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Entre o Luso e o Holandês, por Viriato Correia

Portugal x Holanda
Portugal x Holanda

Há no Brasil, o velho hábito de prantear-se o malogro da colonização flamenga e de atribuir-se ao português os defeitos e os males da nossa organização.

– Se os holandeses tivessem ficado em Pernambuco, ah! outros galos nos cantariam! Exclamam os nossos homens.

E, até espíritos de larga responsabilidade e de incontestáveis virtudes de análise, se têm deixado levar pela onda, afirmando que seríamos outro povo, de outro cunho moral, de outra vitalidade progressista, se a Holanda predominasse nas suas conquistas americanas.

Teria realmente o Brasil perdido com a colonização portuguesa? Teria ganho muito mais com o domínio holandês?

A resposta não se pode dar em duas ou três palavras.

Quando a gente, ao estender os olhos por esse imenso território de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, sabe que tudo é obra rude do português, parece não haver razão para maldizer a conquista lusa e para lamentar que os batavos tivessem malogrado.

Mas, pode haver, nesse juízo, algumas doses de sentimentalismo. É melhor analisar a questão com serenidade histórica.

Diante da história, o domínio holandês, no Brasil, foi um desastre, ou melhor, a triste revelação da incapacidade da Holanda como país colonizador.

Entre o português e o flamengo, dos tempos coloniais, a diferença era profunda. O primeiro, ao pisar em terras brasileiras, vinha preparado para a grande missão de formador de povos, o segundo apenas ensaiava, com desassombro, os arrojos da pirataria.

Portugal veio ao Brasil para colonizar. A Holanda entrou-nos pelas terras carregando, às costas, o cofre de uma empresa mercantil.

No espírito do primeiro havia, com toda a sua rudez, o impulso de expansão; no outro, com toda a sua cultura e todos os rasgos progressistas, havia apenas a frieza do lucro.

Há, na corrente que eleva o colonizador flamengo, um grave erro de visão. É que se quer julgar o holandês pelo que ele é na Holanda. Na Holanda, o holandês é grande. Não foi só uma civilização que construiu: fez esta coisa virgem na história do mundo – edificou um solo.

Mas, fora de lá, é pequenino e mesquinho. Atirando-se à aventura de conquistar territórios, não conseguiu outras virtudes senão a do ganho. Sendo, até hoje, um povo colonizador, até hoje não deu, ao mundo, uma nacionalidade formada, como Portugal deu o Brasil, como a Inglaterra deu os Estados Unidos, como a Espanha deu as Repúblicas da América.

No ponto de vista moral; no ponto de vista político, no ponto de vista social, as suas colônias são, hoje, o que eram nos primeiros dias do domínio – uma vasta seara que a metrópole explora inteligente e tranquilamente. Não se conhece uma nação formada e educada pela Holanda.

Com Portugal é justamente o contrário. Dentro da terra natal o português não é grande. Há nele a necessidade de alargar os braços, de desafogar o peito nas lutas heroicas do mar e dos continentes longínquos. Mal perde de vista os horizontes nativos transforma-se em titã: vem para a história como o devassador de oceanos, desbravador de terras incultas e formador de povos. Com quatro ou cinco calhambeques domina a imensidão das Índias, com um punhado de homens consegue impor-se na vasta costa brasileira e em todo o perfil do litoral da África.

Pondo em confronto os dois povos, as qualidades inatas de cada um, parece não haver motivos para chorarmos a ruína dos flamengos.

Nada perdemos em ter perdido o holandês.

E basta lançarmos um rápido olhar sobre a dominação neerlandesa no Brasil.

Os apaixonados da Holanda trazem sempre à luz aquele maravilhoso tempo de Nassau.

É realmente impressionante. Ninguém poderá negar a grandeza e o esplendor daquela época. Ninguém poderá afirmar que Portugal, no século XVII, tivesse conseguido, em Pernambuco ou em qualquer outra capitania, uma fase igual àquela.

Mas é preciso distinguir os fatos. Pernambuco teve sempre, com os holandeses, aquele esplendor, ou qualquer coisa que, com aquilo, se parecesse? Não.

A conquista flamenga, no Brasil, teve três períodos distintos: o anterior a Nassau, o de Nassau e o que se seguiu à retirada daquele príncipe.

No primeiro período quase se não podem pedir contas ao holandês. Nada pôde ele fazer, porque, durante cinco anos, viveu acossado pela resistência formidável dos patriotas do Arraial de Bom Jesus. Dizia-se sitiante, mas, na verdade, era sitiado. Mas, mesmo nesse período em que não pôde mostrar qualidades, teve a pouca inteligência de mostrar os defeitos. Apresentam-se, diante do povo brasileiro, como piratas insaciáveis; mostram-se, aos olhos de uma população católica, como intolerantes em matéria religiosa e profanadores de templos. Aterram as suas conquistas pelo excesso de crueldade com os vencidos.

