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Ouro Preto e Mariana, por John Mawe

Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo em Ouro Preto
Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo em Ouro Preto
Origem e situação atual de Vila Rica – Notícia sobre a Casa da Moeda – Visita à cidade de Mariana – Excursão às Fazendas de Barro e de Castro, pertencentes a Sua Excelência o Conde de Linhares.

A história de uma localidade que, com vinte anos apenas de fundada era considerada o lugar mais rico do mundo, despertava-me grande interesse. Daí as perguntas que fiz a seu respeito aos habitantes mais cultos. Parece que esta montanha, outrora tão rica, foi descoberta pelos paulistas, que, dentre todos os desbravadores do Brasil, foram os que mais conservaram o espírito empreendedor e o zelo ardente e infatigável que caracterizavam os portugueses de outrora. Os paulistas, partindo da sua capital, penetraram nestas regiões, arrostando todos os perigos, e afrontando todos os obstáculos que se lhes deparavam, em território selvagem, habitado por homens ainda mais selvagens. Abriram caminho através de matas impenetráveis, carregando suas provisões, cultivando, de quando em quando, pequenos espaços de terra, que lhes fornecessem alimentos em caso de necessidade e também lhes servissem para entreter comunicações com São Paulo. Cada polegada de terreno lhes foi disputada pelos índios, aqui denominados botocudos, que os atacavam com furor ou lhes armavam ciladas. Estes selvagens conseguiram muitas vezes se apoderar de alguns paulistas ou de seus negros e os sacrificaram logo ao seu horrível apetite de carne humana; consideravam os negros grandes macacos das matas. Não raro, os paulistas encontravam as ossadas dessas infelizes vítimas, expostas como troféus e, para vingá-las, matavam a tiros os seus algozes, onde quer que os encontrassem. Estes exemplos de vingança produziram os resultados desejados; os índios, aterrados com o ruído e o efeito terrível das armas de fogo, fugiam com precipitação, imaginando que os brancos dominavam o relâmpago e o raio.

Não parece que os paulistas, na aventura da descoberta desta região, tenham sido, de alguma forma, ajudados pelos indígenas; seguiam o curso dos rios e encontravam, de quando em quando, ouro, que exploravam superficialmente, e finalmente chegaram à montanha, nosso atual objetivo. Sua riqueza lhes deteve a marcha; ergueram habitações temporárias e começaram as operações. Os chefes do bando que se fixou neste lugar eram Antônio Dias, Bartolomeu Rocinho, Antônio de Ferreira Filho e Garcia Rodrigues. Tomaram verossimilmente o caminho mais curto para chegar até aqui, pois a estrada por eles aberta é a mesma de que ainda hoje todos se servem. A notícia de seu bom êxito espalhou-se em São Paulo e não tardaram a chegar aventureiros em grande número, trazendo consigo todos os negros que puderam comprar. Outros aventureiros foram de São Paulo ao Rio de Janeiro para obter maior número de negros, porque sua cidade estava esgotada, e assim a nova da montanha de ouro que acabava de ser descoberta espalhou-se na capital do Brasil e gente de todas as condições acorreu em massa para essa terra prometida, passando por São Paulo, único caminho então conhecido. Os primeiros exploradores poderiam ter impedido a revelação de sua feliz aventura, se tivessem sido capazes de moderar sua alegria e de agir de acordo; mas sendo o ouro tão abundante, cada indivíduo se apropriou de um lote de terreno, tornando-se capitalista. Cada um porfiou em tirar o melhor partido de seu terreno no menor espaço de tempo possível, e daí resultou uma procura de negros e de ferro, cada vez mais premente; e a pressa geral de obter uns e outro divulgou o segredo que todos estavam interessados em ocultar. Os paulistas, independentes e orgulhosos de sua riqueza, queriam ditar leis aos recém-chegados, mas estes, dispostos a se oporem a esta medida, formaram um partido sob a chefia de Manuel Nunes Viana, aventureiro bastante considerado, que sustentou vigorosamente suas reclamações por direitos e regalias iguais. Originou-se uma disputa, que degenerou por fim em hostilidades, nas quais os paulistas foram levados de vencida, tendo a maior parte se refugiado em um dos seus postos, onde esperou reforços. Viana e seus companheiros se puseram, sem perda de tempo, à caça dos inimigos, que encontraram em uma planície, perto de São João del Rey. A margem de um rio, os dois bandos travaram sangrenta batalha, terminando com a derrota dos paulistas, que depois obtiveram as melhores condições possíveis. Os mortos foram enterrados à margem do rio, que, por esse motivo, tomou o nome de Rio das Mortes. [1]

Os paulistas, dispostos à vingança, mas enfraquecidos pela derrota, denunciaram Viana e seus companheiros ao rei Pedro, como rebeldes que tentavam se apossar do distrito para seu proveito e estabelecer governo independente. Os ministros do rei, informados do estado das coisas e das riquezas imensas do país, para aí mandaram logo um chefe com tropas, com o fim de aproveitar a vantagem resultante da discórdia existente entre os dois partidos, circunstância bastante feliz, numa região em que muitos lugares, verdadeiras fortalezas naturais, podiam ser defendidos com muito pouca gente. Chamava-se Albuquerque esse chefe, homem ousado, perseverante e sob todos os aspectos indicado para a expedição que lhe confiaram. Seu aparecimento ocasionou a princípio muita confusão e descontentamento entre os dois bandos. Não encontrou resistência declarada, mas o mantiveram em contínuos alarmas. Os paulistas viram então que as riquezas que puderam conservar, conjuntamente com as de seus rivais, iam cair nas mãos de terceiro partido, que poderia dominá-los. Os distúrbios continuaram ainda por algum tempo, mas o governo, enviando incessantemente novos reforços, conseguiu afinal restabelecer a tranquilidade, e em 1711 começaram a construir uma cidade regular. Levantaram um palácio, uma Casa da Moeda e um Arsenal; publicaram um código de minas. Foi dada ordem para que entregassem aos oficiais, comissionados para esse fim, todo o ouro em pó encontrado. Um quinto era reservado para o rei; os outros quatro quintos purificados e reduzidos a barras, à custa do governo; em seguida, estampados, marcados de acordo com o valor eram entregues aos proprietários com um certificado que lhes permitia entrar em circulação. Para facilitar o comércio, autorizaram a circulação do ouro em pó, nos pequenos pagamentos. Apesar dessas ordens estritas, quantidade considerável de ouro chegava clandestinamente ao Rio, à Bahia e aos outros portos, sem pagar o quinto real. Conhecedor desse comércio ilícito, o governo estabeleceu Registros a fim de, em vários lugares, inspecionar os viajantes, com postos de soldados para patrulhar as estradas. Apoderou-se, dessa maneira, de quantidade imensa de ouro, que era confiscado. As pessoas com as quais o metal era encontrado, foram condenadas à perda de seus bens e à deportação para a África por toda a vida. A maior desgraça atingia o nome do defraudador, e o rigor das leis contra essa classe de culpados era tal, que todo indivíduo, ao deixar o distrito, via-se obrigado a munir-se de atestado indicando o lugar para onde se dirigia e o que levava consigo. Esse regulamento está sempre em vigor e é rigorosamente observado.

Vila Rica não tardou em estabelecer grande comércio com o Rio de Janeiro, de onde recebia negros, ferro, tecidos de lã, sal, mantimentos de diferentes espécies, e vinho, artigos que davam então imenso lucro.

Em 1713, época em que Dom Braz Balthazar da Silveira foi nomeado governador, a quantidade de ouro produzida era tão considerável que o quinto real se elevava anualmente a meio milhão de esterlinas [2]. A montanha foi perfurada como um favo de mel, porque os mineiros exploravam todas as partes moles que encontravam e avançavam tanto quanto podiam. Levavam em seguida o cascalhão a lugar próprio para a lavagem. Em tempo de chuva, as torrentes, precipitando-se ao longo dos flancos da montanha, arrastavam muita matéria terrosa, contendo pequenas partículas de ouro, que ficavam perto da base. Quando as águas se retiravam, este rico depósito dava trabalho à classe pobre, que o conduzia para lavagem.

