Baleias – II, por Vieira Fazenda

Triste fama adquiriram, nos dias tormentosos da revolta, os sítios que pelo contorno da nossa baía se assemelhavam, no dizer de Gabriel Soares, à figura de uma cabeça de cajado.
Descritos por escritores, cantados por poetas, percorridos pelo célebre viajante Cook e pelo velho rei D. João VI, receberam dos antigos o sugestivo nome de Armação de São Domingos, para distingui-la de outras espalhadas pelos portos do Brasil e destinadas à indústria da pesca das baleias.
Ampliado em 1782, esse importante estabelecimento constava de diversos edifícios descritos no inventário, feito em 1826, quando foi adjudicado à Fazenda Nacional por 109:658$690.
De umas notas extraídas da Seção do Tombamento dos Próprios Nacionais pelo finado Luiz de França Almeida e Sá, impressas no tomo 62 da Revista do Instituto Histórico, vê-se que possuía no referido ano a citada Armação alfaias de capela em prodigiosa quantidade, numeroso e variado sortimento de vasilhame (no qual se destacavam 30 grandes caldeiras de puro cobre), 13 lanchas e catraias com os respectivos apetrechos, o bergantim Providência perfeitamente municiado, 25 escravos, ferragens para os diferentes usos e serviços, muito material depositado, móveis e azeite de baleia em quantidade, etc.
Em prédios: uma capela, casa do administrador, sobrado servindo de fábrica de espermacete, casa dos tanques, casa de vender azeite, casa do ferreiro, casa do engenho, casas do grande tanque, do capelão, do feitor, do cirurgião, de banho, senzalas de escravos, armazéns para as lanchas, para as ferragens, tanoaria, armazém das barbatanas, etc., pertencente tudo à administração da firma social Joaquim José de Siqueira & Comp., substituída pelo depositário Francisco de Mello Magalhães.
Quanto ao histórico da capela, sob a invocação de Santo Ignácio, darei em resumo o que se encontra na obra de Monsenhor Pizarro. A princípio eram os atos de devoção celebrados em pequeno oratório, que ainda existia em 1729. No tempo dos contratadores Braz de Pina (que não foi o primeiro, como verifiquei) ou de seus antecessores foi levantado pequeno santuário substituído mais tarde por edifício de mais amplas proporções, nos fins do século XVIII, pelos administradores José Joaquim de Castro e João Marcos Vieira.
Este, seja dito de passagem, era sujeito riquíssimo e, conforme consta de documentos do Arquivo Público, foi preso e processado, por negociar com estrangeiros e teve seus bens sequestrados. De tudo se livrou graças a ter, naturalmente, provado sua inocência. Eram tais os lucros auferidos pelo Governo da Metrópole, que esta proibia, com todo o rigor, aos navios de outras nações a pesca da baleia nos mares do Brasil.
Cumpre não esquecer: Braz de Pina, rico capitalista e proprietário de prédios na Rua Direita, fundos para o mar, e de grande zona de terreno em Irajá, foi o benemérito construtor, à sua custa, do cais que teve o nome do feliz contratador, substituído mais tarde pelo de Cais dos Mineiros.
Significa tudo isto que o negócio dava para todos, e que da baleia vivia muita gente boa e respeitável.
Procedendo-se em 1831 a novo inventário, na Armação de São Domingos, deu ele para todos os bens existentes o valor de 122:212$340.
Dois anos depois passava esse importantíssimo próprio nacional para o Ministério da Marinha, que estabeleceu no local uma cordoaria, dizendo a Contadoria, em 21 de maio de 1861, que nessa data existiam só os edifícios.
Em 1834 foram vendidos os numerosos utensílios da extinta fábrica de azeite, pela quantia de 2:551$880!
Por título de 30 de junho de 1835, aforou-se parte desse próprio ao Visconde de Albuquerque.
Por escritura pública de 28 de março de 1855 comprou-se por 20:000$ a José Luiz Diniz e sua mulher uma chácara com casa e terrenos de marinhas no lugar denominado Morro da Armação – que se anexou aos terrenos desse próprio – e foi destinado para Asilo de Inválidos da Armada Brasileira.
Por deliberação do Ministério da Marinha de 1866 foi ali estabelecido o Laboratório Pirotécnico da Marinha.
Vai tudo isso sob a responsabilidade do referido França, que entra em largas considerações para provar que não só a Armação de São Domingos, como as da Bertioga, as de Santa Catarina e outras do Sul do Brasil, foram a pouco e pouco sendo alienadas por dez réis de mel coado.
Sustenta ainda ele que os governos mataram a indústria da pesca da baleia, em nossa baía do Rio de Janeiro, fazendo a aquisição da Armação de São Domingos pela quantia já indicada. Passaremos em silêncio os inventários das outras armações, sobre as quais entra em várias particularidades o mencionado França.
