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Ajuda e Carioca, por Vieira Fazenda

GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.
GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Muito embaraçado se verá quem, daqui a cinquenta anos, desejar conhecer as antiguidades da “Avenida Rio Branco” e suas redondezas, se exclusivamente se cingir ao que escreveu o Dr. Felisbello Freire, em sua recente História desta nossa capital.

Mais uma vez vou discordar da opinião do ilustre sabedor da História do Brasil, em todas as suas minúcias e particularidades. Faço-o com a certeza de não melindrar o ilustre cientista e fiado na benevolência, com que sempre me distinguiu. Sua Excelência já o declarou pela A Imprensa: “com as nossas discussões muito lucra a verdade histórica. E, se nos permite, escrevia ainda o meu contendor referindo-se ao obscuro signatário destas notas, pedimos-lhe que continue a prestar-nos o bom contingente de suas lições (sic) e conselhos”.

A pág. 314 da História da Cidade do Rio de Janeiro escreveu o Dr. Felisbello: “Já tivemos ocasião de dizer que o Largo da Carioca era coberto por uma lagoa. Não acreditamos que suas águas comunicassem com uma lagoa na Rua da Ajuda, interceptadas por uma elevação de terreno, onde está a antiga Rua da Guarda Velha, construída justamente pelas fraldas do Morro de Santo Antônio, que por aí se estendia. Essa elevação (sic) entre as duas lagoas abriu uma via de comunicação dos habitantes da cidade para o Desterro, que se fazia pela Rua Evaristo da Veiga”.

Houve com efeito duas lagoas que convém não confundir: uma, a do Boqueirão da Carioca, onde está hoje o Passeio Público, e a outra denominada de Santo Antônio, a qual se estendia pelo sopé deste morro.

Estas duas lagoas eram separadas por extensa zona, através da qual existiam vias de comunicação em busca do Rio Carioca, conforme leio em uma carta de sesmaria de 1573 dada a Nuno Tavares.

Na entrada da atual Rua Evaristo da Veiga espraiava-se a Lagoa de Santo Antônio, como diz frei Vicente do Salvador. Para se passar havia um espaço não invadido pelas águas. Era a chamada “Ilhota”, da qual fala o livro do tombo do Convento da Ajuda.

Na referida zona havia proprietários conhecidos do Dr. Felisbello. Existia a Capela da Ajuda reedificada em 1600, e depois o antigo recolhimento, a caixa d’água, as casas de El-Rey destinadas a guardar materiais das obras da Carioca, cujos arcos velhos passavam exatamente pelos terrenos dos frades da Terra Santa e de outros particulares.

A Lagoa de Santo Antônio invadiu o lado par da que foi até pouco tempo Rua d’Ajuda. O morro do referido Santo não apresentava aí elevação alguma. A lagoa ocupava toda a zona em que depois se abriu a Rua da Guarda Velha ou do Conde, pois foi o Conde de Bobadela quem terminou o completo enxugo da supracitada lagoa (vide Arquivo das Religiosas de Santa Teresa).

Com referência à divisão das águas, deu-se o seguinte, que encontro nas Publicações do Arquivo Municipal, 3.º volume (1896). Em 1731 houve inundações, causando clamor dos moradores da vizinhança, os quais se viram a ponto de abandonar seus domicílios. A Câmara de então atribuiu o caso ao fato de terem os franciscanos entulhado parte da lagoa para fazerem um caminho de carro, e terem edificado um muro com o competente portão. A Câmara ordenou outrossim, fosse tudo demolido; pois ela destinava o sítio para Rocio da cidade. Os religiosos replicaram, alegando que desde 1712 a divisão da lagoa se tinha realizado com o consentimento dos vereadores, e que se deram até 1731 muitas outras inundações sem motivar queixas da parte dos vizinhos.

Era o fato devido a terem eles franciscanos conservado um cano de três a quatro palmos com destino à livre comunicação das águas das duas partes da lagoa. As inundações de 1731 eram devidas a estar entulhado o cano, que passava por baixo da Carioca e dava escoamento às águas para a vala ou antigo poço.

Neste documento se assinala já em 1712 a existência da Rua da Guarda Velha, “devido a aterros” e não à elevação do morro.

A parte da referida lagoa, primitivamente aterrada, foi a que banhava o local em que está hoje o edifício da Imprensa Nacional.

Ali edificaram os franciscanos (1607) pequeno hospício, ao pé do monte, em que se devia edificar o convento. Neste encargo, diz Capistrano de Abreu, frei Vicente (do Salvador) mandou aplainar o sítio, por ser um tanto apertado e áspero, tirando-se no mesmo lugar a pedra para a obra.

“Nestes preparos esteve até que a 4 de junho de 1608 se lançou no fundo dos alicerces a primeira pedra dos corredores do Convento com grande concurso de povo”.

Bom é também lembrar: a Câmara com Martim de Sá (governador), cedendo aos frades parte do morro, se obrigava a abrir uma rua de trinta palmos, a qual fosse como as outras em direção ao mar.

Salvo melhor juízo, penso ser esta rua a depois chamada do Parto e hoje de São José. De que em fins do século XVII o local, hoje Largo da Carioca, estava mais ou menos apto para ser povoado, encontro provas não só em documentos da Misericórdia como nos Tombos de Santo Antônio e da Ordem da Penitência.

Em 1709 já ali havia um cemitério de pretos, e anos depois Aires de Saldanha edificava o primeiro Chafariz da Carioca.