Antônio Dias, um dos chefes dos paulistas, a quem já me referi, ficou extremamente rico, construiu uma bela igreja e, pouco depois, ao morrer, legou à mesma fundos consideráveis. Ela tem ainda o seu nome. Iniciaram logo cinco ou seis outras, rapidamente concluídas, porque a madeira e a pedra abundavam; e todos os habitantes estavam decididos a contribuir com uma porção de seus bens e a empregar negros no, acabamento desses trabalhos piedosos. Promulgaram então uma lei, que faz honra à sabedoria do governo português, interditando aos monges a estrada no território das minas. Muitos tesouros esta medida salvou para o Estado, e também conservou em ocupações úteis uma multidão de homens que se teriam transformado em fardos onerosos para a sociedade.

A cidade sofreu então vários melhoramentos; as ruas foram traçadas com mais regularidade; aplainou-se o declive da montanha em vários lugares, a fim de dar mais espaço próprio à construção de casas e ao estabelecimento de jardins. Construíram-se reservatórios, que distribuíam água por meio de canos para todos os pontos da cidade, e erigiram-se fontes nos lugares mais convenientes e centrais. A Casa da Moeda e as fundições foram ampliadas, tornando-se mais cômodas para o desenvolvimento das transações. Nessa época, o número de habitantes se elevava a vinte mil ou mais. Os donos de minas eram os primeiros colonos ou seus descendentes, e, como a melhor parte do distrito estava ocupada, aqueles que continuavam a chegar, viam-se obrigados a entrar ao serviço dos proprietários, até aprenderem seu método de trabalho; depois disso, iam procurar novas minas, seguindo os cursos d’água e as ravinas, onde descobriam algumas vezes novas fontes de riqueza. De 1730 a 1750, as minas atingiram ao seu mais alto grau de prosperidade; dizem que nesse período, durante alguns anos, o quinto do rei subiu, pelo menos, a um milhão de esterlinos, por ano [3].

As minas que produziram essas imensas riquezas, gradualmente se tornaram menos abundantes; à medida que o ouro desaparecia, muitos mineiros se retiravam; alguns voltavam à mãe pátria, carregados de riquezas, que tentavam novos aventureiros; muitos foram para o Rio de Janeiro e outras cidades marítimas, onde empregaram seus grandes capitais no comércio.

Vila Rica conserva hoje apenas uma sombra do antigo esplendor. Seus habitantes, com exceção dos lojistas, estão sem trabalho, desprezam a bela região que os cerca, que, devidamente cultivada, os recompensaria amplamente da parte das riquezas que seus antepassados arrancaram do seu âmago. A educação, hábitos, preconceitos hereditários os tornam inaptos para a vida ativa; sempre entregues à perspectiva de enriquecer subitamente, imaginam estar isentos da lei universal da natureza, que obriga o homem a ganhar o pão com o suor do seu rosto. Contemplando a fortuna acumulada por seus predecessores, esquecem que estes só a alcançaram pela atividade e pela perseverança, e perdem inteiramente de vista a mudança de circunstâncias, que tornam essas qualidades, agora, duplamente necessárias. Os herdeiros dos homens que, saídos do nada, atingiram a opulência, seguem raramente seu exemplo, mesmo quando treinados para isso. Como poderia, pois um crioulo, educado na indolência e na ignorância, compreender os benefícios da vida ativa e laboriosa? Os negros constituem sua principal propriedade e ele os dirige tão mal que os lucros do trabalho dele raramente compensam as despesas de sua manutenção; com o decorrer do tempo tornam-se velhos e incapazes de trabalhar; ainda assim o senhor continua a viver na mesma negligência e na ociosidade, ou então, cai num estado de inatividade absoluta, não sabendo o que fazer de manhã à noite Esta degeneração deplorável constitui o traço característico da maior parte dos descendentes dos primeiros colonos; todas as espécies de indústria estão nas mãos ou dos mulatos ou dos negros; estas duas classes de homens parecem exceder em inteligência a seus senhores, porque fazem melhor uso dessa faculdade.

Durante minha estadia aqui, visitei muitas vezes a Casa da Moeda e os oficiais me permitiram, muito gentilmente, assistir a todas as operações que aí se executam. Na fundição, havia oito a dez pequenos fornos, cuja forma se assemelhava muito à das fornalhas dos ferreiros. O combustível empregado é o carvão. Quando se trata de ouro em pó (não importa em que quantidade), seis onças, por exemplo, pesam-no primeiro, retiram um quinto para o Príncipe; o resto é posto em um cadinho, de três polegadas de diâmetro, colocado sem demora no forno. Lançam no cadinho sublimado corrosivo, que aquecido, desprende odor muito forte; se se formam escórias, retiram-nas com pinças e acrescentam mais sublimado, quando necessário. Algumas vezes sobrevém a ebulição; neste caso, cobrem o cadinho com um pedaço de telha. Logo que o mercúrio se evapora, derramam o ouro em uma forma de metal, untada de sebo e mergulham-na em um tonel cheio de água. O mercúrio, em geral, adere à forma, sendo absorvido, e a parte do ouro assim afetada, toma o aspecto de chumbo [4]. Para removê-lo, levam-na com tenazes a fogo muito forte, até que o mercúrio se tenha evaporado; mandam-na em seguida ao experimentador, que começa por friccioná-la sobre a pedra de toque para compará-la com barras de ouro de diferentes quilates, contrastadas e marcadas e depois experimentadas. Quando as duas operações dão o mesmo resultado, o experimentador imprime na barra sinais indicando seu grau de finura, chamado toque, o peso, o número, o nome do lugar e a data do ano; inscrevem-na, então, em um registro apropriado e transcrevem uma cópia do registro em um pedaço de papel, no qual envolvem a barra, que é entregue ao proprietário para pô-la em circulação. A operação de fundir uma quantidade dada de ouro, dura raramente mais de dez minutos ou um quarto de hora; a do carimbo perto ao dobro. Vi particulares entregarem ouro em pó e recebê-lo em menos de uma hora, em barra própria para a circulação; como há seis fornos, não se tem que esperar muito tempo a vez. Atribui-se a cor desmaiada e qualidade inferior das barras de ouro, à prata, à platina e a outros metais que nela estão contidos; vi algumas que não tinham mais de dezesseis quilates e outras que iam a 23 ½ quilates, sendo a diferença para o ouro puro de apenas meio quilate; o título legal é de 22 quilates; o ouro que vai além, recebe um prêmio conforme o grau de finura.

Trouxeram-me muitas piritas arsenicais, que diziam ser cobalto; examinei algumas com o maçarico, mas não pude descobrir nelas o menor vestígio desse metal, porque a substância não deu, em nenhum grau de fusão, a cor azul ao bórax. Há, a três léguas da cidade, grande veio de piritas marciais [5], em quartzo. Apresentaram-me antimônio vindo de muito longe e alguns pedaços de cobre bastante oxidado, que diziam ter sido encontrado nas lavagens dos Caldeirões, do que eu duvidei, com boas razões. Tentaram enganar-me frequentemente a respeito de descobertas de minas de cobre. Um homem trouxe-me um pedaço de jaspe, pesando cerca de uma onça e com ele meia onça de cobre, com a forma e a dimensão de uma bala de carabina, dizendo-me havê-la obtido pela fusão de uma pedra igual à que me mostrava. Custei muito a convencê-lo de que a pessoa que fizera para ele a operação pusera um pedaço de cobre no cadinho; também muito me admirou encontrar, mesmo entre pessoas de certa condição, algumas persuadidas de que a maior parte das pedras vermelhas empregadas no calçamento da cidade era cobre. Alguém, tendo espalhado o boato de que possuía várias ricas amostras deste metal, mandaram-no procurar e o interrogaram; fez crer que as tinha perdido, mudando-se. Não é de surpreender que indivíduos, espicaçados pela avidez e cegos pela ignorância, deem fé a contos desse gênero; que os homens engenhosos que os inventam e propagam fiquem animados pelo êxito a renovar suas imposturas, e, finalmente, que seu exemplo arraste outros. O rico minério de ferro, muito abundante no distrito, e do qual vi várias amostras, poderia proporcionar ocupação bem mais proveitosa do que a lavagem do ouro, ou a procura de especulações quiméricas que entretêm a ociosidade.

Durante os primeiros tempos de minha estada aqui meus soldados me forneceram grande quantidade de caulim; era o mais belo que já vira. O que se emprega na manufatura de Sevres, perto de Paris, lhe é inferior. Encontraram-na ao pé de uma montanha de xisto argiloso, chamada Santo Antônio, perto de Congonhas do Campo, num veio onde aparece acompanhada de quartzo e de ferro especular.

