Avenida Treze de Maio (II), por Vieira Fazenda
![GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional. GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.](/img/bn/bn_Guia-e-Plano-da-cidade-do-Rio-de-Janeiro-1858-Mc-Kinney_cart174224-Rua-da-Guarda-Velha.jpg)
II
Com relação ao suprimento de água potável, vem de muito longe o caiporismo dos habitantes desta nossa Sebastianópolis. Serve de prova o histórico, durante mais de século e meio, dos encanamentos do rio Carioca; este assunto daria material para farto volume, tantos são os documentos inéditos, existentes no Arquivo Público. Desse estudo trataram resumidamente Pizarro, o cônego Fernandes Pinheiro e o Dr. Moreira de Azevedo.
Não referiram, porém, esses historiógrafos que a paternidade da ideia de conduzir as águas do dito rio ao coração da cidade pertence ao ouvidor Manuel Pereira Franco, que, por acórdão tomado em Câmara, a 21 de abril de 1648, deliberou com os respectivos vereadores pôr a obra em arrematação, consistindo em conduzir o precioso líquido por meio de calhas de madeira, sustentada por arcos, pelo sopé dos morros até o Campo da Ajuda.
Era de toda a urgência este serviço público, pois, como é sabido, os primitivos habitantes mandavam buscar a água ao rio Carioca, que tinha duas embocaduras: uma na atual praia do Flamengo e outra por trás do morro da Glória.
À desvantagem da distância acrescia o fato do abuso praticado pelos moradores das margens do rio, os quais roteando roças não só deixavam impuras as águas, como impediam o seu livre curso. Nas nascentes tomavam banho não só negros, que se ocupavam da pequena lavoura, como indivíduos afetados de moléstias hediondas, tais como morfeia, etc. Para alguns usos domésticos haviam os moradores cavado profundos poços, e muitos deles hoje existem em quintais desta cidade.
A falta de créditos municipais obstou por muito tempo a realização desse grande melhoramento, apesar da boa vontade do governador Thomé Corrêa de Alvarenga, que em vão apelava para a Metrópole, a qual fazia ouvidos de mercador.
Enfim, a carta régia de 6 de Maio de 1672, permitiu que o imposto conhecido pelo nome de “subsídio pequeno dos vinhos” fosse exclusivamente aplicado às obras dos encanamentos. No governo de João da Silva e Sousa foram elas afinal começadas, sendo nomeados mestres João Fernandes e Albano de Araújo, recebendo o primeiro 500$ e o segundo 120$, para execução do plano adotado. Foram-lhe entregues cincoenta índios para o serviço, aos quais foi determinado dar-se comida e sete varas de algodão por mês.
Rendia pouco o tal subsídio, e a Câmara por seu alvedrio resolveu cobrar 400 réis por barril de aguardente do Reino aqui importada, contra as determinações do Governo. Em carta régia de 26 de maio de 1682 tomava a Edilidade grossa repreensão pelo seu descuido e má aplicação dos dinheiros!
Em 1683 pararam os trabalhos, e o povo que se aguentasse como pudesse. Até os jesuítas meteram o bedelho no negócio, advogando os interesses dos Índios que, segundo os padres, deviam, além do mais, receber quatro vinténs por dia. Caminhando com muita morosidade a canalização, a Câmara resolveu contrair um empréstimo. Espichou-se, porque fiado nisso o governador Arthur de Sá e Meneses fez suspender todo o trabalho, aplicando para outros misteres o subsídio pequeno: alvitre este aprovado pela carta régia de 23 de outubro de 1700!
Chegou-se às boas o Governo da Metrópole, e em 1761 mandou para fazer face às despesas dar as sobras da Casa da Moeda, e, mais tarde, adicionou ainda o tal subsídio, que havia sido anteriormente tirado. O governador D. Álvaro da Silveira resolveu (e teve o placet do Governo) comprar à custa da Fazenda Real negros, que servissem de operários, para conclusão das obras, cuja morosidade era um verdadeiro escândalo, no dizer do Cônego Pinheiro.