Da minuciosa correspondência dos governadores e vice-reis (códices do Arquivo Público), consta a remessa de azeite de baleia anualmente enviado para Portugal. Como único exemplo citarei a carta do Conde de Resende de 15 de setembro de 1791, na qual pelos navios Santo Antônio, Olinda e Senhor do Bomfim, cujo mestre era Manuel Corrêa Santiago, enviava a relação de 734 pipas de azeite de baleia de 180 medidas em 153 vasilhas, e 176 quintais de barbetana em 64 embrulhos!
Para dar sucinta ideia dos contratos e dos lucros provindos da indústria do azeite de peixe aproveitarei a Memória de Jacinto Jorge dos Anjos Corrêa, escrita em Santa Catarina, em 11 de março de 1820, e in totum citada por Pizarro.
Para estabelecimento das armações impetravam sempre seus fundadores permissão régia, que lhes concedia livremente o desfruto delas por alguns anos, no fim dos quais deviam passar à propriedade da Fazenda Nacional, com quem os novos especuladores contratavam o devido arrendamento. Desses arrematantes foi um dos primeiros Thomé Gomes Moreira, que fundou em 1746 a Armação de Nossa Senhora da Piedade, na barra do Norte da ilha de Santa Catarina.
Foram sucessores de Moreira, João do Couto Pereira, João Carneiro da Silva e outros, que pelo método nas suas administrações se privaram dos grandes interesses do contrato.
Em 1º de abril de 1765 Ignácio Pedro Quintela, com sete negociantes de Lisboa, celebrou novo contrato compreendendo também as Armações da Baía e Rio de Janeiro, e isto por espaço de 12 anos, pela quantia anual de 80 mil cruzados. Fizeram eles (os contratadores) avultadas despesas e restabeleceram novas Armações.
Além disso, pagavam a dois franceses – continua Jacinto Jorge – que pensionados por todo o tempo da arrematação, vieram examinar, se nas baleias se achava Âmbar gris ou Espermacete, cuja descoberta nunca apareceu, enquanto não aportou ao Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 1733, um bergantim de Boston.
Apesar dos prejuízos causados na invasão de Santa Catarina pelos Espanhóis, ganharam Quintela e seus sócios, em 12 anos de contrato, quatro milhões de cruzados, porque só na Armação da Piedade se recolheram 532 baleias!
Com a boca-doce, Quintela de novo arrematou o contrato por mais 12 anos, lucrando ainda mais que quatro milhões de cruzados. Foram os 24 anos mais felizes.
Depois, Joaquim Pedro Quintela e João Ferreira Sola arremataram de novo o contrato por igual espaço de tempo, dando ao Governo 120.000 cruzados.
Não foram muito felizes, porque já então escasseavam nos mares do Brasil esses cetáceos. Afinal o alvará de 4 de abril de 1801 mandou extinguir o contrato do azeite de peixe, concedendo a todos a faculdade para fazer livremente pescarias nas costas e no alto mar, ordenando-se a venda de todas as Armações. A coisa não pegou, e o Governo resolveu custear por sua conta os estabelecimentos. Foi infeliz, e por uma determinação de 1º de junho de 1816 conferiu à administração particular esse serviço com a condição de pagar 21:000$ por ano.
O inventário geral de todas as Armações feito em 1801 importou em 176:424$797, e o feito em 1816 em 111:663$620. Longe iria eu, ainda que em resumo entrasse em minúcia sobre o assunto.
A título de curiosidade, seguindo ainda Jacinto Jorge, darei a seguinte nota:
“Sendo as baleias de grandezas diferentes, rendem por isso umas dez pipas de azeite e outras vinte e cinco pipas; portanto, quando elas são bem aproveitadas, pode se regular umas por outras a 16 pipas cada uma, e às vezes mais. Cada baleia pode dar 14 a 16 arrobas de barbatana. Pelo que, fazendo-se um cálculo favorável, à vista do preço de 320 réis por medida e de 5$ por arroba de barbatana, que dantes se vendia no Rio de Janeiro a 10$, pode-se dizer que cada baleia rende 1:000$000.”
Do que vai dito resulta: para os nossos antepassados, a presença de baleias na nossa baía ou em suas cercanias era caso comum. Com os progressos da navegação já elas não nos visitam, e quando alguma o faz é objeto da pública curiosidade, como acontece ultimamente, e como a que deu à costa há anos em Copacabana.
E afinal: para que precisam os Cariocas de azeite de peixe, quando não carecem dele, pois têm à sua disposição o gás, o querosene, o acetileno, o álcool e a eletricidade?
18 de julho de 1904.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
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