Oito dias depois de minha chegada, fui ver uma olaria, à distância de três milhas. Após atravessar o Ribeirão do Carmo, por uma ponte ao pé de Vila Rica, transpusemos outra montanha escarpada, em cujo cume encontrei minério de ferro em abundância. Não é, em verdade, muito rico, mas estou persuadido de que produziria vinte e cinco por cento de metal. Queixam-se da falta de madeira, como de obstáculo que impede a exploração desta mina de ferro; mas isto poderia ser remediado se a plantassem, pois, o cume da montanha oferece belo planalto para plantio altamente produtivo. Agora, embora muito perto da cidade, permanece totalmente abandonado, sem um único cercado. Chegamos logo à olaria, instalada pouco além. Aí empregam o barro em estado nativo, sem nenhuma mistura e lavam-no para retirar as partículas impuras. Depois que a água se esgotou e se evaporou bastante, para deixar à massa consistência suficiente, põem-na sobre a roda e dela fazem pratos, potes, jarras pesadas e maciças, mas pouco sólidas. Tornam-nas menos frágeis, cobrindo-as com verniz espesso, que é excelente. Os fornos não têm chaminé e consistem apenas em uma abóbada baixa, na qual há vários respiradouros. O forno do verniz é reverberatório, mas tão mal construído que consome muito combustível, sem produzir grande calor. Em todo o distrito encontra-se argila grosseira, boa para a fabricação de tijolos, telhas, etc.

Convidaram-nos nesse lugar a provar vinho feito de uvas, colhidas aí: era excelente. É difícil imaginar-se lugar mais favoravelmente situado para a cultura de todas espécies de frutos. A pereira, a oliveira, a amoreira aí dariam tão bem quanto a vinha, se fossem tratadas convenientemente. Um hábil agricultor, com facilidade, estou certo, torná-lo-ia tão prospero que se poderia aproveitá-lo duplamente na plantação do milho e nos laticínios; obter-se-ia também excelente trigo e boa extensão de terras magníficas transformar-se-iam em prados artificiais. Belo regato banha esse lugar, com uma queda suficiente para fazer girar moinhos.

Os princípios da economia rural não são melhor compreendidos aqui que nos outros lugares por mim visitados. Não há talvez nenhum país no mundo em que as vicissitudes da abundância e da penúria não se tenham feito sentir, e onde a experiência humana não haja demonstrado a necessidade de armazenar na época da abundância, prevendo a da escassez; mas esta prática salutar é aqui inteiramente negligenciada. Deixam o gado pastar em campos abertos e alimentar-se do que possa encontrar [6]; nos meses de verão, quando o pasto está queimado pelo calor, os animais refugiam-se à beira dos córregos, seu único recurso. Grande número morre de fome; e os que sobrevivem ficam de tal modo esgotados e enfraquecidos, que é raro se refazerem completamente.

Pequena montanha na vizinhança dessa olaria apresenta muita matéria ferruginosa e uma substância que me pareceu barita, de forma mamilar, da qual apanhei amostra e depois do meu regresso à Inglaterra, o doutor Wollaston provou pela análise tratar-se de hidrargilita sem ácido fluórico.

Praça Minas Gerais, em Mariana
Praça Minas Gerais, em Mariana

Durante minha estadia em Vila Rica, fui a Mariana, distante oito milhas, por um caminho terrível e quase impraticável, ao longo de uma cadeia de montanhas; daí tomei a grande estrada, que passa entre duas montanhas elevadas, e em certa extensão, marginando o rio, sempre em declive. As margens do Ribeirão do Carmo, que atravessa Mariana, foram exploradas desde Vila Rica; e particulares, vindos desta última cidade tomaram posse, a partir de 1710, dessa localidade, por eles reclamada por causa do ouro, que a corrente de água para lá carregava. Tornou-se bispado em 1715 e a cidade recebeu o nome de Cidade de Mariana, em homenagem à rainha de Portugal, então reinante, e avó [7] do Príncipe Regente. É uma cidade pequena, mas limpa e bem edificada, tendo de seis a sete mil habitantes. Possui um seminário. O bispo é um prelado de conduta exemplar [8], estimado por todos que o conhecem. O comércio local é reduzido; seus habitantes vivem principalmente dos trabalhos das minas e do produto das terras. As minas de muitos proprietários estão afastadas várias léguas e algumas se estendem até à aldeia de Camargo, situada além de grande planície, que começa a oeste da cidade.

Depois de ter demorado cerca de quinze dias em Vila Rica, manifestei o desejo de visitar Barro e Castro, duas propriedades afastadas, a quarenta milhas, e pertencentes ao Conde de Linhares. De 1730 a 1740, essas duas propriedades produziam muito ouro; e pertenciam então ao senhor Matias Barbosa, homem muito considerado, que fundou o estabelecimento, dele expulsando os indígenas antropófagos. Enriquecendo, mandou educar sua filha única em Portugal onde ela permaneceu, e após a morte de seu pai herdou toda a propriedade e desposou, em Lisboa, um membro da família Sousa; dela descendem os dois dignos portadores desse nome, que ora ocupam altos cargos no governo do Príncipe Regente [9]. O administrador do Conde nos forneceu animais, a mim e ao meu companheiro, e o Senhor Lucas, o Juiz, teve a amabilidade de providenciar para tudo quanto necessário à nossa viagem. Atravessamos Mariana e chegamos a Alto da Chapada, aldeia distante três milhas, situada numa eminência, no meio de bela planície. Pouco depois, atingimos lugar muito elevado e limitado entre dois montes perpendiculares, de onde lobrigamos a aldeia de São Sebastião. Custamos muito a descer a pé ao Ribeirão do Carmo, que banha a base dessa montanha, e passamos por uma ponte bastante pitoresca pela altura de seus arcos. Transposta essa ravina, margeamos o rio uma légua, em meio de região magnífica, cheia de colinas e férteis campinas, regada por numerosos ribeiros que, de diversos pontos, desembocam no rio e apresentam todos vestígios de antigas lavagens de ouro. A margem da entrada mostrava vestígios similares e parecia antigamente ter feito parte do rio, que aí é tão largo quanto o Tamisa em Windsor. Atravessamos São Caetano, aldeia afastada e pouco habitada; e três léguas mais adiante, encontramos Lavras Velhas, casa bem mesquinha, onde passamos a noite, tendo percorrido metade do caminho. O proprietário desse lugar encontrava dificuldade, com trinta ou quarenta negros, em viver decentemente, embora a terra fosse própria para a agricultura e necessitasse apenas de um braço laborioso que a tornasse fecunda. Tudo em torno dessa habitação apresentava aspecto lastimável de indiferença e preguiça. Manda-nos a justiça acrescentar que ele nos acolheu muito bem e satisfez plenamente a todas as nossas necessidades.

No dia seguinte, deixamos Lavras Velhas, às oito horas da manhã, passamos por Morro dos Areais; a região apresentava ainda mais belos vales e excelentes matas, mas não se via uma só cabeça de gado. Escalando alta montanha, estivemos envolvidos, perto de uma hora, em nuvens, e fomos molhados por chuva fina, que não penetrou nossas roupas. Foi a única ocasião em que apanhamos chuva na estrada durante o dia. À noite, choveu copiosamente, de quando em quando. Vimos alguns bichos excessivamente compridos estendidos, sem movimento, à margem da estrada; nosso guia nos disse que eram indícios infalíveis de chuva. Da altura em que estávamos avistamos o Rio Gualaxo que, dez léguas adiante, com outro rio, se reúne ao Ribeirão do Carmo. Caminhando nessa direção, através de belo território, chegamos ao Alto de São Miguel, onde o Rio São José é muito largo, mas pouco profundo. Suas águas são muito turvas, por causa da terra proveniente das lavagens de ouro, trazida das margens, desde a nascente até este lugar. Do cume destas eminências, avista-se o rio que forma três sinuosidades; em sua base, estão os vestígios das mais antigas e rendosas lavagens, que forneceram riquezas imensas a Matias Barbosa, seu proprietário e descobridor. O lugar é bem arborizado, mas pouco povoado; exprimi minha surpresa em ver tantas casas miseráveis num distrito que produziu outrora tanta riqueza, e disseram-me que os primeiros mineiros, ávidos em tirar o melhor ouro na maior extensão de terreno possível, demoravam-se comumente pouco tempo no mesmo lugar e se, satisfaziam com ranchos ou palhoças em sua estadia temporária.