“O Largo da Carioca, escreveu ainda o Dr. Felisbello, é um dos trechos da cidade que mais interesses e ao mesmo tempo maiores dificuldades oferece ao nosso estudo. Toda a sua extensão territorial, compreendendo a das ruas que nele desembocam, passou sucessivamente por diversos proprietários.

“Do lado da Rua de São José o seu primeiro proprietário foi Chrispim da Cunha (sic) que obteve por sesmaria os terrenos, em 1673 (erro de revisão, deve ser 1573) até entestar com a lagoa, expandindo-se sobre o outeiro de Santo Antônio. Do lado da Rua da Carioca (sic) estava Fernando Affonso, etc.”

Peço vênia para tudo contestar. Começo pelo final. Fernando Affonso localizou-se no sítio em que hoje está, mais ou menos, o Teatro Lírico. Ali tinha ele já em 1592 uma ermida dedicada a Santo Antônio.

E porque Fernando Affonso doou aos carmelitas terras, muita gente confunde tal doação com a de Chrispim da Cunha em ponto mais distante. Vai o pouco cuidado ao ponto de se dar ao genro do Dr. Antônio de Mariz Coutinho o apelido de Costa. Deste modo D. Isabel de Mariz teria sido casada com dois maridos, ambos de nome Gaspar! Tal não é verdade. Basta ver a genealogia de Antônio Mariz, a qual, organizada pelo ministro Dr. Macedo Soares, está guardada no arquivo do Instituto Histórico.

Eis o resumo da sesmaria de C. da Cunha concedida por Christovam de Barros, em 15 de setembro de 1573. Chrispim pedia se lhe dessem terras na vargem da cidade, defronte do chão de Simão Jorge, onde acabar Balthazar Cardoso, “ao longo do caminho”, até entestar com “agoa da lagôa”, de comprido pelo outeiro acima lhe dessem também braças, etc. O governador concede ao suplicante sessenta braças em quadro situadas à mão esquerda “no caminho que vai para o Boqueirão da Carioca”.

Por escritura de 7 de novembro de 1591 Chrispim da Cunha e sua esposa doaram aos carmelitas essas mesmas terras. Declararam ambos possuir um chão – no outeiro da lagoa “defronte a Sancto Antonio”, terra que traspassavam à casa de Nossa Senhora do Carmo.

Melo Morais, pai, cita o auto de posse tomada pelos carmelitas. A medição começou no sítio das casas que foram de Sebastião Bolder. Neste instrumento público fala-se em lagoa e também na fralda de um outeiro acima, pela qual se mediram sessenta braças (Chronica Geral e Minuciosa do Imperio do Brazil, pág. 205).

A lagoa aludida é sem dúvida a do Boqueirão, e não a de Santo Antônio. O outeiro é a aba do atual Morro do Castelo conhecido por morro de pedra, e que teve o nome de Morro de São Januário. Como é sabido, as terras supramencionadas foram compradas pelo bispo D. Antônio do Desterro (1750) para aumento do Convento e cerca da Ajuda.

Esta zona de sessenta braças em quadra sitas no lado esquerdo do caminho do Boqueirão, confinavam com terras do Seminário de São José, compradas, pelo bispo Guadalupe, quando tencionava edificar esta casa de ensino. Tais terras tinham também por vizinho Manuel Rodrigues da Costa, dono da sesmaria de Nuno Tavares e casado com uma descendente do ermitão da Glória, Antônio Caminha. Este Costa foi quem vendeu terras ao bispo D. frei João da Cruz para o Convento d’Ajuda. Julgou-se lesado e moveu às religiosas uma demanda, que só findou em 1811. Por aí se vê: as terras dos carmelitas nada têm com o atual Largo da Carioca!

Vou concluir. À pág. 77 do volume IV do Arquivo Municipal (1897) ocorre: “O Registo de Instrumento em pública forma, com o teôr de hua justificação passado a requerimento do Reverendo Prior de Nossa Senhora do Monte do Carmo”. Este documento tem a data de 10 de dezembro de 1749. Os carmelitas por seu superior procuravam garantir o domínio direto sobre os terrenos legados por Chrispim da Cunha.

Dizia o peticionário: “entre os mais bens pertencentes à sua ordem eram uma terras junto do Convento Novo das Freiras desta cidade que parte de uma banda com a estrada que vai junto do dito Convento para Nossa Senhora da Glória e pela outra banda entestam no mar, etc.” Ora, terras assim discriminadas não podem de modo algum ser localizadas no pretendido sítio imaginado pelo Dr. Felisbello.

O ilustre historiógrafo, em dias deste ano, no seu jornal o Economista, procurou chamar a atenção do ministro da Fazenda para a ilegalidade (sic) da venda do Convento d’Ajuda e terrenos adjacentes. No rol, porém, dos bens adquiridos pelo convento não é mencionado nem um palmo de terra no Largo da Carioca. E a lista apresentada ao primeiro príncipe regente pela abadessa era completa e meticulosa.

Para se ver que a razão de tudo quanto apontei está de meu lado basta ler a nota da pág. 322 da História da Cidade do Rio de Janeiro. Ali cita o próprio Dr. Felisbello uma escritura, em que se fala em Convento d’Ajuda, na Lagoa do Boqueirão, no mar, em terras dos carmelitas e até no outeiro de São Januário (Castelo).

Quem teve, digo ao terminar, terrenos no Largo da Carioca, foi a Ordem Terceira do Carmo, que em 1748 os vendeu à Ordem da Penitência!

24 de novembro de 1912.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Imagem destacada

  • GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. 1 planta ; 30,2 x 40,7 em f. 35,5 x 47cm. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Mapa – Largo da Carioca