta de Dom Pedro I. Dele, segundo parece, faziam parte os Andradas que, de volta do exílio, se haviam reconciliado com o 1º imperador. Estavam descontentes, porque seus nomes não foram lembrados para regentes. É digna de ser lida a discussão entre Antônio Carlos e Evaristo.

Diante de tantos perigos acumulados a Regência, em boa hora, confiou a pasta da Justiça ao Paulista padre Diogo Antônio Feijó, irreconciliável inimigo dos Andradas, desde o tempo da bernarda de Francisco Ignácio. Esse enérgico homem de Estado, alcunhado, muito mais tarde Cavaignac de batina, aceitou a incumbência com especiais condições. A ele foi devida a criação da Guarda Nacional e o Corpo Policial de Permanentes. Com esses meios pode com facilidade bater os exaltados e destruir os tramas revolucionários dos Caramurus.

Rebelam-se batalhões aquartelados em São Bento e Ilha das Cobras, e Feijó, guerreado pelos exaltados, prontamente sufoca o movimento. Grande conflito provocado por seus inimigos políticos e a surgir a propósito de uma questão entre dois oficiais; ele reúne prontamente forças no Largo do Rocio e o motim aborta. São conhecidos os acidentes desse fato, que deram em resultado a descarga de fuzilaria para dentro do Teatro Constitucional (depois São Pedro de Alcântara). Contra Saturnino de Oliveira, juiz de paz, e Feijó, levantou-se, nos jornais, a grita dos derrotados acoimando-os, pelos jornais de grei, de tigres sanguissedentos, paus de laranjeira, renegados e asseclas do livreiro.

Demais, os combatentes de 3 e 17 de abril de 1832 aí estão para provar a energia do ministro da Justiça, que, de sobrecasaca e chapéu alto, vinha para a rua dar ordens e providências contra as constantes rusgas ou bernardas. Depois de tão relevantes serviços, Feijó pede demissão por haver o Senado mantido na tutoria do mesmo imperador a José Bonifácio.

Diante do estado anômalo do país, é planejado o célebre golpe de Estado de 30 de julho de 1832, em casa do deputado padre José Custódio Dias, na chácara da Floresta. O ministério pediria demissão bem como os três membros da Regência. A Câmara ficaria constituída em Convenção Nacional para proceder às reformas constitucionais, únicos remédios possíveis para debelar os males do tempo. O plano falha, porém, devido à intervenção de Honório Hermeto, e todos recuam. A Regência continuou, com ministério novo, denominado dos quarenta dias, o qual é substituído pelo gabinete de 13 de setembro de 1832, no qual toma Honório a pasta da Justiça, até 11 de março de 1833, tendo por sucessor Araújo Viana (mais tarde marquês de Sapucaí). No já excelente e referido trabalho do senhor Morais está impressa uma carta de Evaristo, pela qual se prova quanto não foi bem aceita pelos moderados a escolha do futuro marquês de Paraná.

De uma coisa, além do mais, tinha razão de queixar-se Lima e Silva: a linguagem cáustica, ferina, desabrida e imortal das folhas da oposição. Nunca a imprensa entre nós desceu tão baixo, não poupando a vida íntima dos moderados, governantes ou não, e até invadindo o lar da família de uns e de outros!

O Dr. Moreira de Azevedo, em uma memória publicada na Revista do Instituto Histórico (1865), dá a lista dessas folhas, das quais, pela excentricidade dos títulos, mencionaremos apenas: Jurujuba dos Farroupilhas, Dois Compadres Liberais, Doutor Tira Teimas, Filho do Simplício, Médico dos Malucos, Busca-pé, Velho Casamenteiro, Enfermeiro dos Doidos, Matraca dos Farroupilhas, etc.

Excedia a todos, porém, no desbragamento de linguagem o Brasil Aflito, redigido por certo Clemente de Oliveira, o qual, não contente de insultar as pessoas dos regentes, em mau dia lembrou-se de atacar a honestidade das senhoras pertencentes à família Lima e Silva.

Carlos Miguel de Lima e Silva, filho do regente brigadeiro Francisco de Lima e Silva, guapo mancebo de 18 anos, entendeu fazer justiça por suas mãos, inutilizando o miserável insultador dos entes que lhe eram mais caros. Havia sido alferes do extinto Batalhão do Imperador. Caminhava fardado pelo Largo da Carioca, quando viu entrar em uma botica desta praça, no quarteirão entre as ruas Gonçalves Dias (antiga Latoeiros) e Uruguaiana (Vala) o desabusado Clemente. Não posso dizer se essa botica seria a mesma, onde se deu o fato do David Pamplona. Dirigindo-se para o local, Lima perguntou se Clemente era o autor da verrina. Obtida resposta afirmativa, acompanhada de riso sarcástico, Carlos, desembainhando a espada, de um só golpe mata o panfletário. A morte foi instantânea. Dentro do chapéu de copa alta foram encontrados vários exemplares do jornaleco, que Oliveira se propunha naturalmente distribuir.

Satisfeita a vingança, o filho do regente entrega-se à prisão, sofre processo regular e é submetido ao júri, que então tinha outra organização. Esse tribunal reconhece não haver matéria para acusação.

Desgostoso, embarca-se para os Estados Unidos, onde esteve por alguns anos. Mais tarde regressou à pátria, e sob as ordens de seu irmão Luiz (duque de Caxias) serviu com distinção no Rio Grande do Sul, nas fileiras da Legalidade. Em 1846 faleceu Carlos de Lima, contando apenas 31 anos.

Eis explicado o trecho da carta do regente a seu colega Costa Carvalho. Não deixa tudo isso de vir de molde nestas mal alinhavadas memórias do Largo da Carioca.

5 de abril de 1904.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Texto original

Imagem destacada

  • GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. 1 planta ; 30,2 x 40,7 em f. 35,5 x 47cm. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Mapa – Largo da Carioca