Descendo esta montanha, penetramos numa propriedade de Sua Excelência, a Fazenda do Barro, e indicaram-nos a casa situada a distância aproximada de uma légua, em linda eminência perto do rio. Ao chegar, serviram-nos excelente jantar, ao qual fizemos honra, depois de uma viagem de oito horas em montaria.

A casa e o estabelecimento em geral valiam incomparavelmente mais, sob todos os aspectos, do que tudo quanto tínhamos visto no gênero. Depois do jantar fomos passear no jardim, onde os cafeeiros florescentes pareciam, ao longe, cobertos de neve. Avistava-se região encantadora, agradavelmente matizada de colinas e grandes vales, e bem arborizada. Na margem oposta do rio, que corre a trezentos pés da casa, se eleva um belo outeiro, muito apropriado a toda espécie de culturas, ligado a outros, igualmente férteis.

No dia seguinte, ocupei-me sobretudo em visitar o sítio. A destilaria, os moinhos de açúcar e de milho, estavam em péssimo estado; os dois últimos eram movidos por rodas hidráulicas horizontais, de grande força. As edificações da fazenda formam um quadrado: a face sul está ocupada pela casa e as três outras pelos alojamentos dos negros, armazéns, oficinas de carpintaria e de ferreiro, e outras igualmente úteis.

Quis ver o gado: mostraram-me sete belas vacas, cujos bezerros estavam crescidos e, não habituadas a ordenha regular, davam pouco leite. Manifestei ao pessoal da fazenda o desejo de ensinar-lhes a dirigir uma queijeira à moda inglesa. O carpinteiro, ouvindo a descrição que fiz de uma batedeira, assegurou-me que poderia fazer uma e pôs logo mãos à obra, da maneira seguinte: tomou um tronco de árvore com o comprimento e largura necessários, serrou-o em toda a sua extensão, em duas partes iguais (depois de tê-las cavado suficientemente e preparado um fundo) uniu-as com um círculo de ferro, de maneira tão perfeita que conservava a água. O trelho e o tampo ficaram prontos logo; mas surgiu uma dificuldade imprevista; não havia lugar, ao abrigo do pó e da lama, para servir de queijaria, nem vaso apropriado para guardar o leite. Limparam todas as vasilhas de cozinha disponíveis, mas infelizmente eram mal feitas, largas em baixo e estreitas em cima. Foram postas de lado, com a batedeira, para servirem quando fossem ordenhadas as vacas. A dona da casa assistiu aos nossos preparativos e pareceu interessar-se muito por eles.

À tarde, fui ver as lavras de ouro. No caminho para lá avistei um homem adestrando um cavalo; em uma das mãos tinha uma corda e na outra um chicote. Dois pedações de couro, em forma de bragas, estavam cosidos a dois anéis de ferro; um dos pedaços cobria o dorso do animal, o outro lhe descia ao longo das pernas como um calção; a parte sobre o dorso impedia que escorregasse. Aos anéis estavam presas cordas, que partiam das partes dianteiras do cavalo e que se podiam encurtar ou estender à vontade. O cavalo, posto em movimento, só dava para diante passos muito curtos, semelhantes aos dos cavalos de carga nos exercícios equestres. Os cavalos, adestrados dessa maneira, têm o nome de trotadores e são muito procurados pelas pessoas de distinção, de ambos os sexos, por causa de sua andadura elegante e graciosa.

Ao chegar à lavra, vi grande extensão de terreno já explorado e montões de pedras quartzosas. A margem do rio os trabalhadores estavam ocupados em cavar no solo valas com profundidade mínima de dez pés, para chegarem ao cascalho na rocha. A espécie de terra que eles escavavam era argila, tão forte que, batida pelas quedas d’água e revolvida embora pelos negros com enxadas de diferentes espécies, dificilmente se podia tirar. Não era este o único obstáculo; a acumulação contínua de terra fazia com que o cascalho se encontrasse a cinco pés abaixo do leito do rio; assim, quando os poços atingiam essa profundidade, tornava-se necessário retirar a água. Para isso lançavam mão de máquinas hidráulicas, construídas da maneira seguinte: um caixão de seis polegadas quadradas, feito de quatro fortes tábuas, é colocado em posição oblíqua, com a parte inferior no poço, onde um cilindro é atravessado por um eixo, cujas duas extremidades são fixadas nas paredes do poço: uma corrente de ferro com elos especiais, a cada um dos quais está ligado um pedaço de madeira, que corresponde pouco mais ou menos às dimensões internas do caixão, passa por baixo do cilindro e vai no outro lado unir-se, no alto, ao eixo de uma roda d’água, que, posta em movimento, extrai volume d’água igual à cavidade do caixão. Essas máquinas são calculadas para elevar grande quantidade de água, mas se desarranjam às vezes por completo. Em muitos casos, as bombas de mão seriam mais eficientes; dão muito menos trabalho e menor despesa, reparam-se facilmente e podem ser feitas em uma hora. Aqui são inteiramente desconhecidas.

Os trabalhos mais penosos na extração do ouro, são executados pelos negros e os mais fáceis, pelas negras. Os primeiros tiram o cascalho do fundo do poço, as mulheres o carregam em gamelas, para ser lavado. Quando reúnem quantidade suficiente, os negros procedem a essa operação pouco mais ou menos da maneira que descrevi quando tratei de São Paulo. Notei, todavia, que aqui, na primeira parte da operação, não procuravam separar o ouro do óxido negro de ferro, mas esvaziavam suas gamelas em uma vasilha maior, batendo a água que esta continha. As matérias depositadas nesta vasilha eram entregues, em porções de uma libra, aos lavadores mais hábeis, porque a operação da lavagem ou da purificação, como é chamada, exige muita perícia e destreza. Alguns dos grãos de ouro são tão pequenos, que flutuam na superfície, podendo, por conseguinte, ser arrastados nas repetidas mudanças da água que se fazem. Para prevenir esse inconveniente, os negros esmagavam algumas ervas em uma pedra e misturavam um pouco do seu suco à água de suas gamelas. Não afirmarei que este líquido contribuísse realmente para precipitar o ouro, mas é certo que os negros o empregavam com grande confiança.

Há outra maneira de separar o ouro do cascalho, chamada lavagem em caixa, que é extremamente interessante. Para fazer caixas tomam duas tábuas de dez a doze polegadas de largura e de doze a quinze pés de comprimento e estendem-nas num plano inclinado, de uma polegada por pé. Seis polegadas abaixo de sua extremidade inferior, fixam duas outras tábuas da mesma dimensão, que formam segundo plano inclinado. Colocam de lado tábuas fixadas em terra por estacas e formam assim pias cujo fundo revestem de couros curtidos com os pelos virados e, à falta de couros, panos grosseiros; ao lado dessas tinas, fazem correr água contendo óxido de ferro e as partículas de ouro mais leves; essas são detidas em seu curso pelo pelo dos couros. De meia em meia hora, retiram os couros e levam-nos a um reservatório vizinho, formado de quatro paredes, tendo cerca de cinco pés de comprimento, quatro de largura, dois de profundidade, e contendo água pouco mais ou menos à altura de dois pés; estendem as peles em cima deste reservatório e batem-nas; depois mergulham-nas na água e batem-nas novamente até que se desprenda todo o ouro; depois disso as reconduzem de noite à lavagem. Os reservatórios ficam fechados à noite e bem vigiados. O sedimento que deles se retira, sendo leve, é facilmente lavado à mão, da maneira anteriormente descrita, ficando apenas o óxido de ferro, aqui chamado esmeril, e o ouro, que é tão fino a ponto de ser preciso empregar o mercúrio para separá-lo. Eis como vi executar esta operação: puseram em uma bateia bem limpa perto de duas libras de óxido de ferro muito rico em ouro e a ele acrescentaram perto de duas onças de mercúrio. A massa de óxido, que era muito úmida, foi amassada a mão durante vinte minutos; então pareceu que o mercúrio separara o esmeril e se apoderara de todo o ouro, tomando o aspecto de uma massa mole que conservava todas as formas que se lhe davam. Os grãos de ouro não estavam, entretanto, amalgamados com o mercúrio, que somente os envolvia. Colocaram a massa em um lenço, e, torcendo-o, fizeram sair mais de uma onça de mercúrio; o restante foi colocado num pequeno prato de cobre, coberto de algumas folhas verdes e a seguir colocado sobre um fogo de carvão e agitaram a massa com uma vara de ferro para impedir que as partículas de ouro aderissem ao prato. Mudavam as folhas à medida que o calor as queimava. As retiradas apresentavam em alguns lugares pequenos glóbulos de mercúrio e em outros óxido branco; lavando-as com água, obtinha-se cerca de meia onça de mercúrio [10]. Sempre observei que o ouro, depois desta operação, passava de cor amarelada e agradável a um escuro sujo e apresentava aparência muito diferente daquele que não fora submetido ao mercúrio.