O segundo período é simplesmente admirável. Nassau é um grande espírito, um grande político e uma grande generosidade. A paz solidifica-se. A alma do príncipe anda em toda parte como uma asa branca. A lavoura refloresce; a tranquilidade implanta-se; tudo caminha e avança alegremente. Pernambuco progride da noite para o dia. Nada-se em ouro; renasce o comércio; revive a confiança; restaura-se a justiça.

O príncipe vai buscar os próprios guerreiros do Arraial de Bom Jesus, aqueles que mais combateram a Holanda, para sentá-los à sua mesa. É a grandeza, é o esplendor, é a paz.

E depois de Nassau? Volta-se ao período das crueldades, a justiça empana-se, o comércio vive ao sabor da avidez horrível da Companhia das Índias Ocidentais, sobem os impostos. É o desenfreio enfim. Mal o príncipe se some na curva do mar, tudo muda: os prepostos da companhia revelam-se os mercadores que sempre foram, mas que o prestígio moral de Nassau tolhia: a população assombra-se diante de tanta ganância holandesa; volta-se à intolerância religiosa; a indisciplina campeia na tropa; a venalidade corrompe o funcionalismo civil; perseguem-se os lavradores; confiscam-se os engenhos. A liberdade desaparece completamente. As populações fogem e o espírito de revolta, que o príncipe conseguira apagar, desperta e deflagra.

Diante de tudo isso, poder-se-á dizer que, a maravilhosa quadra de esplendor de Pernambuco, se deve ao povo holandês? Não. Devemo-la a um homem e não a um povo, a um homem excepcional que o acaso fez a Holanda possuir naquela interessante fase histórica.

E, tanto é a um homem e não a um povo, que, mal Nassau se retirou de Pernambuco, tudo que havia de grande desapareceu.

O povo holandês não teve forças para suster nos ombros tão largo e belo legado. Não havia nascido para missão tão alta.

E a missão do holandês, no Brasil, não foi outra senão aquela por ele mostrada, ruidosamente, depois da retirada do príncipe – mercadejar.

A Companhia das Índias Ocidentais só via, no Brasil, uma boa estrada para um rendoso salteio. E tanto fez, que desgostou Nassau, unicamente porque Nassau vira Pernambuco, não através do prisma de um comerciante, mas com olhos de estadista e de homem d’arte. A companhia nunca perdoou ao príncipe o dinheiro gasto em obras, no Recife. Muito se zombou dos palácios erguidos pelo gosto artístico de Nassau, na capital pernambucana.

Pela alma da Holanda nunca passou a mais vaga intenção de formar um povo no Brasil. A Companhia foi organizada apenas para explorar o povo do Brasil.

E a impressão trazida através da história é uma impressão dolorosa. Nos menores movimentos do povo holandês, em Pernambuco, sente-se a pressa de arrebanhar e de arrecadar, o mais rapidamente possível, como uma cena de roubo. Parece que a gente flamenga não tinha a consciência do seu domínio. Tem-se a sensação de que a sua consciência era a de haver um dono maior do que ela e, que, esse dono, de um momento para o outro, a alijaria.

O povo holandês nunca amou um só pedaço do Brasil. Uma das acusações atiradas a Nassau, pelos seus compatriotas, é de que ele “construía palácios em terra alheia”.

Somente o espírito mercantil dominava.

E, afirmar-se isso, não é infamar as intenções neerlandesas. É o próprio Nassau quem assim se exprime, no seu célebre “Testamento político”, quando diz que os compatriotas “amavam os bens de fortuna mais do que a própria vida”.

A colonização flamenga falhou em todos os sentidos. A incapacidade holandesa patenteou-se em todas as modalidades.

O português colonizou o Brasil com a sua proverbial rudez. Foi áspero e muitas vezes cruel. Mas o flamengo teve todas aquelas crueldades e mais a intolerância e mais o espírito do ganho que devastava tudo.

Não há, na colonização portuguesa do Brasil, uma página tão negra como a da história de Pernambuco holandês, após a retirada de Nassau. Quanto à moralidade, é confrangedora. Os empregados da Companhia vendem-se miseravelmente, a justiça anda em leilão, os lares são profanados, sem que a gente tenha a quem se queixar.

Os sucessores do príncipe roubam tanto que são levados à Holanda sob a carga de processos.

Nem para solucionar as crises financeiras, a Holanda mostrou capacidade. Quando a situação se tornou difícil, a medida genial tomada pelo Conselho dos Dezenove não foi senão esta coisa vulgaríssima: aumentar incrivelmente os impostos e arrecadar os atrasados.

