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A Travessia da Quaresma, por Dom Marcos Barbosa

Procissão do Encontro do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores em 2011 (Tiradentes / MG)
Procissão do Encontro do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores em 2011 (Tiradentes / MG)

Todos os anos, para celebrar a quaresma, nós nos reunimos como Igreja, pois formamos um povo: o povo de Deus. Como outrora os judeus no deserto, estamos também em marcha para a terra prometida, atrás de Jesus que nos guia.

A Igreja é um povo fiel, é a comunidade de todos que creem em Jesus Cristo, que ouviram a Boa Nova e nasceram para a vida divina, pelo renascimento do batismo.

Hoje, como ontem, a Igreja proclama a Boa Nova de Cristo. Homens e mulheres ouvem o eco da sua Palavra. Eles se dirigem à Igreja para que ela lhes comunique o dom da fé. A Igreja lhes faz encontrar o Deus vivo, e esses homens e essas mulheres passam a fazer parte do povo santo que Deus conquistou para si, a fim de, por sua vez, darem testemunho de Jesus Cristo.

Santificada pela morte e ressurreição do Senhor, a Igreja é santa. Ela é, entre os homens, o sinal da presença de Deus. Sua santidade é verdadeira porque procede de Deus. Mas a Igreja é também imperfeita e sucede que, através do seu testemunho, os homens (têm) também às vezes dificuldade em reconhecer o chamado de Deus.

A Igreja tem consciência dessa imperfeição e de sua fraqueza. Ela sabe que é composta de pecadores, e que estes tem necessidade de fazer contínuos esforços para serem fiéis filhos de Deus. Ela sabe que nem todos os cristãos são fiéis ao seu batismo, que nem todos estão “vivos”, que alguns estão adormecidos e outros esclerosados ou semimortos.

A Igreja não se resigna com esta situação. Chamada a comunicar a todos a santidade de Deus, recusa a instalar-se na mediocridade. Chamada a fazer ouvir até às extremidades da terra a Boa Nova do Evangelho, ela tem consciência de que sua tarefa está longe de ter terminado. Por isso, sem cessar, ela se põe de novo a caminho. Não é outro o sentido da Quaresma. Esta é, cada ano, para a Igreja inteira, o tempo privilegiado da conversão e da retomada do caminho.

Como os hebreus outrora, estamos para atravessar o deserto. Que deserto? Cada um deve dar a sua resposta e marcar o ponto de partida. Existem porém os oásis, pois a cada domingo encontraremos Jesus, sua palavra, suas ações, e seremos então iluminados, estimulados e fortificados.

Já no primeiro domingo, no qual se lê o Evangelho da tentação de Jesus (Mateus, capítulo 4), as dificuldades nos são reveladas. Não é a abundância que traz aos homens sua verdadeira plenitude: cuidemos de não nos atolar na riqueza e no poder! Também não é no fascínio de fenômenos extraordinários, à margem da vida, que encontraremos Deus; cuidado para não tomarmos as miragens como realidade. Não são o poder, a dominação, o prestígio que abrem os verdadeiros caminhos para o futuro: evitemos tratar os homens como um rebanho. Jesus teria podido exibir sua benemerência alimentando as multidões, saciá-las com milagres espetaculares, tornar-se o guia dos povos e das nações. Quando o tentam, para que seja o Messias todo poderoso que muitos esperavam, ele exclama: “Para trás, Satanás!”.

No segundo domingo da Quaresma trata-se de uma transfiguração, de uma metamorfose. Que bom se a humanidade pudesse mudar, ser transformada! A cena narrada por São Mateus (capítulo 17), se passa numa montanha, no limite entre o céu e a terra. Aquele que subitamente resplandece é Jesus. Uma voz do céu murmura: “Este é o meu Filho muito amado…” Estas palavras eram as primeiras de um poema que descrevia o enviado de Deus, o Salvador, como um servo sofredor, que dá sua vida por todos. Seria este o verdadeiro caminho para a transfiguração? Seria preciso dar sua vida para recebê-la, nova e resplandecente, de Deus? A metamorfose dos povos e das nações não será uma superação dos egoísmos, dos sonhos de poder, em busca da generosidade, da justiça e da doação? Quando desce da montanha, Jesus toma o áspero caminho de Jerusalém, rumo ao testemunho sangrento e à última oferenda. Ele abre o caminho.

No terceiro domingo da Quaresma (João capítulo 4), estamos à margem do poço de Jacó e vemos aproximar-se a Samaritana. O povo daquela região era desprezado pelos judeus, como bastardos e ímpios, desde que haviam acolhido os assírios há oito séculos! Esses samaritanos tinham mesmo construído um templo, rival do de Jerusalém. Quanto a esta mulher, ela já estava no sexto marido. Também podia encontrar-se num daqueles períodos em que a lei religiosa judaica considerava impuro qualquer contato com uma mulher ou com um objeto tocado por ela. Eram três motivos para Jesus permanecer à distância. E eis que ele lhe fala com delicadeza comovedora, desperta em sua alma uma sede interior. Os habitantes da cidade vão chegar a qualquer momento. Nenhum passado, nenhuma reputação, nenhum tabu detém Jesus; a boa nova vivificante, ele a traz para todos. Ninguém está excluído. Ele convida todos e cada um a matarem sua sede naquele itinerário pelo deserto.