Para sugerir a ideia de um melhoramento, desenhei e fiz modelos de vasos de barro, para evaporar e em seguida condensar o mercúrio, mas a quantidade de ouro que resulta desse modo de separação é tão insignificante que não valeria quase a pena mudar o processo usado.

Percorri diferentes partes da propriedade e principalmente as duas margens do rio que, assim como o seu leito, me parecera ter sofrido numerosas lavagens. Os recantos ou os lugares em que a água forma redemoinhos são tidos como os mais ricos em ouro. Por toda a parte em que a margem é chata ou unida, o cascalhão se prolongava abaixo da superfície até a certa distância e parecia formar a continuação do leito do rio, o que é muito provável, pois que se sabe ter sido o rio outrora muito mais largo. Os lugares então explorados e os que o deviam ainda ser, não pareciam prometer grande produção.

Apresentou-se logo oportunidade de pôr em execução a experiência da batedeira que eu me propusera fazer. Tendo obtido seis potes de leite, que devido à escassez dos pastos não era muito gordo, guardei-os nas vasilhas da cozinha reservadas para esse fim, mas tal era o estado do lugar em que os depositaram, que, apesar das folhas de bananeiras postas sobre os potes, a superfície do leite no dia seguinte estava coberta de pó. Tirei o creme da melhor maneira que pude, mas não tendo encontrado dispensa ou lugar fresco para guardá-lo, fui obrigado a deixá-lo no mesmo lugar em que se achava o leite, exposto às incursões dos porcos. Nas duas manhãs seguintes, obtive cerca de dois galões de leite, que, reunidos aos outros, foram postos na batedeira e batidos. Apesar de todas as desvantagens devidas à magra qualidade do leite, à imperfeição dos utensílios e à maneira defeituosa com que foi guardado, conseguiu-se porção razoável de boa manteiga. O pessoal da fazenda parecia muito satisfeito com o bom êxito da operação, mas tenho fortes dúvidas de que a adotassem depois de minha partida, porque são inimigos do trabalho e dos cuidados que ele exige. A força dos preconceitos inveterados é tão poderosa que não receio afirmar que essa gente preferiria ter dez vezes mais trabalho para obter o valor de quarenta xelins em ouro, com o dispêndio de trinta xelins, do que obter por cinco os mesmos quarenta de manteiga.

Se me perguntarem por que entro tantas vezes em pormenores relativos à economia rural, responderei que, antes de partir do Rio de Janeiro, para empreender minha viagem, soube que o queijo comido nesta capital e que aí se considera objeto de luxo, vinha do distrito que ia visitar. Este queijo era tão rançoso e de gosto tão desagradável que se tornava perigoso à saúde, e esta particularidade me fez julgar que o preparavam com grande relaxamento. Todas as fazendas que visitei na viagem para Vila Rica e depois desta cidade até este lugar, confirmaram minha opinião, porque nelas a queijeira era a parte mais descuidada, como já tive ocasião de dizer. Em alguns lugares em que pretendiam preparar o leite para o fabrico do queijo, não só os diversos utensílios se encontravam extremamente sujos, como o coalho estava tão pútrido que chegava ao último grau de deterioração. Tentei fazer sentir a todo o mundo as vantagens de um método mais cuidadoso e, quando pude, lhes indiquei como deviam proceder. Mas como as instruções por escrito ou de viva voz não produzem impressão duradoura, resolvi, quando as circunstâncias me permitissem, reforçá-las com exemplos. A primeira ocasião azada só se apresentou na Fazenda de Barro e fui tanto mais levado a me aproveitar dela, visto me capacitar de que o exemplo, que desejaria dar aos fazendeiros do distrito, teria maior influência, se sancionado pela aprovação do Conde de Linhares. O resultado, como acabo de observar, não foi de ordem a lisonjear muito as minhas esperanças. Experiências isoladas são pouco apropriadas para corrigir mal geral e de tanta duração. Não há, pois, esperança de que este ramo da economia rural sofra reforma, mais do que outros, antes da reunião dos esforços dos ricos e dos grandes para realizar coisa de tão alta importância.

Em nossas excursões observamos sobre a casca de várias árvores grande variedade de liquens vermelhos; molhando-os na água, obtém-se tintura vermelha muito forte, Há aqui cascas excelentes para curtir, entre outras a da canafístula que não envermelhece nem colora o couro. Encontramos várias e belas variedades de jacarandá ou pau rosa.

Depois de passarmos vários dias no Barro, partimos para a Fazenda do Castro, distante sete milhas, onde chegamos, depois de agradável cavalgada através de montanhas e belos distritos arborizados, com extensas zonas de terras virgens banhadas por muitas correntes excelentes. Esta nobre mansão foi erguida pelo primeiro proprietário do distrito, Senhor Matias Barbosa. É muito espaçosa, tendo na fachada uma varanda de quarenta e oito pés de comprimento, sobre a qual se abrem quatorze portas, rasgadas de alto a baixo. Está situada perto da confluência do Ribeirão do Carmo e do Rio Gualaxo, que, na sua junção, formam o São José, rio tão largo quanto o Tamisa em Battersea.

Apenas descansamos uma hora nesta fazenda, porque tínhamos intenção de visitar a aldeia de São José de Barra Longa, situada quatro milhas mais adiante, nos confins do território habitado pelos índios Botocudos. Depois de atravessarmos o rio por uma sólida ponte de madeira, construída há cerca de cinquenta anos, mas ainda bem conservada, prosseguimos ao longo das margens, embelezadas por alguns jardins e apresentando, com maior frequência, sinais de cultura, como há muito tempo não víamos. O clima é muito mais quente que em Vila Rica, por causa da pequena elevação; disseram-nos que aí vingavam todas as espécies de frutas e notadamente o ananás, que atinge grandes dimensões e tem excelente sabor. Não podemos assegurar a exatidão dessas informações, porque não era a estação das frutas.

Depois de viajar quatro milhas, chegamos à vila. Por ser domingo, muitos habitantes dos arredores tinham vindo assistir ao ofício divino. Quando este terminou, todos correram em multidão ao lugar em que havíamos descido. Parecia que todos os habitantes da aldeia, homens, mulheres, crianças, estavam possuídos do mesmo espírito de curiosidade, tão grande era o seu empenho em nos ver. Jantamos em numerosa companhia de cavalheiros e senhoras, em casa do vigário, que nos dispensou as mais lisonjeiras atenções. Um oficial e um juiz do grupo entretiveram palestra conosco. Era difícil decidir entre eles e nós quais os que formulavam mais perguntas: eles, sobre os motivos e o objetivo de nossa viagem, e nós, sobre o estado do lugar, sobre os antropófagos etc.

Soubemos que a aldeia fora fundada vinte e três anos antes, por vários portugueses, tentados pela abundância do ouro conquanto o distrito estivesse exposto às depredações dos Botocudos. Contam-se hoje, em São José, quatrocentos habitantes: os arredores são bem povoados, de sorte que há sempre força suficiente para repelir os gentios; estes não ousam atacar abertamente; usam, com frequência de estratagemas. Quando escolhem uma casa para atacar, seguros do êxito, ateiam-lhe fogo, lançando sobre a cobertura flechas incendiárias, e caem sobre os desgraçados habitantes que tentam escapar. Estes selvagens, habituados a viver nos bosques, e instruídos em todas as astúcias necessárias para se apoderarem dos animais selvagens, que lhes dão subsistência, recorrem a artifícios sem conta para surpreender os colonos. Algumas vezes se tornam invisíveis, ligando em torno do corpo ramos de arbustos, atirando sua flecha sem serem percebidos, de tal arte que, quando um pobre negro passa perto deles, raramente deixam de atacá-lo; outras vezes friccionam-se com cinzas e deitam-se no chão ou então cavam buracos, no fundo dos quais fincam estacas agudas e as cobrem de ramos e de folhas. Têm grande terror das armas de fogo, e quando ouvem o seu ruído, põem-se em fuga; mas esses meios de defesa estão longe de ser comuns como deveriam ser entre os colonos e os poucos que possuem são maus e quase sempre fora de uso. Acontece de quando em quando que os soldados surpreendem os indígenas; então não se trava combate, porque os últimos se põem em fuga, com toda, a força, e os primeiros, vingando os danos que sofreram, raramente dão quartel. Vêm-se obrigados a ligar pelos pés e pelas mãos a comprido bastão os selvagens que capturam e a transportá-los para lugar seguro; se um deles se solta, por momento, foge para os bosques, como um tigre, deixando longe os seus perseguidores. São indomáveis; nada se consegue deles com os bons ou os maus tratamentos, e se não encontram meio de escapar do cativeiro, deixam-se morrer de fome.

