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21 de dezembro de 1821, Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Chafariz das Musas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Chafariz das Musas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro

O Sr. Hayne, um dos comissários da comissão de tráfico de escravos e sua irmã propuseram uma excursão ao Jardim Botânico. Partimos logo após o nascer do sol e fomos de carro até a casa deles na baía de Boto Fogo [Botafogo], talvez a mais bela vista nos arredores do Rio, cidade tão rica em belezas naturais. Seu encanto é realçado pelas numerosas e belas casas de campo que a circundam agora. Todas surgiram com a chegada da corte de Lisboa. Antes disso este lugar encantador era habitado somente por alguns poucos pescadores e ciganos, com talvez uma ou duas vilas em suas margens junto aos pomares. Além da baía, caminhamos por um lindo caminho até a Lagoa de Rodrigo de Freitas. É esta quase circular e tem cerca de cinco milhas de circunferência. Está cercada de montanhas e florestas exceto onde uma pequena barra arenosa permite um desaguamento ocasional para o mar, quando a lagoa enche a tal ponto que ameaça prejudicar as plantações circunvizinhas. É impossível conceber algo de mais rico do que a vegetação que vem até a borda da água em volta do lago.

Jardim Botânico do Rio de Janeiro - P. G. Bertichem
Jardim Botânico do Rio de Janeiro - P. G. Bertichem

Devíamos comer no jardim, mas como o clima agora está quente, resolvemos primeiro passear por ele. É traçado em quadras adequadas; as aleias têm plantados, de cada lado, uns castanheiros que crescem muito depressa, trazidos originalmente de Bencoolen, e agora aclimatados aqui. Seu fruto é tão gostoso quanto à avelã e maior que o fruto da nogueira e produz óleo abundante; a folha tem o tamanho mais ou menos da do sicômoro e é de forma não muito diferente. A madeira é também útil. A rapidez do crescimento dessa árvore é sem exemplo entre essências; sua altura e beleza a distinguem de todas as outras. As sebes entre as divisões são de um arbusto que eu tomaria pela murta, mas cujas folhas, ainda que fortes, não são cheirosas. Este jardim foi destinado pelo Rei para cultivo de especiarias e frutos orientais e, acima de tudo, para o do chá, que ele mandou vir da China juntamente com algumas famílias acostumadas à sua cultura. Nada pode ser mais próspero do que o conjunto das plantas. O cinamomo, a cânfora, a noz moscada e o cravo da Índia crescem tão bem quanto no solo natal. A fruta-pão produz o fruto admiravelmente, e da mesma sorte as frutas orientais, tal como foram trazidas para cá, amadurecem tão bem quanto na Índia. Notei particularmente o jambo (jumbo malacca) da Índia, e a longona (Euphoria Longona), espécie de litchi da China. Fiquei desapontada por não encontrar nenhuma coleção de plantas indígenas. Contudo, já se fez muita coisa para se ter esperanças de desenvolvimento futuro, quando o estado político do país for mais tranquilo para permitir dar atenção a estas coisas.

O rio que banha o jardim corre através de um vale encantador, onde está instalada a Real Fábrica de Pólvora. Mas, como estava com medo de que fosse um esforço demasiado para Langford (guarda-marinha doente que desembarcou com Maria Graham quatro dias antes – N. do E.), adiamos para outro dia nossa visita a este estabelecimento e voltamos ao portão do jardim para almoçar. Sua Majestade El-Rei D. João VI construiu ali uma pequena casa, com três ou quatro quartos para acomodar a comitiva real quando visitava o jardim. Nosso almoço foi servido na varanda de tal casa, da qual tínhamos uma vista encantadora da lagoa, com as montanhas e as matas, o oceano com três ilhotas ao largo, e no primeiro plano uma capelinha (80), e um vilarejo na extremidade de uma pequena e suave planície verde. (I)

Thomas Ender – Fábrica de pólvora
Thomas Ender – Fábrica de pólvora

Depois de esperar em companhia de nossos agradáveis e bem informados amigos que começasse a soprar a brisa marítima, voltamos parte do caminho ao longo da lagoa, depois subimos ao curato de Nossa Senhora da Cabeça, onde se juntaram a nós várias outras pessoas que ali tinham vindo para cear conosco. O padre Manuel Gomes recebeu-nos muito amavelmente e nosso piquenique se espalhou pela ampla varanda de seu curato. Atrás da varanda três quartinhos serviam de quarto de dormir, cozinha e despensa. Meia dúzia de casinholas no campo contíguo abrigam os negros de aspecto saudável que trabalham em seus cafezais e um enxame de crianças de todas as tonalidades, entre o branco e o preto. Numa pequena eminência no meio delas fica a capela de Nossa Senhora que é a matriz de uma extensa paróquia. É extremamente pequena; mas serve de sede onde os sacramentos são ministrados, e concedidas as licenças para casamentos, enterros e batizados. Os proprietários de fazendas têm geralmente capelas privadas, onde se diz missa diariamente em proveito de sua população, de modo que a igreja matriz só é procurada nas ocasiões acima referidas. A cerca de um arremesso de pedra atrás da capela, um claro riacho despenha-se montanha abaixo, saltando de pedra em pedra, em mil cascatas pequenas, e formando, cá e lá, esplêndidos locais para banhos. Também não está sem habitantes, que aumentam o luxo simples da mesa do padre. Ele me informa que os caranguejos de seu rio são melhores que os outros da vizinhança. A própria água é pura, clara e delicada.