Apareceram em cena os goelas, que em todos os tempos e lugares se aproveitam das calamidades públicas para mostrar seu desinteresse pela causa da Humanidade. Exemplo: as duas invasões francesas de 1710 e 1711. Em 1717 estavam, havia muito, suspensos os trabalhos e, o que é mais, foi reconhecido não prestar tudo quanto tinha sido feito até então; tais eram os erros cometidos que os encanamentos estavam arruinados, em certos lugares arrebentados pela malvadez dos desocupados e vagabundos, raça tão antiga como o mundo.
Para reparar os danos e prosseguir-se no muito a fazer, determinou o Governo fosse levantada nova planta. Remetida a Lisboa, dizem cronistas, receou-se que com ela se despendessem somas exorbitantes, atenta a péssima direção que, desde o começo, tivera em malfada obra. Ordenou-se fossem feitas ligeiras modificações no primitivo plano, em ordem a remediar os mais grosseiros erros, e para ocorrer às despesas foi aumentada a subvenção com a importância da passagem do rio Paraíba do Sul. Além disso, a carta régia de 25 de dezembro de 1718 insinuava ao governador procurasse persuadir aos moradores dessem seus escravos para os trabalhos (de graça) nos encanamentos da Carioca.
À frente do Governo, resolveu Ayres de Saldanha, de motu proprio, abandonar o antigo sistema seguido e dar novo impulso aos trabalhos, adotando plano inteiramente novo, mais barato e de mais prontos resultados. Nesse tempo, recebeu ele a carta régia de 16 de novembro de 1719, ordenando a suspensão de qualquer melhoramento até novo aviso!
Fez-se de desentendido Albuquerque, caminhou para frente, obteve do empreiteiro redução de vinte mil cruzados no orçamento e meteu ombros à empresa de trazer a água ao Campo de Santo Antônio em vez do da Ajuda, importando apenas o acréscimo da despesa em 38:000$000.
Aprovado tudo pela Metrópole, em 1725, foi inaugurado o antigo chafariz da Carioca, cujas peças vieram fabricadas de Lisboa. Grande regozijo na cidade; mas ignoro se houve manifestações ao benemérito Ayres, que bem as merecia.
Essa fonte pública funcionou até 1830, quando foi demolida para dar lugar a um chafariz de madeira com pintura fingindo granito, que durou até 1833. Nesse ano, mais ou menos, deu-se começo à construção do atual chafariz da Carioca, inaugurado em 7 de abril de 1834.
Mas (não há bem que sempre dure) o caiporismo continuava; eram patentes os desperdícios dos dinheiros públicos, de tal sorte que, em 1731, o governador Vahia Monteiro declarava ao Governo, que em 50 anos haviam sido gastos, com a Carioca, sem proveito, cerca de seiscentos mil cruzados!
Tantos eram os tribofes, que da carta régia de 19 de dezembro de 1735 se depreende estar o aqueduto da Carioca já arruinado em várias partes por ser de seu princípio feito com pouco precaução, experimentando-se muita falta de água na cidade.
À simples intimação do governador Silva Paes foge o encarregado das obras da Carioca com receio de prestar contas. Calando por falta de espaço muitas circunstâncias com relação ao assunto, as quais provam a falta de consciência e a corrupção do tempo, em detrimento dos sagrados direitos do povo, só direi e isto é geralmente sabido: foi Gomes Freire de Andrade quem terminou esse horrível statu quo, dando nova direção aos encanamentos, fabricando-os aqui com pedra do país, fazendo construir as duas arcarias, cuja solidez é ainda hoje admirada, e dando muitas outras providências, continuadas por seus sucessores. Cabe lugar de honra ao conde de Resende, que muito fez em prol do abastecimento d’água.
Tudo quanto vai referido serve para explicar a origem do nome de Guarda Velha, o qual, até nossos dias, conservou atual Avenida Treze de Maio.
