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Quinta-feira Santa, por Dom Marcos Barbosa

Capela do Santíssimo Sacramento durante Corpus Christi no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro
Capela do Santíssimo Sacramento durante Corpus Christi no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

Aproxima-se caro ouvinte, a Quinta-feira Santa. Com ela se inicia o Tríduo Sacro, que é o ponto mais alto do ano litúrgico, pois comemoramos então a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. E é bom notarmos logo de início que só impropriamente falamos de Quinta-feira, pois se a Quinta-feira entrasse como tal no Tríduo Sacro, já teríamos quatro e não três dias. Acontece que para os judeus (e em geral os orientais) o tempo era marcado pela lua e não pelo sol, assim, o entardecer da Quinta-feira era já como o princípio da Sexta-feira, e foi justamente nesta hora, antes de se dirigir para o Jardim das Oliveiras, que Jesus realizou com os apóstolos a última ceia, – a última ceia pascal que celebraria aqui na terra, e que se tornou a primeira missa. Assim podemos dizer que a instituição da Eucaristia e o Sacrifício da Cruz, que ela prefigurava, se realizaram no mesmo dia, no mesmo espaço de 24 horas. Pois Jesus morre às três da tarde (a hora nona dos judeus) e é sepultado às pressas, pois o pôr-do-sol da Sexta-feira já seria o começo do Sábado, o dia do repouso, na qual nada se podia fazer e no qual Jesus repousara no túmulo para ressuscitar no primeiro dia da semana, que passou a ser conhecido como o seu dia. O Domingo, o Dia do Senhor, que é o Dominus.

É portanto na passagem da Quinta para a Sexta-feira que Jesus se apresenta como o Sacerdote que institui a entrega aos seus sacramentos. O que vemos claramente em relação à Eucaristia ou, como se diria depois, o Santo Sacrifício da Missa, – expressão também muito bela porque relembra o nexo entre a Eucaristia (Ação de Graças) e a Cruz, – como a expressão missa sugere a missão da qual somos investidos pela Eucaristia, – de levarmos o Cristo ao mundo.

Notemos que Jesus instituiu a Eucaristia durante uma ceia que já era, em si, um ato religioso do Antigo Testamento; a comemoração anual da Páscoa, da libertação do cativeiro do Egito e da Passagem (Páscoa) para a Terra Prometida. Não se tratou de uma ceia de improviso, celebrada de qualquer modo: o Evangelho nos conta como Jesus manda os apóstolos com antecedência em busca de um lugar onde encontrarão uma sala preparada, a sala que mais tarde conheceríamos pelo nome de Cenáculo, a sala da Ceia, da última ceia. Por isso vemos como andam errados os que pretendem celebrar a missa em qualquer lugar e de qualquer modo, como se fosse uma refeição qualquer, quando ela foi instituída no quadro religioso da ceia pascal dos judeus, que a prefigurava e preparava. E vemos que o apóstolo Paulo mais tarde, vendo os abusos que ocorriam ao celebrar-se a missa no decorrer de uma refeição comum onde havia excessos e desigualdades, prescreveu aos fiéis de Corinto celebrarem a Eucaristia e o banquete eucarístico em separado.

Assim na Quinta-feira Santa, ou melhor no início da Sexta-feira Santa, nasce a missa, A EUCARISTIA, antes mesmo que Jesus houvesse oferecido na cruz o sacrifício, por ela representado, sob os símbolos do pão e do vinho que se transformam misteriosamente em Corpo e Sangue de Cristo. Após ter comemorado a Páscoa antiga, cujo cordeiro sem mancha tão bem o simbolizava, a ele, que veio tirar o pecado do mundo, Jesus nos dá a si próprio, morto e vivo, sob os véus do sacramento. Mas para que esse prodígio pudesse perpetuar-se entre nós e renovar-se em cada missa, Jesus instituiu, logo em seguida à Eucaristia, um outro sacramento, a que chamamos o Sacramento da Ordem, quando deu aos apóstolos a ordem de repetirem o mesmo que ele fizera, “Fazei isto em memória de mim”, tornando-os assim, sacerdotes, – não novos sacerdotes – pois ele é o único – mas capazes de agirem em seu nome, com o mesmo poder e eficácia. Eis, pois os sacramentos da Eucaristia e da Ordem nascendo juntos, como dois irmãos gêmeos, na última ceia.