Foi uma época tremenda na terra pernambucana; os engenhos eram despejados e vendidos, para poder seguir dinheiro para a Holanda; a miséria campeava em todas as regiões laboriosas do Brasil holandês.

A tal liberdade do comércio que, segundo se diz, era o motivo das conquistas flamengas na América, nunca passou de uma burla. Só houve liberdade de comércio no tempo de Nassau. O que depois existiu foi o monopólio oficial, mais perro e mais duro que o monopólio estabelecido pela Espanha.

O contraste entre os dois povos – o português e o flamengo – revela-se a todo o instante, na história.

O português, ao vir para o Brasil, vinha estabelecer-se e morar. O flamengo apenas aqui esteve – para ganhar.

E daí, os movimentos expansivos de um e a ação restrita e mesquinha de outro.

Ao chegar ao Brasil, o primeiro gesto do português era estender-se pelo interior.

A linha do litoral parece pequena para o seu arrojo. E esse movimento de expansão, encontramos logo nos primeiros dias coloniais. Ao aportar ao Rio em 1531, Martim Affonso de Souza, antes de desembarcar a bagagem em São Vicente, manda quatro homens para o fundo da mata, os quais devassam mais de cem léguas. Em Cananéia, sob o comando de Pero Lobo, envia 80 portugueses a transpor as muralhas da Serra do Mar, em procura de prata.

Duarte Coelho desvenda a floresta pernambucana, até quase as nascentes do Capiberibe e do Ipojuca.

No primeiro século do descobrimento já estava desvendado o Tietê, no século seguinte alcançava-se o São Francisco por Jacobina, e, pelo Rio Pajeú, entrava-se no âmago dos sertões pernambucanos até o Piauí.

Em 1638, Pedro Teixeira, partindo do Maranhão, comete aquele episódio de arrojo, que enche de assombro o segundo século da vida brasileira: – sobe o Amazonas em todo o seu curso, entra pelo Napo e vai ter a Quito, no Peru, conquistando terras para El-Rei de Portugal, numa época em que a sua pátria era da Espanha.

Em todos os períodos da história americana, domina, nos portugueses, o espírito da expansão. Mesmo no primeiro século, em que as atividades se voltam todas para a linha do litoral, ei-los a perder-se no planalto brasileiro, à procura dos sertões remotos.

Com o holandês observa-se justamente o contrário.

Encontrando já a linha da costa perfeitamente explorada, não dá um passo além da costa.

O sertão aterra-o; tem o pavor da floresta espessa e inculta. A sua ação restringe-se à beira das praias. O sertão é o desconhecido, é a vida aspérrima e selvagem. Não há nada que explorar, ou melhor, nada a render no sertão.

A famigerada companhia só quer lucros e é no litoral que estão os engenhos e as lavouras, para sugar.

Nunca o pé holandês pisou no planalto brasileiro.

Um drama da grandeza e do desassombro das “Bandeiras” não seria possível com o povo flamengo. Até mesmo uma via natural, com o Amazonas, não atraiu o seu arrojo. Apesar de ter conquistado o Maranhão, o holandês não foi além das bocas do Xingu, que ficam quase às portas do rio-mar.

Tudo isto leva a esta consideração importantíssima para nós, brasileiros. Se o Brasil tivesse ficado nas mãos neerlandesas, não seria este imenso país que vae dos contrafortes de Parima aos afluentes do Prata e que se estende, pelo oeste, até às faldas da cordilheira andina. O flamengo não fora feito para o sertão, e talvez nunca transpusesse as elevações da Serra do Mar.

Se os holandeses tivessem dominado o Brasil, o Brasil seria hoje uma faixa de terra estreita como o Chile. Fatalmente os espanhóis do poente teriam avançado além das nossas fronteiras atuais.

E essa obra de grandeza do território nacional, devemo-la inteira à resistência e aos assomos expansionistas do povo luso.

Não se satisfez com o longo perfil da costa, afundou e desbravou os sertões inóspitos.

Com que intenção, a da fortuna? Não se tem o direito de perguntar. Nunca houve povo que colonizasse pela intenção angélica de fazer nacionalidades. As suas qualidades colonizadoras é que formam povos.

E, quando o português nenhuma outra virtude tivesse, teve essa de dar-nos um território formidável e de fazer-nos uma nação.

Dar-nos-ia isso a Holanda? Até hoje não o deu a nenhuma das suas colônias.

Fonte

  • Lago Filho, Manuel Viriato Correia Baima do. Terra de Santa Cruz: Contos e Crônicas da História Brasileira. 3.ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930. 256 p.

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