Os ultrajes que esses selvagens cometem contra os colonos excitaram a atenção do governo, que baixou lei decisiva contra eles. O Príncipe Regente publicou uma proclamação na qual os convida a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão reconhecidos e como os outros vassalos gozarão da proteção do Estado; mas, se persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do Príncipe terão ordem de lhes fazer guerra de extermínio. Os que forem capturados pelos portugueses serão seus escravos durante dez anos. Há motivo para duvidar que as ofertas de conciliação, contidas nesta proclamação, produzam o efeito desejado, porque os Botocudos têm aversão invencível à vida sedentária e antipatia inveterada contra todas as outras nações; não possuem bastante inteligência para apreciarem os benefícios da civilização, de sorte que parece não haver esperança de dominá-los senão com a terrível alternativa estabelecida na parte final do decreto. Uma das razões para se recorrer a este processo sumário de tratamento, que, provavelmente, pesará sobre todos os argumentos em favor de medidas mais brandas, é que a região por eles habitada possui ouro, e os colonos e aventureiros estão ansiosos para dela se apoderarem o mais depressa possível.

Nessa empresa difícil já estão aproveitados oficiais que conhecem bem todo o território e são hábeis em dirigir a guerra contra os selvagens. A duas léguas desta aldeia, há a aldeia de Piranga, situada perto da margem do rio do mesmo nome, que, quatro léguas mais longe, desemboca no São José e forma com ele o Rio Doce. Este rio atravessa uma bela região, em direção norte e depois na de este e se lança no mar a 19°30’ de latitude sul; em sua embocadura estão três ilhas chamadas “Os Três Irmãos”.

Se tornassem este rio navegável, daí resultaria uma imensa vantagem para o território que atravessa. Grandes quantidades de açúcar, algodão e outros produtos que o solo está em condições de produzir, além de excelente madeira de exportação, formariam, então, a base de vasto comércio, estimulando a indústria dos agricultores. Eles apenas cultivam hoje o que lhes baste para o consumo, por causa das enormes despesas ocasionadas pelo transporte por terra até o porto mais próximo, a mais de quinhentas milhas.

Piranga está talvez mais exposta do que São José aos ataques dos selvagens, mas há em sua vizinhança algumas lavagens de ouro, que infundem nos habitantes a tentação de arrostar o perigo. Aí existe tropa pouco numerosa de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras, reconhecimentos nos bosques, ir procurar os selvagens por toda parte onde lhes informam que podem encontrá-los. Apesar destas precauções, a aldeia nunca está completamente segura; alguns meses antes de nossa chegada, uma casa pouco afastada deles sofrera ataque de surpresa.

Despedimo-nos do vigário e de seus hóspedes e posso até dizer que de todos os aldeões, que vieram nos cumprimentar, quando passamos. De volta a Castro, empreguei o dia seguinte em visitar a fazenda. Como a de Barro, está construída em forma quadrangular; três lados são tomados pelas habitações dos negros e a mansão pelo outro; entra-se nela por uma grande porta que oferece toda a segurança quando fechada. Os quartos assemelham-se aos velhos saguões, ornamentados com entalhes de madeira e mobiliados à antiga. Havia neles bacamartes, espadas e outras armas defensivas, usadas no passado, quando exposto o lugar aos ataques dos botocudos. A escada, a varanda e os assoalhos eram feitos de bela madeira, que ainda não sofrera a injúria do tempo. Ligados à casa, viam-se os restos de uma moenda de cana, um alambique, moinho de fubá e uma máquina para fiar algodão, tudo muito desleixado. A fazenda apresentava ainda sinais da primitiva opulência e da grandeza de que gradualmente decaíra, à medida que as lavagens de ouro, na confluência dos rios e em outros lugares se esgotavam. Todos os negros foram transportados para o Barro, exceto os inválidos e os doentes, que aí ficaram para trazer a casa em ordem (pois isto foi considerado trabalho suave para eles), e à medida que se restabeleciam, foram sendo mandados para o Barro, a fim de trabalharem com os outros.

Tendo feito um desenho da casa e examinado tudo quanto me interessava, voltei a Barro pelo mesmo caminho, ocupando-me em levantar um mapa topográfico do rio, assinalando em cores diferentes os lugares, já explorados em procura do ouro, os em exploração e os inexplorados. Esta espécie de mapa poderia ser feita em larga escala, de modo a incluir todo um distrito ou paróquia, onde as várias minas ou leitos de ouro, nos diferentes estados, pudessem ser distinguidos de relance.

Empregam nesta propriedade cento e cinquenta e seis negros, de todos os tipos, que em tão bom lugar, que produz todo o necessário à alimentação e à vestimenta, deveriam, supõe-se, ganhar mais que o suficiente para sua manutenção; um dos gerentes anteriores administrou-a, entretanto, tão mal durante vinte anos seguidos, que, embora tivesse apenas de comprar muito pouca ferramenta e as minas de ouro fossem mais ricas do que hoje, a fazenda ficava, ainda assim todos os anos, em débito com os negociantes de Vila Rica. Uma única circunstância pode explicar tão má gestão; o nobre proprietário residia em Portugal. Hoje a propriedade, confiada aos cuidados de um administrador e de três feitores, todos crioulos, está prospera. Os feitores recebem, além do sustento, um salário anual de trinta mil réis (nove libras esterlinas). Executam as ordens do administrador e fiscalizam o trabalho dos negros. Levam vida de extrema indolência – nunca põem as mãos em qualquer espécie de trabalho.

A maneira de se alimentar nesta terra de Canaã é a mesma dos mineiros dos arredores de São Paulo, que já descrevi. O administrador, o intendente e os inspetores comem conjuntamente. Eis o seu trivial: ao almoço, feijão preto misturado com farinha de milho e um pouco de torresmo de toucinho frito ou carne cozida; ao jantar, um pedaço de porco assado; derramam água em um prato de farinha de milho; colocam tudo amontoado na mesa e aí põem também um prato de feijão cozido; cada um se serve à vontade; há apenas uma faca, da qual não fazem uso: um prato ou dois de couve completam o repasto; servem ordinariamente estas comidas nas panelas de barro em que foram cozidas; algumas vezes, as colocam em pratos de estanho. A bebida comum é água: na ceia só comem hortaliças cozidas e pequeno pedaço de toucinho para lhes dar gosto. Em dias de festa ou quando recebem pessoas estranhas, acrescentam, às refeições, uma galinha cozida.

Alimentam os negros, ao almoço e à ceia, com farinha de milho misturada com água quente, na qual põem um pedaço de toucinho; ao jantar dão-lhes feijão. Esta raça infeliz é tratada aí com a bondade e a humanidade a que faz jus o seu bom procedimento; dão aos negros tanta terra quanta podem cultivar nos momentos de lazer (a lei lhes concede para esse fim os domingos e feriados), e podem dispor à vontade do produto de seu trabalho; trazem como vestimenta camisas e calças compridas de pano de algodão, aí mesmo plantado e tecido. Seus dias de trabalho são longos: antes do levantar do sol, um sino os chama à oração, rezada por um dos feitores e repetida pelo auditório; em seguida, partem para o trabalho e nele ficam até o pôr do sol, quando rezam como pela manhã. Uma hora depois do jantar, preparam a lenha para queimar, debulham o milho e se ocupam em outras tarefas domésticas, Vêm-se muitas vezes negros com o pescoço inchado, mas em regra têm aparência de boa saúde; vi muito poucos atacados de elefantíase e de doenças da pele; havia muitos idosos, homens e mulheres; alguns se recordavam do primeiro proprietário, seu antigo senhor, falecido há mais de sessenta anos.

