Sustento dos Presos, por Vieira Fazenda

Descritas, sumariamente, as condições materiais das nossas antigas cadeias, não vem fora de propósito as presentes notas sobre a maneira por que eram alimentados os infelizes sujeitos à ação da justiça.
Da leitura de grande número de documentos, resulta-nos a convicção de que só excepcionalmente saíam dos cofres públicos quantias destinadas ao sustento dos presos.
Existe no arquivo do Instituto Histórico, sob o número 294, cópia de fragmentos da correspondência do conde de Resende, pelos quais vemos assinados por Antônio da Silveira Vaz pedidos de pagamentos, autorizados por aquele vice-rei, para despesa de comedorias dos presos da Inconfidência, conservados incomunicáveis na cadeia e guarda principal do Palácio – de Setembro de 1791 a Janeiro de 1792.
Tinham por dia um cruzado.
Ao preto Nicolau, que acompanhava com a maior dedicação seu senhor o tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira, eram concedidos apenas sessenta réis!
Não nos deve surpreender tanta liberalidade, quando é certo que tais despesas eram fartamente compensadas pelos recursos dos bens sequestrados aos implicados na conspiração.
Os simples detentos, que gozavam de meios para poder pagar estadia, na sala livre, alimentavam-se à sua custa, ou pagando diretamente tal favor aos carcereiros, ou mandando vir as refeições da casa de parentes, amigos e interessados.
Apesar dos rigores impostos pelo livro 1º, título 58º, das Ordenações, aos carcereiros, estes abusaram sempre, como nos refere o relatório apresentado à Câmara, ao qual nos referimos, quando descrevemos o Aljube.
A negligência chegou a tal ponto, que indivíduos acusados de crimes graves banqueteavam-se no andar superior do sombrio edifício da Rua da Prainha, enquanto nas enxovias outros morreriam de fome, a não ser a caridade de instituições particulares.
É bem conhecida a história de audaciosa evasão, levada a efeito dentro de uma caixa de comidas que servira em certo jantar de anos!
Digna, porém, de toda a compaixão era, sem dúvida, a sorte dos escravos, que pela lei deviam ser sustentados pelos respectivos senhores.
Apesar das determinações e cartas régias de 20 de Maio de 1618 – 13 de Julho de 1678 – 28 de Abril de 1681 – 20 de Julho de 1686 e 13 de Abril de 1688, tal era a falta de humanidade dos carcereiros para com as infelizes vítimas do cativeiro, que deu lugar às enérgicas providências ordenadas pelo alvará de 3 de Outubro de 1758:
“Faço saber, dizia o rei, aos que este Alvará de Declaração e Ampliação virem, que porquanto no Regimento, com que novissimamente regulei os emolumentos dos Ministros e Oficiais de Justiça do Estado do Brasil, fui servido ordenar que os Carcereiros possam Levar cento e vinte réis cada dia pelo sustento dos escravos que são presos nas suas respectivas Cadeias; e sou informado de que os ditos Carcereiros além de reduzirem O Sustento dos referidos Escravos a uma pequena porção de milho cozido, em que só fazem de gasto vinte réis cada dia, costumam servir-se deles mandando-os, contra a disposição das minhas leis, sair das prisões, metidos em correntes para irem aos matos e campos buscar-lhes lenha e capim para venderem, etc.”.
Aos presos desamparados era permitido recorrerem à caridade dos transeuntes, esmolando como verdadeiros mendigos.
Para esse mister destacava-se um condenado que, preso por comprida corrente às grades da prisão, podia chegar até ao meio da rua. Para descanso desse peditório, feito ao rigor do Sol, davam-lhe pequeno tamborete, onde o infeliz, de quando em vez, se sentava, cansado de tão grande faina. Há na obra de Debret, sugestiva estampa representando esse vergonhoso fato; ela exprime muito melhor tudo quanto pudéssemos descrever.
A propósito, narraremos formidável susto sofrido e que nos foi contado por um ancião respeitável; moço ainda e chegado havia pouco da roça, passava ao lusco-fusco pelas proximidades da Rua da Prainha, quando, ouvida grande algazarra, viu encaminhar-se para ele um indivíduo, estendendo-lhe a mão. O tinir dos ferros, o aspecto sinistro do pedinte causaram-lhe tal horror, que fugiu assombrado, só dando acordo de si no meio da Rua dos Pescadores!
“Nunca mais por ali passei”, acrescentava o narrador, lembrado sempre de tão singular espetáculo!
Ainda em princípio do século passado era visto transitar pelas ruas desta cidade, em horas certas, entristecedor farrancho. Alguns soldados escoltavam galés, que levavam ao ombro, enfiados em grossa vara de pau, dois grandes caldeirões. Saindo da Santa Casa iam nos primeiros tempos em direção à Cadeia (hoje Câmara dos Deputados), e de 1808 em diante com destino ao Aljube. Era a Misericórdia, que, pelas cláusulas de seu Compromisso, tomava a si o sustento dos presos, à imitação do que sempre praticara a Misericórdia de Lisboa, seguindo o exemplo do instituidor, o benemérito Contreiras, o qual, segundo Costa Goodolphim, andava pelas ruas da capital do reino acompanhado de um anão, guiando um pequeno jumento e pedindo esmola para os pobres, os órfãos, os enjeitados e também para os presos.
Como a benemérita instituição se desempenhava de tão santo e caridoso encargo, temos as provas folheando os antigos livros existentes no arquivo da Santa Casa.
