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Quaresma, por Dom Marcos Barbosa

Procissão do Encontro do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores em 2011 (Tiradentes / MG)
Procissão do Encontro do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores em 2011 (Tiradentes / MG)

Com a chamada Quarta-feira de cinzas começa para nós, caro ouvinte, o tempo da Quaresma. Tempo não de tristeza, mas de alegria, pois é uma estrada que nos conduz à Páscoa. Quando a gente caminha para um ideal ao encontro de um amigo, esquece as durezas da viagem, e a Quaresma é caminharmos para o encontro com o Cristo ressuscitado.

Como venho explicando todos os anos (mas, há sempre ouvintes novos), quaresma vem do número 40 de grande valor simbólico. Pois 40 dias passou Noé, na Arca da Salvação, 40 dias caminhou o profeta Elias até à visão do Senhor, como 40 dias passara Moisés no Sinai e 40 anos vagou o povo de Deus pelo deserto, sendo preparado então para entrar na terra prometida. E, finalmente, já no Novo Testamento, vemos Jesus antes de iniciar a sua pregação, jejuar e rezar 40 dias e 40 noites. Compreende-se, portanto, que a Igreja tenha se fixado neste prazo de 40 dias a fim de nos preparar para a Páscoa.

Mas a importância da Quaresma era mais visível quando ela foi organizada nos primeiros séculos da Igreja. O cristianismo começa a propagar-se e crescia o número daqueles que acreditavam no Cristo e desejavam receber o Batismo. Nada mais natural que se tenha pensado numa espécie de curso de catecismo comum, para iniciar todos esses candidatos nos ensinamentos do Evangelho, a fim de abraçarem o cristianismo com pleno conhecimento do que faziam e das responsabilidades que assumiam. Tornou-se pois costume só se dar o Batismo aos adultos na Páscoa, festa da morte e ressurreição do Senhor, uma vez que pelo batismo morremos para o pecado e renascemos, para sua vida nova. Assim os candidatos ao batismo eram apresentados a uma comunidade ou Igreja local por alguém que já lhe dera os inícios da fé (e que era como um pai ou padrinho), e devia então por 40 dias comparecer às assembleias litúrgicas, onde ouviam as leituras da Bíblia e as pregações que os iniciavam na doutrina do Cristo; deviam contudo retirar-se no momento em que começava a celebração da Eucaristia, uma vez que, não sendo ainda batizados e cristãos, não podiam participar do banquete da família de Deus. Os que assim se preparavam para o Batismo eram chamados “catecúmenos”.

Além dos que não podiam participar da eucaristia, por não serem ainda batizados, havia outros, que também não podiam comungar pelo fato de, embora batizados, terem renegado a fé ou violado gravemente a lei de Deus, eram os chamados “pecadores públicos”. Mas, se um deles se arrependia e desejava reintegrar-se na comunidade, procurava o bispo no início da Quaresma, e este lhe cobria a cabeça de cinzas e lhe dava grosseiras vestes de saco, que deveria usar até a Quinta-feira Santa, quando era de novo, se perseverava na penitência, readmitido à comunhão do corpo do Senhor, e a entrar também em pleno convívio com os antigos irmãos, que o consideravam até então como excomungados, fora da comunhão, da vida comum com eles.

Assim a Quaresma era sobretudo o tempo de iniciação dos que desejavam abraçar a fé e dos que tendo-se afastado da mesma desejam regressar à Igreja. Com o tempo, quase todo o Ocidente se tornou cristão, e assim todos eram batizados logo que nasciam, a pedido dos pais. Desse modo e, a não ser nos países de missão, acabou-se o batismo coletivo de adultos na noite de Páscoa e o respectivo curso durante a Quaresma. Por outro lado, os pecadores que se arrependiam passaram a ser reintegrados na comunidade tão logo se arrependessem e solicitassem o perdão abandonando a situação errada em que se encontrassem.

No entanto, a Igreja manteve a Quaresma, não mais como um tempo destinado aos catecúmenos ou penitentes mas aos fiéis em geral, – pois nunca somos bastante fiéis, e precisamos sempre passar por uma renovação e um renascimento, um retiro. Assim na Quaresma, somos chamados a levar mais a sério a nossa vida religiosa, procurando praticar um pouco mais o jejum, a esmola e a oração.

O jejum não consiste em realizarmos alguma coisa semelhante aos jejuadores profissionais, sobretudo para bater um recorde e causar admiração, mas significa nos privarmos de alimentos ou outros prazeres para garantir um certo domínio sobre o nosso corpo, lembrando-nos sempre de que “não só de pão vive o homem”. Não se trata, pois de uma atitude negativista, mas de uma atitude de autodomínio indispensável para a realização de qualquer programa sério e compensador do que (é) a vida cristã. Este jejum tem sido mitigado com o tempo, considerando-se as várias dificuldades da vida de hoje, e apenas restam Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa como dias de jejum, mas isto deve ser completado por outras atitudes, como aceitar com espírito de fé as mortificações diárias que a própria vida nos impõe, e tão mais difíceis de suportar por não serem escolhidas por nós mesmos…

Além do jejum, a esmola é outra prática tradicional dos cristãos. Não lhe adianta dominar-se inteiramente, se não amar o seu próximo, amor que se manifesta, de modo mais sensível, na esmola generosa e inteligente, e que nem deve parecer esmola. Há os que não podem jejuar, porque já comem pouco ou são doentes; há os que não podem dar esmolas, porque também são pobres ou não dispõem de tempo para ajudar os outros, embora um bom sorriso não custe dinheiro e tempo e seja às vezes utilíssimo ao nosso colega ou a qualquer pessoa que nos fale. Mas, se nem todos podem jejuar ou dar esmolas, todos podem dispor da terceira arma da Quaresma: a oração. Oração que não significa apenas rezar, mas rezar depois de ouvir, respondendo ao que Deus nos fala. Assim, a Quaresma é tempo de ler e meditar a Sagrada Escritura e de abraçarmos os planos de Deus a respeito do mundo que ele quer salvar e a nosso respeito, pois nos quer salvar; mas também nos quer colaboradores da salvação, nossa e dos outros.

Para esta aproximação maior da palavra de Deus, temos um grande auxílio nas leituras bíblicas, propostas na missa de cada domingo que nos dão uma visão mais completa do mistério da salvação.

A cerimônia da imposição das cinzas, outrora reservada aos pecadores públicos, passou a ser destinada a todos os fiéis, que reconhecem, ao recebê-las a própria fraqueza e a necessidade de uma renovação durante a Quaresma, para renovarem na Vigília da Páscoa, as promessas do batismo. As Cinzas nos lembram que fomos tirados do pó e ao pó voltaremos… Mas, a Páscoa, que temos em mira, nos proclama que se o Cristo ressuscitou foi para que ressuscitemos também.

Vamos, pois, caro ouvinte, preparando-nos ao longo da Quaresma, para a Páscoa.

Boa Quaresma e, portanto, boa Páscoa! Pois uma depende da outra.

Fonte

  • Barbosa, Dom Marcos. Reflexões sobre a Quaresma. Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi, 2011. 52 p.

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