A farinha de milho, alimento principal, me pareceu de tão bom paladar e tão nutritiva que tive a curiosidade de conhecer seu preparo. Fazem a princípio molhar os grãos na água; depois, quando inchados e ainda úmidos tiram-lhes a película externa; reduzem-nos a pequenos grãos. Colocam, então, a farinha em frigideiras de cobre levadas ao fogo, e agitam-na constantemente até que esteja seca e boa para ser comida; aqui a empregam como sucedâneo do pão, tão comum ente como no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros lugares, a farinha de mandioca.

O milho é sempre plantado em terras virgens, desbastadas pela queimada, da maneira já descrita. Nas boas estações, ou noutras palavras, quando o tempo seco permite seja a madeira derrubada completamente reduzida a cinzas, a colheita é de cento e cinquenta a duzentos alqueires por um. Não se capina senão depois do grão ter estado algum tempo na terra; a colheita sofre menos com o esquecimento dessa operação do que com os estragos dos ratos. Não tive quase tempo para fazer neste lugar observação sobre as condições sociais. As mulheres me pareceram em geral fracas, o que atribuí a má alimentação e à vida sedentária; estão constantemente ocupadas em costurar e fazer renda. Em São José vi várias mulheres do campo vestidas de panos estampados ingleses; algumas traziam negligentemente sobre os ombros mantilhas de lã debruadas de renda dourada ou de veludo de Manchester; tinham todas os cabelos presos por um pente e geralmente usavam chapéus de homem. A maior parte dos homens pertencia à milícia e vestia uniforme. Não é possível que duas coisas divirjam tanto entre si como um oficial de milícia à paisana ou de uniforme: quando em casa, veste raramente mais da metade das roupas, sobre as quais enverga um velho casacão e assim, de manhã, à noite, oferece a verdadeira imagem do relaxamento. Nos domingos ou nos feriados, depois de ter empregado algumas horas na “toalete”, resplandece de galões de ouro, e, diante da multidão, sua beleza se ostenta em um cavalo todo ajaezado; portanto, nada de meio termo: ou está num desalinho mesquinho ou numa vestimenta brilhante.

Durante minha estada em Barro, mostraram belos frutos de sabor igual ao da amêndoa fresca, podendo-se conservar desde que estejam secos, tornando-se, desta maneira, valioso artigo de comércio. Nunca tendo ouvido falar desse fruto, quero dar dele uma descrição sucinta. É da grossura de um coco revestido de sua casca, isto é, tem nove a dez polegadas de comprimento, e cinco a seis de diâmetro, em sua porção mais larga; fica suspenso ao ramo da árvore por uma haste delgada, mas forte; o invólucro encerra trinta a cinquenta caroços de forma das amêndoas, sendo duas a três vezes maiores do que elas, enfileirados e separados uns dos outros, por uma substância medular, branca. À medida que esses caroços amadurecem, a parte alta do invólucro, que se assemelha a uma tampa, se abre pouco a pouco; e quando estão inteiramente amadurecidos, a parte mais grossa que os contém se separa e cai com eles em terra. Na estação em que esses frutos se abrem, o pé das árvores que os produzem é frequentado por bandos de porcos selvagens, macacos, papagaios e outros pássaros, que não os abandonam enquanto há alguns desses deliciosos caroços. Disseram-me que algumas árvores [11], produziam mais de uma tonelada de frutos em uma só estação. Trouxe uma das sementes, que enviei a Sir Joseph Banks, célebre filósofo, e naturalista distinto.

Despedimo-nos da boa gente da fazenda e, voltando a Vila Rica pelo mesmo caminho, tive grande dificuldade em encontrar um pouco de manteiga, fabricada pelo novo processo, para presentear o Juiz, Senhor Lucas, a qual chegou em bom estado. Na volta, passando em Lavras Velhas, mostraram-nos quinina excelente, muito parecida com a do Peru e que diziam possuir em alto grau as mesmas propriedades. A amostra que vimos nos levou a pensar ser possível administrá-la com o mesmo bom resultado que a quinina do Peru, e como se pode obter quantidades consideráveis, vale bem a pena que os médicos a experimentem. Mandei um embrulho dela para a Inglaterra, mas, por um acidente qualquer, se perdeu na Alfândega.

Teríamos podido, em vários pontos do nosso caminho, caçar insetos, mas são necessários tantos cuidados e atenção para enviá-los em bom estado a distância tão considerável, que renunciei a essa procura. Pareceu-me extraordinário não ter visto, desde minha chegada ao Brasil, (exceto nos gabinetes dos curiosos) mais de um diamond-beetle, (besouro dourado) conquanto eu o tivesse procurado frequentemente em todas as plantações.

Enquanto estive ausente de Vila Rica, um dos meus soldados me arranjou uma libra de bismuto nativo, em pedaços, dos quais o mais grosso não pesava mais que uma onça. Encontram-no muitas vezes neste estado, coberto de óxido amarelo, o que prova estar ele fora da ganga; originariamente aparece em veios; trouxeram-me também vários pedaços de piritas e diversas variedades de minérios de ferro.

Tinha encomendado de algumas pessoas caramujos terrestres; deram-me seis de uma bela cor parda, com a boca de cor rósea; pertencem a nova variedade de helix. Tendo-as guardado alguns dias, sem delas retirar os bichos, vi, com grande surpresa, que um deles pusera dois ovos; antes não julgava que estes animais fossem ovíparos. Tomei uma das conchas na mão, enquanto o animal caminhava; ele se contraiu logo e entrou prontamente; mas nessa operação, depositou outro ovo no orifício da concha; todos esses ovos eram pouco mais ou menos do tamanho do dos pardais. Em minha viagem, não vi outras conchas terrestres.

Visitando novamente a Casa da Moeda, aproveitei a ocasião para expor aos administradores as minhas ideias sobre um novo regulamento para fornecer mercúrio aos mineiros. Um dos grandes obstáculos ao uso deste metal, tão necessário em alguns processos de exploração das minas, era o preço exorbitante pelo qual o vendiam os boticários, que com ele exclusivamente negociavam; obrigavam os compradores a pagá-lo acima de dois xelins a onça. Propus estabelecer o depósito legal desse metal na Casa da Moeda, que o venderia pelo custo aos lavadores de ouro. Assim se generalizaria o uso desse metal, o que seria benefício para o Estado e para os particulares. Dei também o modelo de vasos de barro para a evaporação e condensação do mercúrio. Se estes vasos, que podem ser fabricados a bom preço, fossem geralmente adotados, produziriam economia considerável no consumo do mercúrio.

Os últimos dias da minha estada, antes da viagem ao Tejuco, passaram-se muito agradavelmente. Nos jantares, para os quais fui convidado, em que compareciam, em geral, senhoras e cavalheiros, observei que entre as primeiras, em particular, predominava a moda inglesa. As casas das classes abastadas em Vila Rica estão bem melhor arranjadas e mobiliadas do que as que vi no Rio de Janeiro e em São Paulo e, na sua maioria, conservam uma ordem perfeita. Os leitos pareceram-me tão elegantes que os considerei dignos de descrição mais detalhada. As cabeceiras são de madeira fina, com caneluras ou esculpidas de maneiras diversas; os lados lisos, os pés de madeira ou de couro. O colchão era de algodão e os lençóis de linho muito fino, com barra de renda feita em casa, tendo no mínimo nove polegadas de largura. O rolo estava coberto de musselina, com as extremidades também enfeitadas com renda. Os travesseiros arredondados nas pontas e forrados com tafetá coberto de fina musselina, ornada com renda, que engomada e delicadamente feita, dava aparência de luxo. A colcha, de damasco amarelo, ornada, assim como os lençóis e as fronhas, de renda larga. As colgaduras eram dos mesmos materiais, em forma de dossel, sem cortinas. Excetuando as últimas novidades nesta peça da mobília, nunca vi leitos tão magníficos quanto os dos opulentos desta capitania.

Com tudo pronto para a minha partida, despedi-me dos vários habitantes, agradecendo-lhes suas gentilezas para comigo, e recebendo deles as maiores demonstrações de amizade e votos de boa viagem. Despedi-me, também, com muito pesar, do meu precioso amigo e companheiro de viagem, Sr. Gooddall, cujos negócios exigiam sua presença em São João del Rei, de onde voltaria ao Rio de Janeiro. Jamais tivera igual companheiro de viagem; sempre animado e espirituoso, vendo tudo pelo lado melhor e, diante das péssimas estradas, hospedarias miseráveis, má comida e acomodações ainda piores, servia de exemplo ao adágio que “com o coração alegre tudo está bem”. Conhecedor perfeito do idioma e bem familiarizado com o caráter e os hábitos do povo, sentia-se à vontade em toda parte, conseguindo sempre aproveitar das conversações alguma observação interessante ou comentário elucidador. Essas qualidades admiráveis, fruto de sua cultura e de ótimo coração, davam-lhe direito dobrado ao respeito e à confiança com que distinguimos aqueles a quem chamamos de amigo.

