Uma Casa Histórica, por Vieira Fazenda

Em uma das catacumbas da Igreja de São Francisco de Paula foi, em 2 de Maio de 1821, sepultado o conselheiro Paulo Fernandes Viana. Natural do Rio de Janeiro, formado em direito pela Universidade de Coimbra, magistrado naquela cidade, desembargador do Paço, Comendador de Cristo e da Conceição de Villa Viçosa, falecera vítima de uma congestão cerebral, aos sessenta e três anos, onze meses e um dia de idade. Fora casado com Dona Luíza Roza Carneiro da Costa, filha do antigo negociante Braz Carneiro Leão e de Dona Anna Francisca Roza Maciel da Costa, mais tarde Baronesa de São Salvador de Campos.
Como é bem sabido, foi Paulo Fernandes sogro de Luiz Alves de Lima, posteriormente Duque de Caxias, que se casara com Dona Anna Luíza Carneiro Viana, falecida em 23 de Agosto de 1874.
A morte quase repentina desse ilustre brasileiro, que exerceu, no governo de Dom João VI, o alto cargo de Intendente Geral da Polícia do Rio de Janeiro, foi devida, segundo é fama, a haver ele sofrido grande desfeita por parte do Príncipe Dom Pedro, depois primeiro Imperador do Brasil.
Havia no Campo de Sant’Ana (hoje Praça da República) uma quadra, compreendida entre as ruas do Hospício[1] e do Conde[2] até entestar ao lado oposto, que o Ministro Thomaz Antônio de Villa Nova Portugal reservara, mandando-a cercar e ajardinar, e onde sobressaíam, entre as árvores preciosas que ali vicejavam, algumas amoreiras destinadas para ensaio da criação do bicho de seda. Este jardim estava a cargo da Intendência Geral da Polícia; e Paulo Fernandes, não só por força de seu cargo, mas por estar o jardim nas vizinhanças de sua residência, caprichava em tê-lo em muito cuidado e boa ordem.
Não gostava Dom Pedro de Paulo Fernandes e por isso, em 26 de Abril, acabando de despedir-se de Dom João VI, que regressava a Lisboa deixando-lhe o governo do Brasil, desembarcou no Arsenal de Marinha e ali ordenou o acompanhassem vários carpinteiros. Chegados ao Campo, mandou o Príncipe fossem derrubadas as árvores e destruído o gradil que circulava o jardim. Esta brutalidade afrontosa feriu de tal modo o velho servidor, que lhe veio, com a congestão, o fim de seus dias.
Não cabe nos ligeiros limites destas notas comemorar os importantes serviços prestados por Paulo Fernandes no cargo de Intendente Geral da Polícia desde 5 de Abril de 1808 até 26 de Fevereiro de 1821, em que foi exonerado em virtude dos acontecimentos políticos do dia. Amparado pela ilimitada confiança do Príncipe Dom João, em doze anos fez Fernandes Viana verdadeiros milagres em prol da higiene e dos melhoramentos materiais desta cidade e de suas vizinhanças, com grande economia para os cofres públicos. Consignou tudo isso, para que à sua memória fosse grata a posteridade, em um escrito de seu próprio punho – Abreviada Demonstração dos Trabalhos da Polícia – Em Todo o Tempo Que a Serviu O Desembargador do Paço Paulo Fernandes Viana. Esse documento está impresso na “Revista do Instituto Histórico”, tomo 55.
Acusam-no de despótico e violento: o que ele praticou, porém, no exercício de seu cargo era fruto da organização política do tempo. Esqueçam os pósteros esses atos, para se lembrarem dos benefícios que fez, dos melhoramentos postos em práticas, dos quais ainda hoje gozamos.

A casa, ora demolida e representada nas gravuras, foi por muitos anos a residência de Paulo Fernandes. Era, naqueles tempos, uma casa nobre. Situada na esquina dos antigos Campo de Sant’Anna e Rua do Conde, apresentava seis janelas para a atual Praça da República e sete para a Rua hoje Frei Caneca. Do lado do Campo estendia-se vasto terraço, aonde, dizem, ao cair da tarde vinha Paulo Fernandes, cercado de seus filhos e amigos, tomar café e apreciar as belezas do jardim, que era o seu Ai Jesus.
Segundo Noronha Santos, o referido prédio pertenceu ao capitão João Fernandes Viana e fora comprado em 30 de Outubro de 1812 pela quantia de doze contos de réis. Veio a acabar, ao fim de um século, numa casa de cômodos e café de 3ª ordem.
Nele funcionou por alguns anos a Ilustríssima Câmara Municipal. Arruinado o antigo Paço da Municipalidade, tratou-se de levantar em 1873 novo edifício (o atual Palácio da Prefeitura), o qual foi inaugurado em 2 de Dezembro de 1882. Durante o tempo das obras a Câmara esteve alojada na antiga casa de Paulo Fernandes, ficando estabelecidas várias repartições nas pequenas casas térreas, que a segunda gravura apresenta, do lado da atual Rua Frei Caneca.
