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Canal do Mangue, por Moreira de Azevedo

PIANTA della cittá di S. Sebastiano di Rio de Janeiro. Nápoles [Itália]: Real Litografia Militare, 1844. Acervo digital da Biblioteca Nacional.
PIANTA della cittá di S. Sebastiano di Rio de Janeiro. Nápoles [Itália]: Real Litografia Militare, 1844. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Aberto em frente à fábrica do gás, que aí despejava seus resíduos, julgamos que podemos incluir neste capítulo a descrição desta obra.

Tratando-se no tempo de D. João VI de dissecar o vasto pântano que se estendia próximo à cidade nova, o qual era um extenso foco de infecção, de mosquitos e de exalações desagradáveis, houve a ideia de abrir-se um canal navegável desde a Praça Onze de Junho até a Ilha de João Damasceno [1]; porém nada se fez, apenas aterrou-se a estrada e construiu-se sobre o mangue uma ponte para facilitar a passagem do rei e sua comitiva da Quinta de São Cristóvão para o paço da cidade. Fez-se o caminho para o rei e para os fidalgos; quanto ao povo que continuasse a cheirar o lodo do mangue, a adoecer e a morrer.

O decreto de 16 de junho de 1835 autorizou a municipalidade a demarcar no pântano ou mangue da cidade nova o lugar para um canal, e as ruas cuja abertura conviesse à salubridade pública, podendo aforar o restante do terreno a quem quisesse dissecá-lo, e nele edificar e receber o foro que fosse justo estipular com atenção à natureza do mesmo terreno.

Gasômetro no Aterrado, de P. G. Bertichem
Gasômetro no Aterrado, de P. G. Bertichem

Em 24 de agosto de 1838 propôs Aureliano de Souza Oliveira Coutinho, depois Visconde de Sepetiba, que os possuidores de terrenos no mangue de um e outro lado da Rua do Aterrado que comunicava a cidade nova com o bairro de Mataporcos, hoje Estácio de Sá, fossem obrigados a aterrá-los no prazo de dois anos, e se o não fizessem perderiam a posse deles; que a municipalidade aforasse os terrenos devolutos com a condição de aterrá-los quem os quisesse tomar, e desse princípio a um canal paralelo à Rua do Aterrado, comunicando o mar até à Praça Onze de Junho, tendo este canal um braço que se estenderia até ao edifício da Correção; arborizadas as margens, bordadas de casas da mesma perspectiva e havendo pontes rodantes para darem passagem a barcos desde a Ilha de João Damasceno até à Praça Onze de Junho.

Em abril de 1853 fundamentou o Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo uma proposta sobre a obra desse canal, e cooperou para que a câmara municipal dirigisse nesse ano e no seguinte representações ao governo lembrando a utilidade de semelhante obra.

Em 26 de novembro de 1855 participou o ministro do império à municipalidade que o Barão de Mauá se havia encarregado de construir por administração 50 braças do canal do mangue; de feito em 21 de janeiro de 1857 em presença do ministro, do empreiteiro e de outras pessoas gradas lançou-se a primeira pedra do canal.

O decreto de 6 de março de 1858 aprovou o contrato celebrado com o Barão de Mauá para a construção dessa obra com a qual a lei de 14 de setembro de 1859 autorizou o governo a despender a quantia de 310:000$000.

Dando-se maior extensão ao canal votaram-se novas verbas para as despesas da construção.

Estende-se este canal desde a Praça Onze de Junho até a Ponte do Aterrado em uma extensão de 600 braças ou pouco mais, formando próximo à praça uma bacia, junto a qual contratou a câmara com o engenheiro Ginty a edificação de um mercado; mas não realizou-se essa obra, e nesse lugar levantou a municipalidade a Escola Municipal de São Sebastião.

Quatro elegantes pontes construídas sob a direção do engenheiro Ginty, que dirigiu toda a obra, cortam o canal, dando duas passagem a peões e duas também a cavaleiros e carros.

Canal do Mangue
Canal do Mangue

Em 7 de setembro de 1860, no dia em que inaugurou-se um dos grandes gasômetros da fabrica do gás, foram franqueadas ao trânsito público duas dessas pontes com a seguinte cerimônia:

Acompanhado do engenheiro Ginty e de todos os operários do canal em número de quatrocentos, divididos em turmas, percorreu o Barão de Mauá as duas pontes que iam ser entregues ao povo; regressando entrou o préstito na fábrica do gás na seguinte ordem:

Dois guardas da fábrica de uniforme verde, quatro trinchantes vestidos de branco com facas e garfos, um carro puxado por vinte e quatro pretos com roupa branca contendo dois bois inteiros assados, quatro carneiros também assados e trinta arrobas de batatas cozidas, quatro trinchantes com facas e garfos, dois guardas da fábrica, o presidente, o gerente e o engenheiro com suas mulheres, e o engenheiro ajudante, os empregados superiores da companhia do gás e da obra do canal, os inspetores, contramestres, superintendentes, apontadores e outros empregados da companhia do gás e do canal, os aparelhadores do gás e seus ajudantes, os ferreiros, caldeireiros, pedreiros, carpinteiros, pintores, funileiros e os trabalhadores de todas as classes incluindo os calceteiros, carroceiros, foguistas e outros da companhia do gás, noventa e seis acendedores fardados, setenta e seis canteiros, cincoenta pedreiros, carpinteiros, maquinistas, ferreiros e noventa e quatro trabalhadores do canal e oitenta escravos da companhia do gás.