Desde o princípio da cidade exerceu a Irmandade esse dever imposto pelo seu estatuto, sendo secundada até 1759 pelos Jesuítas, que se encarregavam de, nos domingos, fornecer também alimentação aos presos.
De livro modernamente impresso e devido aos esforços do operoso Felix Ferreira resumiremos o muito que ele referiu sobre tão importante assunto.
À obra A Santa Casa da Misericórdia Fluminense foi distribuída a limitado número de pessoas, não foi posta à venda, é pouco conhecida da maioria dos leitores desta folha, e por isso é bem cabível aqui o extrato sobre o sustento dos presos, detalhadamente tratado nas páginas da supracitada memória histórica.
Em 24 de Setembro de 1750 apresentou-se o capelão Pereira Xavier, dizendo que, em segredo de confessionário, lhe foram entregues 3.000 cruzados para serem postos a juros ou comprar-se com eles alguma propriedade, a fim de aplicar-se a respectiva renda, metade à alimentação dos presos e a outra à dos enfermos. Declarou então o tesoureiro que, gastando-se mais de 200$ por ano com essa alimentação, não chegaria aquela metade de renda para tanto, mas a Mesa podia comprometer-se a dar aos encarcerados, às quartas-feiras, um caldeirão de carne e arroz, nos outros dias um de feijão com fressura, e o mais correria por conta da Casa.
Com a expulsão dos Jesuítas ficariam os presos sem alimentação aos domingos, se em socorro deles não viesse ainda a Santa Casa da Misericórdia. Anônimo benfeitor procurou o tesoureiro de então e, com todo o segredo, entregou-lhe 1.000 cruzados. Comunicado o donativo à Mesa resolveu esta que, com os juros dessa quantia, se comprasse e desse aos encarcerados, todos os domingos, duas arrobas de carne verde, três libras de toucinho, um vintém de couve, uma quarta de arroz, meia pataca de tripas e meio alqueire de farinha.
Felix Ferreira suspeita e com razão ter sido o marquês de Lavradio quem fizera o donativo.
As continuadas reclamações da Santa Casa que, pela exiguidade de suas rendas, não podia fazer as despesas sempre crescentes e deviam correr pelos cofres públicos, deu sempre favorável deferimento o Governo da metrópole.
Com a mudança da forma de governo, isto é, com a Independência e, mais tarde, com a República, nada mudou com relação ao sustento dos presos. O exemplo de socorro fraternal, que dava há mais de dois séculos a benemérita Misericórdia, foi em boa hora seguido pela irmandade do Sacramento da Candelária, a qual, uma vez por ano, na véspera de Pentecostes, mandava aos presos do Aljube avultado presente, que constava de dois carros puxados a bois, cheios até às bordas, de carne fresca, toucinho, carne seca, feijão preto, laranjas e farinha de mandioca.
Esse belo ato de filantropia está também reproduzido na estampa da obra de Debret, a que acima fizemos referência. Nele vemos os carros cobertos de folhas e flores, a música dos barbeiros, as bandeiras do Espírito Santo, os foliões e os irmãos da confraria revestidos das competentes opas.
Se a legislação portuguesa transmitida ao Brasil dispensava o Governo de alimentar os presos, esse dever não devia ter escapado a muitos dos homens que figuraram na política e que se diziam liberais. Entretanto, não só os estadistas do primeiro reinado como seus sucessores não deixaram de considerar um dever aquilo que a Misericórdia fazia por mera caridade, – sobretudo quando com o acréscimo da população tinha ela de atender a outras e mais imperiosas obrigações.
Nesse erro incidiram homens importantes, como Lino Coutinho e Feijó. Pela letra da Constituição ficariam os presos sob a proteção da lei e do Governo, pois competia prover-lhes a subsistência, tratá-los nas enfermidades, conservar-lhes as prisões limpas e habitáveis. Pela lei de 15 de Dezembro de 1831 a Assembleia Legislativa incluiu na lei do orçamento a quantia de 15:000$ para alimentação dos presos. Ainda assim, diz Felix Ferreira, o regente Diogo Antônio Feijó entendeu que a Misericórdia devia continuar com parte dessa despesa, determinando que por conta do Tesouro se desse o almoço de arroz, e o jantar fosse fornecido pela Santa Casa; isto porém não foi por muito tempo, pois a partir de 1839 a alimentação dos presos correu inteiramente por conta do Estado; converteu-se então a obra da Misericórdia, que a Casa Fluminense praticou por mais de dois séculos, em completo ramo de serviço público.
Entretanto, são estas as expressões do Dr. Moreira de Azevedo quando, em sua obra – O Rio de Janeiro (tomo 2º, página 396) se refere a tal assunto: “Se desde 15 de Junho de 1833 deixou de fornecer o sustento diário, continuou a remeter para os presos do Aljube e de Santa Bárbara os seguintes gêneros: vinte sacos de farinha, quatro de feijão, vinte arrobas de carne, três de toucinho e sessenta feixes de lenha, de dez em dez dias”.
Deixando de parte minudências, podemos assegurar: grandes foram os serviços prestados pela Misericórdia com relação ao sustento dos encarcerados; se outros títulos de benemerência não tivesse ela, em seu viver de mais de três séculos, bastaria o cumprimento desse pio encargo para a recomendar à gratidão de todos os corações bem formados.
Com justiça, dizia Garrett: “Em nenhum país da terra há instituição filantrópica superior, nem igual”.
18 de Novembro de 1902.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Veja também
Mapa - O Aljube