Notas

  1. O triste herói desta jornada foi um tal Bento do Amaral Coutinho, já célebre por suas tropelias e atrevimentos nas Minas. Tendo-se encontrado o troço de Emboabas que capitaneava, com o dos Paulistas comandados por Gabriel de Góis, junto ao Rio das Mortes, depois de pelejarem por muito tempo nas proximidades de um capão de mato, depois expressivamente denominado da Traição, os Paulistas, sentindo escassearem-lhes as munições, refugiaram-se na mata. O chefe dos Emboabas garantiu-lhes quartel se se rendessem. Confiantes na lealdade do adversário os Paulistas foram saindo um a um e depondo as armas. Ao vê-las inermes e a sua mercê, o miserável Bento do Amaral acometeu-os com seus sicários, escrevendo a mais torpe e sanguinária página da história colonial. A chacina foi tão grande que as águas do Rio das Mortes ficaram tintas de sangue, e poucos conseguiram escapar, lançando-se pelas matas que marginavam o curso d’água. A infâmia do procedimento de Amaral Coutinho revoltou a maioria de seus partidários, e essa figura é uma das poucas do nosso passado sobre a qual os julgamentos dos historiadores não divergem. Não se confunda Bento do Amaral Coutinho, o tigre do Rio das Mortes com o seu contemporâneo e homônimo Bento do Amaral Coutinho, comandante do Terço dos Estudantes, e herói nos combates contra o invasor francês Duclerc, soldado bravo e leal. As melhores condições possíveis, a que se refere Mawe, vieram a ser as providências tomadas por Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, no sentido de transformar os arraiais de mineradores rebelados em vilas com magistratura regular para manter a ordem, e regular os conflitos que pudessem surgir sobre a propriedade das lavras, assim como a anistia geral que se seguiu, e aproveitou tanto aos Paulistas como aos Emboabas. Por essa designação entendiam-se não só os portugueses reinóis, como os demais habitantes do Brasil não paulistas, acorridos às Minas. Eis porque o baiano Rocha Pita se mostra em geral hostil à gente bandeirante no julgamento dos antecedentes da luta. Para maiores minúcias veja-se o livro de J. Soares de Mello: Emboabas, crônica de uma revolução nativista., São Paulo, 1929, São Paulo Editora Limitada (R. L.),
  2. De 1700 até 1713, inclusive, vigorou o sistema dos quintos estabelecido por Artur de Sá e Menezes, com rendimento muito variável de ano para ano e cobrança muito irregular. Estabeleceram-se registos (postos aduaneiros) para impedir o contrabando, que, apesar de tudo, se fazia em grande escala. D. Braz Balthazar da Silveira substituiu o sistema dos quintos pela contribuição fixa de 30 arrobas anuais de ouro, que as câmaras deviam pagar, mediante fintas lançadas sobre os mineradores, levando em conta a importância das catas e o número de escravos empregados. Por esse ajuste, que começou a vigorar a partir de 1714, foram levantados os registos dos caminhos e permitido o livre trânsito do ouro para fora da Capitania, sem guia e sem o pagamento de quaisquer direitos. Coube à Câmara de São João d’El Rei a quota de cinco arrobas e dez libras; à de Vila Rica doze arrobas e à de Sabará doze arrobas e vinte e duas libras. Às Câmaras ficariam pertencendo os direitos das entradas. Esse sistema vigorou até à vinda do Conde de Assumar, que, chegando com a incumbência de estabelecer as casas de fundição para a quintagem, foi mal recebido pelos povos, tendo lugar a célebre rebelião de Felipe dos Santos. V. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio pelo Dr. Joaquim Felício dos Santos, Nova edição. 1924. Livraria Castilho, págs. 7 e seg. (R. L.).
  3. Durante a maior parte desse período, isto é, de 1.º de Julho de 1735 a 31 de Julho de 1751, quando se restabeleceu o imposto direto de 20% (o quinto) sobre o ouro levado às Casas de Fundição, vigorou o sistema chamado da capitação. Durante sua vigência o uso de moeda cunhada foi proibido nas Minas, e qualquer habitante da Capitania, fosse ou não minerador, ficava taxado anualmente em quatro oitavas e três quartos por escravo que possuísse; nas mesmas condições foram postos os pretos forros e quaisquer oficiais de ofício. As lojas de mercancia pagavam capitação mais elevada. Só se isentavam as crianças menores de quatorze anos e os escravos a serviço dos oficiais, os ministros régios e os eclesiásticos.
    O sugeridor da reforma fiscal foi o secretário particular de D. João V, o nosso compatriota Alexandre de Gusmão, que elaborou o respectivo regulamento, e foi tão ardoroso defensor do sistema, que, em abono de suas vantagens, não hesitou em combater, em mais de um parecer, fora e dentro do Conselho Ultramarino, a lei de 3 de Dezembro de 1750, promulgada já no governo de D. José I, estabelecendo novamente a quintagem, em substituição ao imposto per capita, As censuras com que foi recebida pelo novo governo a atitude do Conselho Ultramarino, que por sua inspiração representou mostrando as desvantagens para o fisco, e a injustiça em relação aos mineradores, que resultariam da aplicação do novo sistema, foram de tal ordem, que o ilustre santista se retirou do serviço régio.
    O sistema da capitação, embora em princípio condenável, por atingir de forma igual contribuintes de recursos muito diferentes, tinha, porém, a iniludível vantagem de ser o único fácil de fiscalizar em regiões vastas e desertas como as do Brasil, onde o contrabando não oferecia a menor dificuldade, e era muito dispendiosa, e apesar disso, completamente ineficiente, a repressão.
    Além dessas razões o defensor soube nos seus pareceres, tanto individual como coletivo do Conselho Ultramarino, mostrar com muita inteligência como os verdadeiros favorecidos com o descaminho do ouro não eram os mineradores, mas sim os comerciantes, que traziam gêneros a vender nas Minas e levavam para fora da Capitania e do país o precioso metal. Não seria, pois, demais, que concorressem também com a taxa da capitação os principais beneficiados (ainda que Indiretamente) com a extração do ouro (R. L.).
  4. Vi na Inglaterra um caso de uma barra, a que o mercúrio aderira, em mãos de uma pessoa que desconhecia metalurgia, ser vendida por preço reduzido, como se a parte descorada fosse realmente chumbo; assim pensava também o comprador. (N. do A.)
  5. Sulfureto de ferro (R. L.).
  6. As melhores partes desses prados, na melhor estação, não são de modo algum ricos em capim, como um campo inglês. (N. do A.)
  7. D. Mariana d’Áustria, mulher de D. João V, era mãe de D. José, avó de D. Maria I e bisavó do Príncipe Regente pela linha reinante; mas avó simplesmente pela linha paterna, pois o pai de D. João, D. Pedro III, rei consorte, era filho de D. João V e D. Mariana d’Áustria, e tio de sua mulher D. Maria I (R. L.).
  8. D. Fr. Cipriano de São José, à testa da diocese desde 30 de Outubro de 1799, quando fez sua entrada solene na Sé. V. a seu respeito Aníbal de Matos: Monumentos Históricos, Artísticos e Religiosos de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1935, págs. 194-200 (R. L.).
  9. D. Rodrigo Antônio de Souza Coutinho, Conde de Linhares e D. Domingos Antônio de Souza Coutinho, 1.º Marquês do Funchal (R. L.).
  10. Esta espécie de sublimação em ponto pequeno muito me interessou. Resultaria de uma ciência rudimentar dos negros, ou seria mera descoberta acidental? (N. do A.)
  11. A Sapucaia, Lecythis Urnigera, fam. das Lecythidaceas. (R. L.).

Fonte

  • Mawe, John. Viagens ao Interior do Brasil: Principalmente aos Distritos do Ouro e dos Diamantes. Tradução de Solena Benevides Viana; Introdução e Notas de Clado Ribeiro de Lessa. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1944. 347 p.

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