Mas, na última ceia não deixamos de encontrar também uma alusão aos sacramentos do Batismo e da Penitência ou Reconciliação. Pois Jesus antes de instituir a Eucaristia realiza, como até hoje o celebrante em nossas Missas da Quinta-feira Santa, a bela cerimônia do lava-pés. Era costume no oriente que um servo lavasse os pés dos que chegavam para um banquete, talvez recobertos ainda com a poeira das estradas. Como ali não havia um servo para isto, os discípulos puseram-se logo à mesa… Jesus, Mestre e Senhor toma a bacia e o jarro. Pedro protesta: “Jamais me lavarás os pés!” Jesus replica: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo!” Como não vermos nisto, caro ouvinte, um símbolo dos sacramentos de purificação, que são o Batismo e a Penitência ou Reconciliação?

E não haverá também, nesta bela celebração da Quinta-feira Santa, ou melhor, do início da Sexta-feira Santa, uma sugestão do matrimônio? Sem dúvida, se lembrarmos que Jesus deu então aos seus apóstolos o mandamento do Amor e estabeleceu com o seu novo povo, a Igreja que então nascia, uma nova e eterna aliança. E São Paulo dirá que o matrimônio é um grande sacramento por sua relação com Cristo e a Igreja, – pois o marido se torna o símbolo do Cristo e a mulher da Igreja, recebendo ambos a força de se amarem como o Cristo e a Igreja se amam.

E nem falta a esse conjunto uma relação com os enfermos, pois o Cristo consentirá, dentro em pouco, no horto, em aceitar os mais dolorosos sofrimentos, sentirá o medo da morte, e dirá: “Se possível, Pai, afasta de mim esse cálice – mas faça-se a tua vontade e não a minha”.

Com o tempo novas cerimônias se juntaram à celebração da instituição da Eucaristia, cerimônias, estas sim realizadas, antes do Tríduo Sacro, pois têm lugar na manhã da Quinta-feira Santa. Cerimônias que nos mostram melhor o nascimento comum dos vários sacramentos, – e que são a benção dos santos óleos e, mais frequentemente, a da renovação das promessas sacerdotais, introduzidas por Paulo VI. Esta liturgia porém só se realiza nas catedrais, pois só o bispo é que consagra normalmente os santos óleos para a sua diocese, como só ele recebe a renovação das promessas dos sacerdotes que trabalham com ele nas várias matrizes e capelas. Assim, antes da missa solene de cada Igreja, realizada ao anoitecer (e na qual todos os sacerdotes celebram, pois não pode haver mais de uma missa nesse dia em cada Igreja, para mostrar a união de todos), – realiza-se nas catedrais, pela manhã, a chamada missa crismal.

Nesta missa, pela manhã, o Bispo, se possível com a participação de todos os sacerdotes que lhe estão subordinados, consagra os santos óleos, a saber: o dos catecúmenos, o dos enfermos e, de grande importância da Crisma, que será usado na Confirmação dos que foram batizados, dando-Ihes a força do Espírito Santo. Estes óleos são levados em seguida para as várias paróquias, marcando assim a presença do Bispo, quando se realiza as unções do batismo, a dos enfermos e dos que se tornam, com a confirmação, cristãos adultos, soldados de Cristo, membros ativos do Corpo Místico.

Quanto à renovação das promessas sacerdotais, instituídas por Paulo VI, não significa que aqueles que não as façam já não estejam obrigados a cumprir os seus compromissos, pois já o prometeram para sempre ao serem ordenados, – mas não apenas um ato de afervoramento – como acontece também com os cristãos que renovam na vigília da Páscoa as promessas do Batismo ou os religiosos que, embora tendo feito profissão perpétua ou solene, gostam também de renovar os votos de cada ano, em geral após um retiro.

Vemos, pois, caro ouvinte, quão rica é a liturgia que celebramos ao entardecer da Quinta-feira Santa, já antecipada por essa missa do bispo na parte da manhã. Assim o Cristo nos aparece, no início do Tríduo Sacro, na sua glória de sacerdote, antes de nos aparecer, na Sexta-feira Santa na sua humildade de vítima e sacrifício, como cordeiro imolado, como um verme e não um homem, na linguagem pungente dos profetas.

Fonte

  • Barbosa, Dom Marcos. Reflexões sobre a Quaresma. Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi, 2011. 52 p.

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