O Chafariz de Mestre Valentim, por Augusto Maurício

No meado do século XVIII, no fecundo governo de Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, que se estendeu de 1733 a 1763, poucas torneiras havia na cidade. A mais próxima do Palácio dos Governadores (onde hoje funciona funcionava o Departamento dos Correios e Telégrafos, atual Paço Imperial) era localizada na praia então conhecida por Brás de Pina (agora, Cais dos Mineiros). Uma simples construção de pedra e cal, sem ornamento ou decoração de qualquer espécie, e que se denominava Chafariz da Junta do Comércio.
A população da cidade crescia, e a pouco e pouco mais urgente se fazia a necessidade de aumentar o número de fontes de água para o povo. Isso constituía uma das mais sérias preocupações do Senado da Câmara. O chafariz da Junta do Comércio, além de abastecer os moradores da sua vizinhança, tinha de prover de água os navios e outras embarcações que aportavam ao Rio de Janeiro. Para minorar tal situação de angústia, resolveu o Governador Gomes Freire pedir à Corte portuguesa permissão para construir um novo chafariz no centro da cidade.
Requerida a licença a D. João V, instruído o pedido com a planta respectiva, foi tudo enviado a Lisboa, para estudo e aprovação real.
A decisão favorável não se fez esperar muito: o próprio monarca, inteirado do assunto, deu-lhe pronto despacho a 2 de maio de 1747, fazendo no projeto ligeiras alterações, que redundavam todas em benefício do próprio empreendimento.
Assim, prontificava-se a enviar a cantaria devidamente lavrada, o mármore preciso, para que a obra fosse suntuosa, e até o desenho foi transformado para maior realce.
Além disso, recomendava D. João V se enviassem ao Reino informes sobre os canos que seriam necessários para a condução da água do chafariz do Largo da Carioca até a Praça do Carmo (hoje, Praça 15 de Novembro) – local em que seria levantado o novo chafariz, em homenagem ao Conde de Bobadela. E na sua resposta sugeria ainda o rei uma revisão no chafariz da Junta do Comércio, alterando-lhe a forma, se imprescindível, para melhor comodidade pública.
Recebido o material, bem como as recomendações reais, iniciou-se o trabalho da construção da fonte, bem no centro da praça, no lugar onde hoje se acha a bela estátua do General Manuel Luís Osório.
Consumiu largo tempo a obra da fonte: só depois de 1750, já no reinado de D. José, foi dada como concluída e inaugurada.
Correram os dias. Trinta anos rolaram. Apresentou-se a necessidade, de ser removido o chafariz, pois a sua localização dificultava seriamente as manobras militares na praça, que era a principal da cidade.
A esse tempo era vice-rei do Brasil D. Luís de Vasconcelos e Sousa, que incumbiu o mestre Valentim da Fonseca e Silva do trabalho de remoção do velho chafariz para a beira do mar. Ficaria ali melhor situado, atendendo da mesma forma útil à população das cercanias.