Foi esta rua aberta pelo Vice-Rei Conde da Cunha através de terrenos da grande chácara pertencente a Pedro Dias Paes Leme e depois a seus herdeiros, sendo intuito do sucessor do Conde de Bobadella abrir mais uma via pública que facilitasse o trânsito da cidade para o sertão, até encontrar o Caminho de Matacavalos[3] nas proximidades da antiga Lagoa de Capuerussú e depois da Sentinela, que se alongava por onde hoje se cruzam as ruas do Areal[4] , General Caldwell e Frei Caneca, até a do Riachuelo.
O Senado da Câmara, para perpetuar o governo do Vice-Rei, deu em 1766 o nome deste à nova rua, que o povo designava também – Caminho Novo, Caminho do Quebra-Canelas. A atual Rua Frei Caneca desde então ficou sendo conhecida pelas denominações de Caminho Novo do Conde, Rua Nova do Conde da Cunha, Rua Nova do Conde.
Por proposta do Dr. Baptista dos Santos (Visconde de Ibituruna) em sessão da Câmara de 20 de fevereiro de 1866, passou a rua acima a ser denominada do Conde d’Eu[5]. O nome atual Frei Caneca foi-lhe dado em sessão de 21 de Fevereiro de 1890 pelo Conselho de Intendência em memória do grande patriota da Confederação do Equador Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.
A fotografia de agora apanhou ainda parte de uma sacada, no canto oposto ao velho prédio histórico; é a de uma casa nova, sita à esquina de Frei Caneca e Travessa do Senado. Esta travessa tem também suas tradições, se bem que não sejam tão veneráveis: quase sem construções em dias idos, alcunhava-a o povo – Travessa da Luxúria ou da Pouca-Vergonha, pelos escândalos que habitualmente davam nesse desvão escuso do Campo os peraltas de um tempo em que as ruas tinham pouca polícia e menos iluminação ainda. Mal comparando, uma espécie do Leme moderno.
Em seguida à casa de Paulo Fernandes, e na continuação da antiga Rua do Conde (lado par), nota o observador um sobrado com cinco janelas de peitoril. É também um prédio histórico.
Em tempos modernos foi habitado pelo eminente médico Torres Homem, de grata e saudosa memória. Em época anterior ali funcionou o Grande Oriente do Brasil até sua dissolução por ordem de Dom Pedro I.
Instaladas em 24 de Junho de 1821, na casa do oficial de marinha José Domingues Moncorvo, à Rua do Fogo, as três lojas maçônicas – Comércio e Artes, União e Tranquilidade e Esperança de Niterói, conheceu-se em breve ser pequeno o local para as reuniões dos associados, constituídos pela melhor gente da época, ou antes por todos os patriotas, seculares e eclesiásticos, que trabalhavam pela Independência do Brasil. Aboletou-se então a maçonaria no prédio da Rua do Conde.
Nessa casa foi iniciado maçom o Príncipe Dom Pedro, na sessão de 2 de Agosto de 1822, recebendo o pseudônimo de Guatimozim, e no dia 5 elevado ao grau de mestre por proposta do 1º Vigilante Joaquim Gonçalves Ledo, sendo depois colocado no alto cargo de Grão Mestre.
Realizada a nossa emancipação nacional, vieram em breve as intrigas políticas, os ciúmes, a inveja, e as ambições dividir os patriarcas da Independência, criando dois partidos que se hostilizaram cruelmente. Em Outubro de 1822 cessaram os trabalhos maçônicos na casa da Rua do Conde, porque o então Imperador Dom Pedro dissolveu o Grande Oriente.
Em que pese a tantas recordações históricas desaparecidas, o alargamento da Rua Frei Caneca é mais um dos grandes e bons serviços prestados pelo atual Prefeito, cuja individualidade oferece muitos pontos de contato com a do Intendente Geral da Polícia Paulo Fernandes.
E para que se não perca a lembrança do antigo Rio de Janeiro muito bem fez a redação do Kosmos reproduzindo o trecho demolido. Pena foi não ter confiado a pena melhor os comentários que o assunto sugere.
Notas
- ↑ A antiga Rua do Hospício é a atual Rua Buenos Aires. Fonte: Restier Gonçalves em “Extratos de Manuscritos Sobre Aforamentos 1925, 1926-1929 – Índice Atualizado dos Logradouros”
- ↑ A antiga Rua do Conde é a atual Rua Visconde do Rio Branco. Fonte: Restier Gonçalves em “Extratos de Manuscritos Sobre Aforamentos 1925, 1926-1929 – Índice Atualizado dos Logradouros”
- ↑ O antigo Caminho de Mata-Cavallos é a atual Rua do Riachuelo. Fonte: Restier Gonçalves em “Extratos de Manuscritos Sobre Aforamentos 1925, 1926-1929 – Índice Atualizado dos Logradouros”
- ↑ A antiga Rua do Areal é a atual Rua Moncorvo Filho. Fonte: Restier Gonçalves em “Extratos de Manuscritos Sobre Aforamentos 1925, 1926-1929 – Índice Atualizado dos Logradouros”
- ↑ A antiga Rua do Conde d’Eu é a atual Rua Frei Caneca. Fonte: Restier Gonçalves em “Extratos de Manuscritos Sobre Aforamentos 1925, 1926-1929 – Índice Atualizado dos Logradouros”
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Revista Kósmos, Ano 2, Número 4, Abril de 1905.
Mapa - Casa de Paulo Fernandes Viana no Campo de Santana