A Rua Estreita, por Vieira Fazenda
![GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional. GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. Acervo digital da Biblioteca Nacional.](/img/bn/bn_Guia-e-Plano-da-cidade-do-Rio-de-Janeiro-1858-Mc-Kinney_cart174224-Rua-Estreita-de-S%c3%a3o-Joaquim.jpg)
Tratando-se de abrir avenidas, não há administrador que em perícia leve de vencida o nosso atual prefeito.
Mais um melhoramento importante acaba ele de fazer, inaugurando outra bela avenida, que vai ser o grande sucesso da presente semana.
Sem dilatação gradual, mas segundo os rápidos processos modernos, o Dr. Passos transformou em pouco tempo a triste, feia e lúgubre Rua Estreita de São Joaquim em larga via de comunicação, que facilitará o trânsito público entre o antigo Sítio de Valverde (Largo de Santa Rita e Beco do João Batista) e a Rua Larga, depois Floriano Peixoto, aberta em terras da chácara de Manuel Casado Vianna, cujo antecessor, o Antônio Vieira, é mui conhecido nas crônicas da terra pelo seu apelido.
Por mais conhecedor que se seja das antiguidades desta Sebastianópolis, custa hoje reconhecer o lugar em que existia a antiga vila, em cujos princípios tivera o seu curtume o José da Costa.
Quem dirá haver ali existido a igreja de São Joaquim, que substituiu a antiga capela doada aos meninos órfãos de São Pedro pelo Manuel de Campos Dias?
O melhoramento realizado graças à dinamite ocupava a mente dos nossos homens há mais de cincoenta anos.
Demolida a velha igreja de Santa Anna e inaugurada a estrada de ferro, falava-se na vantagem de prolongar a Rua Larga até à Prainha, por comodidade do comércio.
Projetos e projetos foram apresentados, mas todos naufragavam ante a vontade do alto, que não queria se tocasse na Igreja de São Joaquim, anexa ao Imperial Colégio.
Interdita por muito tempo e sem prestar serviços ao culto religioso, abrigou ela sob seus tetos o Liceu de Artes e Ofícios, o Instituto Comercial, a Diretoria da Instrução Pública, e até uma estação policial, na casa que serviu de residência aos antigos reitores do hoje Ginásio Nacional.
Mas querer é poder, e o Dr. Passos entendeu que esse estado de coisas não podia continuar. Como Cesar ele pôde exclamar – veni – vidi – vici.
E tudo foi feito; as baiucas da Rua Estreita, as casas de tavolagens e de quitandeiras, as lôbregas lojas de violeiros vão dar lugar a belos edifícios, que causarão inveja aos da Rua Acre e da Avenida Treze de Maio.
E por falar em violeiros. É uma indústria que vai em plena decadência. Tantos eram eles a princípio e domiciliados na atual Rua Teófilo Ottoni, que fizeram trocar o nome antigo de Domingos Coelho pelo de Violas.
Daí emigraram para a rua ex-Estreita, hoje alargada.
Em 1799, porém, segundo reza o Almanaque de Duarte Nunes, existiam na cidade apenas quatro lojas de violas, donde se conclui ser esse mais ou menos o número dos industriais recentemente desalojados com as demolições.
Entretanto, com ser feita, tenho saudades da antiga Rua Estreita. Recordações da mocidade do tempo do Colégio Pedro II.
Era o caminho favorito de grande número de colegiais.
Enquanto uns buscavam de preferência a Rua da Imperatriz para enticar com o célebre Alves, o patriarca dos sebos, feio como sapo e imundo como porco, outros preferiam a rua em questão. Principalmente para apreciarem os trabalhos de desobstrução da antiga vala, que feita uma vez por ano durava longos meses. Ali, do lado ímpar ainda conservado, existe pequena casa térrea, habitada, há quarenta e seis anos, pela quitandeira Josepha, que, por dois ou quatro vinténs, nos vendia pamonha, pés de moleque, pipocas, amendoins e bananas.
À porta da boa africana fazíamos ponto, esperando o toque de chamada para as aulas. Esse serviço era executado, com toda a perícia, às 8 ¾ da manhã, pelo crioulo Xavier, bonito tipo, de gaforina repartida ao centro – estrada da liberdade, como então se dizia.
O Xavier agarrava-se ao sino grande de São Joaquim e só largava o badalo depois de ter visto das ruas circunvizinhas os retardatários afluírem à portaria.
Ainda, há dias, por lá passei para ver os melhoramentos postos em prática e notei a casa habitada pela célebre 29, rival da Vaca Brava e da Doutora dos Óculos.
Para prevenir gracejos do rapazio munia-se a megera de comprida vara de marmeleiro, a qual conservava os meninos em distância respeitosa. Estes, livres do alcance da 29, dirigiam-lhe chufas e pilhérias, o que lhes valia grossas descomposturas, acompanhadas de gestos indecentes.
Não foi ainda demolido o sobradinho de janelas de peitoril onde residia a Joaninha, Dulcineia de certo professor do Colégio. Em um belo dia teve aquele, em plena aula, ligeira síncope. Acodem os discípulos e o simpático Viegas, inspetor de alunos.
Um destes, aliás muito bom estudante, no meio do sarilho, ou por ingenuidade ou por malícia, lembra-se de correr a uma das janelas e gritar para que a Joaninha viesse socorrer o……… que estava morrendo.
A moça teve o bom senso de não atravessar a rua. O professor restabeleceu-se e soube do fato. Jurou reprovar o rapaz. Este agarrou-se ao Paula Brito e à própria Joaninha, e por muito favor passou simplesmente!