Começada a tarefa, verificou mestre Valentim que era mau o material então empregado, porque se deteriorava, e a sua obra não ficaria perfeita nem duradoura. Resolveu-se, pois, demolir o edifício e levantar um novo, baseado no risco apresentado em 1780 pelo brigadeiro sueco Jacques Funk. Acrescentou Mestre Valentim ao desenho, apenas, o emblema heráldico, em mármore branco, de D. Luís de Vasconcelos, e duas placas, igualmente em mármore branco, com inscrição latina, lembrando ter sido durante o reinado de D. Maria I e a governança de D. Luís de Vasconcelos que se operara a transformação do largo e do chafariz. A placa relativa à Rainha de Portugal tem os seguintes dizeres:
MARIA PRIMA PORTUGALIAE REGINA PIA OPTIMA AUGUSTA E. NAVIBUS IN TERRAM FACTO EXCENSU RECIPROCANTIS AESTUS INFRACTO IMPETU INGENTI MOLE CONSTRUCTIS PUBLICE SEDILIBUS FORO FONTE IMMUTATIS ET IN ANGUSTIOREM ET COMMODIOREM FORMAM REDACTIS RAGALIBUS MAXIMIS IMPENSIS ALOYSIO VASCONCELLO SOISAE BRASILIAE IV VICES REGIS GERENTI CUJUS AUSPICIUS HAEC SUNT PERFECTA HOC MONIMENTUM POSS TOT TANTISQUE EJUS BENEFICUS GRATUS POPULUS. SEBASTIANOPOLIS VI – KAL APRIL ANNO M.DCC.LXXX.IX
A D. Luís de Vasconcelos refere-se o oval afixado num dos oitões da fonte, nos seguintes termos:
IGNIFERO CURRU POPULOS DUM PHOEBUS ADURIT. VASCONCELLUS AQUIS EJICIT URBE SITIM. PHOEBE RETRO PROPERA ET COELI STANTIONE RELICTA. PLAECLARO POTIUS NITERE ADESSE VIRO
No ano de 1789 deu-se por concluído o trabalho, magnífico para o seu tempo, e citado por diversos escritores do Brasil e de Portugal como expressão da mais pura arte e de profunda imaginação. Imprimindo-se à obra aspecto inteiramente novo, sob novo modelo, aproveitaram-se, contudo, a cantaria e os mármores da primitiva construção.
A Praça do Carmo foi também modificada, na ocasião, pelo Mestre Valentim, que lhe imprimiu feitio semelhante ao Terreiro do Paço, de Lisboa. Ficou o chafariz junto ao cais de pedra que também construiu, colocando ao longo de sua amurada várias torneiras de bronze para abastecimento de água às embarcações que ali acostavam.

Muita gente que cruza o movimentado e ruidoso logradouro público não sabe, talvez, o que aquele monumento, que tanto fala do passado, representa na história da cidade, e muito menos os relevantes serviços que prestou em época distante. É uma autêntica relíquia da São Sebastião do Rio de Janeiro de outrora, quando a capital do Brasil não era mais do que uma incipiente e mal traçada cidade colonial de pequenas dimensões, com vielas tortuosas e iluminadas a azeite de peixe. As construções estendiam-se, acanhadas, pela orla marítima, descendo pela encosta do morro do Castelo, e o perímetro propriamente urbano não atingia larga profundidade, uma vez que o seu limite não ia além da Rua da Vala (atualmente, Rua Uruguaiana). Naquele tempo não havia rede de encanamento distribuidora de água, e as casas, tanto as residenciais como os estabelecimentos de comércio, eram abastecidos pelas torneiras públicas, existentes em número exíguo, e a água colhida nessas bicas transportada em grandes vasilhas, que escravos conduziam à cabeça.
Como vai longe esse tempo! Hoje a nossa cidade é uma das mais belas do mundo. O progresso entrou, estabeleceu-se nela, modificando os costumes primitivos, proporcionando-lhe conforto, dando-lhe nova vida, ampliando-lhe a beleza, acompanhando, passo a passo, a civilização.
E, à medida que passa o tempo, os velhos monumentos do Rio nos lembram com o maior carinho dias que já vão longe, e de que são testemunhas mudas, mas vivas sempre, esplendorosas na sua modéstia ou no seu luxo, para aqueles que amam com orgulho a história de sua terra. E o chafariz de Mestre Valentim é uma das maiores e mais legitimas preciosidades que o Rio de Janeiro possui.
Uma glória do passado, uma evocação terna, uma página tirada de um livro e guardada com o maior cuidado no coração do povo carioca.
Fonte
- Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. Meu Velho Rio. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, Secretaria Geral de Educação e Cultura, 1966. 218 p. (Coleção Cidade do Rio de Janeiro, 10).
Veja também
Mapa - Chafariz de Mestre Valentim