Capela de Nossa Senhora da Cabeça (1603/1607)
Capela de Nossa Senhora da Cabeça (1603/1607)

Afinal, estando reunidos todos os nossos amigos, voltamos à varanda para jantar. A julgar pelo cardápio da festa, tão misturadas eram as produções de cada clima, dificilmente poderíamos dizer em que parte do mundo estávamos, não fosse a profusão de abacaxis e bananas, comparada à pequena quantidade de maçãs e peras para no-la lembrar. Como é comum em tais ocasiões, os mais velhos habitantes do Brasil preferiram o que vinha de fora, enquanto nós todos demos preferência às produções do país.

Em breve fui atraída para fora da mesa pela beleza da vista, que tentei esboçar. Os cafezais são os únicos terrenos cultivados na redondeza e são intercalados tão densamente com laranjeiras, limoeiros e outros altos arbustos, que parecem antes uma variedade das matas do que a mescla de terreno cultivado com terreno selvagem, que seria de esperar tão perto de uma grande cidade, onde contamos ver o trabalho humano aplicando-se razoavelmente sobre a beleza rude da natureza. Mas aqui a vegetação é tão exuberante que até as árvores podadas e tratadas crescem como se fosse na floresta.

Como todo o mundo estava disposto a se divertir, ficamos todos tristes quando chegou a hora da separação. Mas Burns já fez todas as considerações possíveis acerca do fim de uma reunião alegre:

Pleasures are poppies spread,—
You seize the flower, the bloom is shed;
Or like the snow-falls in the river,—
A moment white, then lost for ever;
Or like the rainbow’s fleeting form,
Evanishing amid the storm;
Or like the borealis race,
That flit ere you can point their place.
No man can tether time or tide:
The hour approaches, — we must ride.

E assim fizemos – Andamos até o pé do morro e cada qual tomou um transporte diverso: o coronel e a Sra. Cunningham, a sua confortável carruagem inglesa; o Sr. e a Sra. Hayne, o seu belo carro descoberto a dois cavalos; e eu em minha caleche, ou sege, (sic) – carruagem feia, mas cômoda, muito pesada, mas bem adaptada às estradas rudes que ligam o jardim à cidade. Os homens vieram todos a cavalo e quase todos nós trouxemos algo para casa. Alguns preferiram frutos e flores, Langford conseguiu certo número de besouros (entimus imperialis) e uma magnífica borboleta, e eu um esboço imperfeito da paisagem da casa do padre.

Nota da Autora

  1. Dedicada a S. João Batista. Não estou certa se é esta ou a de Nossa Senhora da Cabeça que é a Matriz. O mesmo sacerdote oficia em ambas.

Nota do Tradutor

  1. Refere-se à matriz provisória da paróquia de São João Batista. Criada a Fábrica de Pólvora em 1808, junto à Lagoa Rodrigo de Freitas, erigiu-se em 1809 nova paróquia, com o título de São João Batista. Tinha sede na capela de Nossa Senhora da Conceição, construída antes de 1732, e que pertencia ao antigo engenho, incorporado à Fábrica. A atual igreja matriz de São João Batista foi construída em terreno doado em 1831 por Joaquim Marques Batista de Leão.

    A capela de Nossa Senhora da Cabeça, cuja antiguidade se ignora, ficava na Rua do Jardim Botânico e também não mais existe. (Existe, está localizada na Rua Faro, 80 – N. do E.)

    J. de S. Azevedo Pizarro e Araújo, Memórias históricas do Rio de Janeiro, 2.ª ed. Inst. Nac. do Livro, vol. V, Rio, 1946, pg. 237; – A. Alves Ferreira dos Santos, A arquidiocese de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Rio, 1914, pg. 183).

Fonte

  • Graham, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil: e de uma estada neste país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. Tradução e notas de Américo Jacobina Lacombe. 1ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. 403 p. (Biblioteca Pedagógica Brasileira Brasiliana Série grande formato, vol. 8).

Imagem destacada

  • Chafariz das Musas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Veja também

Mapa - Jardim Botânico do Rio de Janeiro