Na esquina da Rua do Fogo (Andradas), apresentando três faces, uma para esta rua, outra para a das Violas (também dos Três Cegos), e a terceira para a Rua Estreita, existe ainda grande sobrado, hoje histórico. Pertenceu outrora aos Marinhos, senhores do Engenho de Tapacurá.
Foi comprado mais tarde pelo oficial de marinha José Domingues Moncorvo, bisavô do Dr. Arthur Moncorvo. Conquanto Português de nascimento, José Domingues aderiu sinceramente à causa do Brasil. Por vezes cedeu seus soldos para as urgências do Estado e contribuiu com avultosas somas para a construção de um navio de guerra.
Em 24 de Junho de 1821, na casa referida, reuniram-se os patriotas com o fim de inaugurar a Loja Maçônica Comércio e Artes. Ali concertaram-se planos em favor da Independência, à qual, como é sabido, a Maçonaria prestou importantes e inolvidáveis serviços.
Em 1831 foi a Rua Estreita teatro de um acontecimento, que trouxe em resultado a reforma do antigo Seminário de São Joaquim. Os colegiais, que não primavam por muita disciplina, deram estrondosa vaia e desacataram certo indivíduo. Este dirige-se ao Governo pedindo providências.
Era ministro da Justiça o padre Diogo Antônio Feijó, que imediatamente enviou em 1º de Dezembro ao bispo Coutinho o seguinte aviso: – “Exmo. e Revmo. Sr. – A Regência em nome do Imperador manda remeter a V. Ex. o requerimento incluso de Anacleto Fragoso Rhodes, queixando-se de ter sido insultado pelos Seminaristas de São Joaquim; afim de V. Ex. dar as providências necessárias, não só para serem punidos os motores daquele insulto, como para que se não repitam atos semelhantes. E se os estatutos da casa não providenciam a tal respeito, então V. Ex. participe por esta Secretaria de Estado para se mandar proceder judicialmente contra os delinquentes.”
Dias depois apareceu a reforma do Seminário, assinada pelo ministro do Império José Lino Coutinho, tirando a casa da jurisdição do diocesano e entregando-a à Câmara Municipal.
O sobrado, sito outrora nos fundos da igreja, lembra certo fato ocorrido entre o reitor Sousa Corrêa e venerando sacerdote, professor de Filosofia.
Corrêa, aliás distinto oficial de marinha, era em demasia atrabiliário e grosseiro até à brutalidade.
Em mau dia o lente procurou o reitor a fim de combinar certas alterações no programa de ensino. Corrêa estava no banho, e o criado convidou o sacerdote a esperar.
Depois de longa demora apareceu o reitor, mãos nos bolsos, e sobrecenho carregado:
– Que quer, seu padre?
– Venho lembrar a V. S. que não posso nem devo entrar em grandes particularidades sobre as doutrinas de Epicuro, porque…
– Ora, foi para isto que aqui veio? Arranje-se com os rapazes, que eu nada tenho com histórias de bicudos e botocudos!!!
Mas preciso é dizer alguma coisa sobre as antiguidades da rua, que doravante passou a ser alargada. Foi ela aberta de um lado em parte da mui conhecida Ilha Seca, zona de terrenos enxutos e que existia no meio de pântanos e lagoas.
De outra parte foi constituída por terras tiradas da grande e antiga chácara da Conceição dos Coqueiros, de que foi dono Antônio Coelho Lobo, e em 1737, seu cunhado Antônio Vidal de Castilhos. Tempos depois era senhor dessa extensa superfície Julião José de Oliveira.
Muito modernamente, da chácara dos Coqueiros tinha o domínio útil o comendador João Alves Affonso.
A Prefeitura, segundo últimas notícias, dadas pelos jornais, adquiriu por 60 contos essa propriedade, que ainda hoje abrange grande extensão.
Da Rua da Conceição para a igreja, a Rua Estreita, salvo erro, foi formada à custa de terras de Manuel de Campos Dias.
É o que resulta da carta de aforamento, passada pela Câmara em 4 de Outubro de 1786, “de três braças de chãos de testada na Rua de São Pedro, da Vala para o Campo com sete braças de fundo para a Ilha Seca, fazendo canto com a rua, que vai da Capelinha da Conceição do Cônego para a pedreira, passada ao alferes Ignácio da Costa Machado, de que paga de foro, em cada um ano, novecentos e sessenta réis”.
Esses terrenos haviam pertencido ao padre Dionísio Corrêa de Freitas. O alferes, em sua petição, alega que tais terras, depois da morte do padre, se achavam desde muitos anos devolutas, ocupadas somente por um monturo, que no tempo de águas só serve de encharcar as ruas.
Na medição feita pela Câmara diz-se: “e se achou ter na frente na Rua de São Pedro três braças, fazendo canto na rua que atravessa da Capelinha da Conceição do Cônego para a Pedreira e de fundos sete braças a dividir com fundos que foram de Manuel Campos Dias, hoje pertencentes ao Seminário de São Joaquim”.
Falta-nos espaço para mais. E o que vai referido basta para dar aos leitores lembranças da antiga Rua Estreita.
Não têm elas, sou o primeiro a reconhecer, grande importância. São apenas pequeno contingente de minha admiração por mais este melhoramento, que muito vai concorrer para dar ao nosso Rio de Janeiro feição moderna, de beleza, conforto e de higiene.
Não desanime o prefeito e, em caso de dúvida, agarre-se a Santa Rita, que ali fica à mão.
Dizem as velhas ser a heroína de Cássia a santa dos impossíveis.
30 de Janeiro de 1905.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Imagem destacada
- GUIA e plano da cidade do Rio de Janeiro. [S.l.: s.n.], 1858. 1 planta ; 30,2 x 40,7 em f. 35,5 x 47cm. Acervo digital da Biblioteca Nacional.
Mapa - Rua Estreita de São Joaquim, Avenida Marechal Floriano