Sendo o chafariz da Carioca a única fonte, a ela concorriam não só os galés, que iam buscar água para os estabelecimentos públicos, como também enorme quantidade de escravos dos moradores da cidade.
É fácil de prever a algazarra e os distúrbios, a que dava lugar tão grande reunião de gente. Esses inconvenientes subiam de ponto por ocasião das secas, que frequentemente assolavam a cidade, diminuindo a quantidade produzida pelos mananciais, como por muitas vezes aconteceu.
Nesses tempos calamitosos intervinha a Polícia, ordenando que os pretos com seus potes, barros e pequenas vasilhas, se enfileirassem pela ordem que fossem chegando, e esperassem a sua vez de ir à chamada tamina. Quando algum recalcitrante pretendia romper o cordão, fazia-o entrar na ordem a chibata do quadrilheiro (policial antigo). Enquanto esperavam sentados sobre os barris, os negrinhos se entretinham palestrando, discutindo, cantando ou fumando o seu cachimbo. Por dá cá aquela palha, armavam-se rolos, havia cenas de pugilatos, desordens, contendas e até crimes.
Para obviar todos esses males desde tempos antigos foi postada junto ao chafariz, uma sentinela, a qual se abrigava da chuva em uma guarita ali colocada. Mais tarde Gomes Freire estabeleceu um corpo de guarda no lugar em que está hoje o posto de bombeiros. Apesar de haver a guarda nova, o povo teimou em conservar o nome de guarda velha, esquecendo-se até da denominação dada pelo Senado em homenagem a Gomes Freire.
Em nossos dias, o prosaico nome Guarda Velha foi mudado para comemorar fato da mais alta significação, felizmente antes que lhe dessem o nome de algum paparrotão, ou ilustre desconhecido.
O que, porém, muita gente ignora é a luta travada entre a Câmara e o governador Luiz Vahia Monteiro, a propósito da Guarda Velha, questão de gabinete, na qual teve de intervir o Governo régio, ora aprovando a retirada da sentinela, ora ordenando a sua permanência.
Câmara e governador andavam, desde muito, de candeias às avessas. Tendo o rei ordenado elegessem os edis um conservador das obras da Carioca, Vahia participou essa resolução aos representantes da Cidade, os quais exigiram do governador a apresentação da ordem régia. Este, para fazer picardia, recusou-se a satisfazer.
A Câmara elege o tal sujeito, mas dizendo ao rei que o fazia sem saber se era verdade o que alegava Monteiro. Este escreve para Lisboa, e de lá vem grossa reprimenda à Câmara por duvidar da palavra do representante régio. Para remoque, resolve Vahia Monteiro retirar da Carioca a sentinela, dizendo que ela era desnecessária. A Câmara põe a boca no mundo e queixa-se ao rei do governador.
Segue-se a história de dois negros, já narrada na Tribuna por Eduardo Peixoto, os quais voltando da Carioca foram espadeirados por um soldado.
Afinal, o rei mandou conservar a sentinela com 40$ de ordenado por ano, além do soldo, e tudo apaziguado. Não a luta entre a Câmara e Vahia; esta continuou sempre sobre outras questões mais ou menos do mesmo quilate.
Tudo isso serviria de assunto a um poema herói-cômico e está indicando que os nossos antepassados se ocupavam muito de ninharias.
Faltava-lhes divertimento… a politicagem dos tempos de hoje.
(10 de fevereiro de 1904.)
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Livro digitalizado
Imagem destacada
- GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. 1 planta ; 30,2 x 40,7 em f. 35,5 x 47cm. Acervo digital da Biblioteca Nacional.
Veja também
- Avenida Treze de Maio (I), por Vieira Fazenda
- Avenida Treze de Maio (III), por Vieira Fazenda
- Avenida Treze de Maio (IV), por Vieira Fazenda
- Avenida Treze de Maio (V), por Vieira Fazenda
- Avenida Treze de Maio (VI), por Vieira Fazenda
- Rua da Guarda Velha, por Charles Julius Dunlop
Mapa - Avenida Treze de Maio, antiga Rua da Guarda Velha