Em frente do gasômetro o préstito parou e, circundando-o, abriu a Baronesa de Mauá as válvulas que deviam deixar escapar o gás para o grande depósito, o que foi saudado com muitos vivas.

Entrando de novo em marcha seguiu o préstito para as trinta e duas mesas colocadas em frente do edifício da fábrica sob uma coberta de arcos de folhas ornados de bandeiras; admitia cada mesa vinte e quatro pessoas, e junto de cada uma havia uma torneira que quando aberta deixava correr excelente cerveja de Bass ou Tenent. O prato travessa era um carro com chapas de ferro de vinte palmos de comprimento e oito de largura sobre rodas de dezoito polegadas de diâmetro.

Prepararam-se os assados nos fornos da fábrica; havia em todas as mesas profusão de frutas, abundância de pão, muito queijo e manteiga.

Cartão Postal Avenida do Mangue
Cartão Postal Avenida do Mangue

Tomando assento a imensa comitiva começaram os trinchantes a cumprir com destreza sua missão, reinando muito entusiasmo entre os convivas que mostraram muito apetite e muita sede. Levantou o Barão de Mauá dois brindes, um ao engenheiro, gerente e mais empregados e operários da companhia do gás; o outro ao engenheiro, empregados e operários da empresa do canal, aos quais respondeu um dos operários propondo um brinde ao barão, o qual foi entusiasticamente aplaudido; seguiram-se outros terminando com grande regozijo esta festa industrial, a que assistiram mais de oitocentas pessoas.

Gastaram-se com o canal 1,378:000$000, havendo-se executado essa obra não só para secar os terrenos circunvizinhos como também para dar navegação a pequenas embarcações que levassem gêneros à Praça Onze de Junho; mas no fim de alguns anos os resíduos do gás, o lodo, o cisco obstruíram essa obra, reduziram o canal a um viveiro de mosquitos, a depósito de imundícies e foco de exalações pestilenciais [2]. Reclamava a imprensa contra essa vala de lama que atravessava a cidade, infeccionava o ar e parecia obra derruída pelo tempo e abandonada pelos homens; até que lembrou-se o governo de assinar um contrato em 12 de fevereiro de 1816 para limpeza e restauração de semelhante obra que absorvera avultada soma. Obrigou-se o contratante a desobstruir e limpar o canal, colocar uma comporta junto à Ponte do Aterrado, reparar os muros laterais e pontes, a colocar um gradil de ferro, destinado a fechar as margens, assentado sobre baldrame de alvenaria, e com dez portões também de ferro, e a arborizar o terreno das margens, sendo todas estas obras ajustadas por 200:000$000.

Mas enquanto se não continuar até ao mar esse canal pouco proveitosa será a despesa que se fizer com sua limpeza. Prolongado até o mar aproveitar-se-ão os terrenos adjacentes e alagadiços, focos de emanações miasmáticas; crescerá a cidade adquirindo um novo bairro; a entrada franca das marés facilitará a renovação constante das águas, tornar-se-á mais fácil o esgoto das águas da cidade, e pequenos batéis poderão percorrer todo o canal, dando animação e beleza a esse bairro que se transformará em ponto de reunião e recreio.

A digna comissão nomeada para propor os melhoramentos da cidade considerou a obra do prolongamento desse canal como uma das de maior utilidade e urgência.

Notas

  1. Chamou-se em tempos remotos Ilha dos Melões.
  2. Em 13 de outubro de 1862 caiu no canal um preto e afogou-se, na ocasião em que o atravessava sobre uma tábua que ali estava desde muito tempo. Em 17 de agosto de 1864 suicidou-se afogando-se no canal Manoel José Ribeiro. Sobre uma das pontes caiu um raio em 10 de fevereiro de 1863, que quebrou todos os vidros dos lampiões e acendeu um dos bicos do gás por meio da faísca elétrica.

Fonte

  • Azevedo, Manuel Duarte Moreira de. O Rio de Janeiro: Sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. 2 v. (É a segunda edição do “Pequeno Panorama” 1861-67, 5 v.).

Livro digitalizado

Imagem destacada

  • PIANTA della cittá di S. Sebastiano di Rio de Janeiro. Nápoles [Itália]: Real Litografia Militare, 1844. 1 planta, col., 42,1 x 64,5. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Veja também

Mapa - Canal do Mangue