No quarto domingo da Quaresma (João, capítulo 9), um cego abre os olhos. E disso decorre todo o conflito com as autoridades. Um verdadeiro drama que faz crescer o ódio em torno de Jesus, deixando entrever o desfecho fatal.

A ordem estava perturbada: Jesus, em dia de sábado, fizera um pouco de lama com a sua saliva para colocar nos olhos do cego, quando toda atividade era proibida. E, ao interrogarem-no para saber quem havia pecado, se o cego ou seus pais, para que assim tivesse nascido, Jesus respondera: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas foi para que a ação de Deus se manifestasse nele”. Toda esta narração nos diz que nós também somos cegos e que a luz de Deus vem dar-nos a visão, o olhar de Jesus.

Desarmados, sem impedimentos, transfigurados no interior de nós mesmos, poderemos caminhar a passos rápidos para as últimas etapas da Quaresma.

A Quaresma é sobretudo uma caminhada interior, na companhia de nossos irmãos, à luz da palavra de Deus, e não em primeiro lugar um problema de comer peixe em vez de carne. Os peixeiros, há alguns anos acusaram a Igreja de ter prejudicado a sua renda, suprimindo a abstinência de carne todas as sextas-feiras do ano, como era costume na Europa. No Brasil só havia abstinência de carne nas sextas-feiras da Quaresma, mais recentemente reduzida à quarta-feira de cinzas e à sexta-feira Santa.

Por que jejuar?

Homens e mulheres em todas religiões costumam jejuar. Qual a razão? Há várias respostas e os motivos quase sempre se somam.

Jejua-se para se preparar para um acontecimento importante, para se colocar em expectativa, em disponibilidade e em desejo.

Jejua-se para se aperfeiçoar o domínio de si próprio, permitindo ao espírito garantir melhor o seu papel de cocheiro dos cavalos rebeldes que são instintos, verificando e consolidando o bom funcionamento da alma do corpo.

Jejua-se para descobrir em seu próprio corpo a fome dos pobres e dar-lhes o equivalente daquilo que recusamos a nós próprios; para cultivar em nós uma generosidade eficaz e a preocupação constante com aqueles que têm necessidade de nossa ajuda.

Jejua-se para afirmar que “o homem não vive só de pão” e que o amor a Deus e aos irmãos é o seu alimento mais substancial. Por isso a Igreja no início da Quaresma, faz suas as palavras de São Paulo aos cristãos de Corinto: “Eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da salvação”. (2 Coríntios 6, 2).

Durante as semanas da Quaresma a Igreja nos convida a “reatualizar” nosso batismo. Ele consagrou nossa conversão a Deus, fazendo-nos participar da morte e ressurreição do Senhor. Ele fez de nós homens novos, completamente salvos e resgatados. Mas somos todos fracos, somos levados a nos “desconverter”, a nos afastar de Deus, a esquecer seu amor, e precisamos lutar para permanecer fiéis a esse amor e às promessas do batismo. A Igreja nos recorda isso especialmente durante a Quaresma. Ela nos convida a prosseguirmos juntos a nossa luta, a morrer para o pecado, a fim de viver para Deus.

Enquanto as crianças, filhas de pais cristãos, eram logo batizadas, a Igreja, nos primeiros séculos, só batizava os adultos que iam se convertendo na vigília da Páscoa, para que pudessem então participar da eucaristia com seus novos irmãos na fé. Ainda hoje seria oportuno deixar para essa noite o batismo de alguma criança, não havendo o de adultos. Porém, mesmo não se realizando batismo algum, o celebrante deve benzer a água que aspergirá os fiéis que serão convidados a renovar as promessas do seu batismo.

Eis a oração para a bênção da água: “Meus irmãos: invoquemos o Senhor nosso Deus, para que se digne abençoar esta água, que vai ser aspergida sobre nós, recordando o nosso batismo. Que ele se digne renovar-nos, para que permaneçamos fiéis ao Espírito que recebemos!

“Embora, fostes vós que criastes a água para fecundar a terra, para lavar nossos corpos e refazer nossas forças. Também a fizestes instrumento da vossa misericórdia: por ela libertastes o vosso povo do cativeiro e aplacastes no deserto a sua sede; por ela os profetas anunciaram a nova aliança que era vosso desejo concluir com os homens; com ela finalmente, consagrada pelo Cristo no Jordão, renovastes, pelo banho do novo nascimento a nossa natureza pecadora.

“Que esta água seja para nós uma recordação do nosso batismo e nos faça participar da alegria de todos os que tenham sido batizados nesta Páscoa.”

Faz-se em seguida a renovação das promessas do Batismo.

Fonte

  • Barbosa, Dom Marcos. Reflexões sobre a Quaresma. Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi, 2011. 52 p.

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