Os Fundadores da Glória, O Ermitão Caminha, por Vieira Fazenda
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Grande número dos nossos santuários e templos de hoje deveram a fundação aos chamados ermitãos, indivíduos que fugindo ao bulício do mundo buscavam a solidão das brenhas, e ali, construindo pequenos nichos ao santo ou santa de sua devoção, passaram o resto da existência na prece, olhos volvidos para as coisas do Céu.
Houve os conscienciosos, honestos e abnegados, que representaram perfeitamente seu papel e, no meio de todas as privações, souberam aumentar o patrimônio adquirido à custa das ofertas e esmolas dos fiéis e dos devotos.
Serve de exemplo esse Pedro Ribeiro, que recolhido (1672) à Santa Casa desta cidade, depositava, prestes a morrer, nas mãos de seu confessor, minuciosa relação de como gerira os bens, pertencentes ao Bom Jesus de Iguape, de cuja capela fora, por muitos anos, dedicado ermitão.
Sobem, porém, de ponto os aplausos da posteridade para os solitários, que, além de prestar serviços à religião, deram de si provas de alevantado altruísmo, enchendo o tempo da vida com os mais nobres exemplos de abnegação e de caridade.
Quem há que respeitoso se não curve ante a memória de um Anchieta, de um Estanisláo de Campos, de um frei Fabiano de Cristo, de um frei Chagas, do ermitão do Caraça, frei Lourenço de Nossa Senhora, antes Carlos de Mendonça Távora ou, enfim, do irmão Joaquim, o Vicente de Paulo brasileiro?
Caíram-nos da pena estas palavras, ao reler, há dias, o mimoso romance do inolvidável José de Alencar – O Ermitão da Glória, onde o tipo de Caminha é apresentado por modo aceitável na lenda e no romance, mas em contradição com os documentos existentes, os quais de sua vida dão ideia muito diversa.
Já em 13 de Maio do ano corrente e a propósito da estátua do benemérito visconde do Rio-Branco, algumas notas apresentamos neste mesmo jornal, com referência à topologia do bairro da Glória.
Ali, como é sabido, em 1671 fundou o ermitão Antônio Caminha modesta ermida sobre o antigo outeiro de Lerype, que em 1699 foi doado pelo proprietário Dr. Cláudio Grugel do Amaral para patrimônio de Nossa Senhora, cuja festa tradicional se realizou há pouco.
Convém, aqui, mais uma vez repetir – o morro de Lerype foi nos primeiros tempos o nome do atual morro da Glória, e não como erradamente se vai repetindo do atual morro da Viúva. Para prová-lo basta citar a sesmaria, concedida pela Câmara ao sapateiro Sebastião Gonçalves, onde a expressão por trás do morro de Lerype indica perfeitamente a hoje praia do Flamengo, a qual teve em tempo também o nome do supracitado Gonçalves.
Pondo em contribuição o que lemos no Sanctuario Marianno, cujo 10º volume é baseado nas informações ministradas por frei Miguel de S. Francisco, e em documentos apensos aos autos de antiga demanda, chegamos a esta conclusão:
Antônio Caminha não foi totalmente desapegado dos bens do mundo; proprietário de vastos terrenos, teve descendentes, a quem legou os haveres e, salvo melhor juízo, não podia ele ser o anacoreta tal como o pinta a fantasia de poetas e romancistas.
Entre os filhos do nosso ermitão encontramos o padre João Caminha, que, por deliberação da Mesa da Misericórdia, em data de 1º de Abril de 1701 foi eleito capelão do coro, sendo provedor o Dr. Cláudio do Amaral (livro 3° dos Acórdãos, pág. 38).
Segundo o cronista Santa Maria (tomo 6º), era Antônio Caminha natural de Aveiro, passou ao Brasil, fixando residência no Rio de Janeiro, onde, apartado da cidade sem ambição de ouro, andava vestido com o hábito da Ordem Terceira de S. Francisco. Aqui edificou tosca ermida, em que colocou a imagem de Nossa Senhora da Glória por ele mesmo fabricada, pois era por arte, curiosidade, ou natural gênio, insigne escultor.
Sem, todavia, mencionar o frade o motivo da imprevista mudança, resolveu-se Caminha a regressar à terra natal, levando consigo, para oferecer ao rei Dom João V, outra imagem perfeitamente igual à que já era venerada no Rio de Janeiro. Nesta faina levou dois anos, sendo ajudado por dois mancebos flamengos, que indicaram ao ermitão o local, onde acharia madeira apropriada. À custa dos devotos mandou fazer para a segunda imagem uma coroa de prata, e três anéis para oferecer um ao rei e os demais à rainha e ao infante Dom Francisco. Tratou de embarcar, levando a imagem dentro de um grande e pesado caixão, aproveitando-se do navio Falcão, cujo comandante era Manuel da Rocha Lima. Os engrossadores e intrigantes foram dizer ao bispo (naturalmente Dom Francisco de São Jerônimo) que Caminha queria fugir levando joias pertencentes à primeira imagem – a do Outeiro.
Tal guerra lhe fizeram, diz o cronista, ou lhe moveu o Demônio, que o prelado o mandou prender e deter! Enquanto ia Caminha caminho da cadeia, singrava o Falcão, levando em direitura a Lisboa o precioso depósito. Corria o ano de 1708, quando isto aconteceu, e no dia de S. Thomé violenta tempestade arrojou o navio de encontro às costas do Algarve. Depois de muitas peripécias foi o caixão respeitado pelas ondas e apareceu entre os rochedos da cidade de Lages. Ali, os Capuchos de S. Francisco apanharam o caixão e abrindo-o verificaram nada ter sofrido a imagem de Nossa Senhora. Colocaram-na no altar do convento, e é por isto que a imagem da Virgem da Glória daquela cidade é perfeitamente igual à da cidade do Rio de Janeiro. Isto não combina com o que diz o mesmo frei Agostinho, no tomo 10º do Sanctuario Marianno. Neste refere que Caminha, por esse tempo, vivia satisfeito com a ermida do morro, onde residia; pois observava que graças à doação dos fiéis, se tratava de edificar mais sólida capela em substituição da primeira feita de taipa de mão.
Quanto a nós o eremita permaneceu no Rio de Janeiro, cuidando da vida e continuando a ser possuidor de terras no local, onde mais tarde foi edificado o Convento da Ajuda. Consta isto de uma carta de sesmaria, passada por Gomes Freire de Andrade, em 6 de Abril de 1729, em favor de Francisco Cordovil de Siqueira, filho do capitão de infantaria Antônio Vaz Gago. Nesse documento existente no Arquivo Público (volume 3º, Ordens religiosas) citam-se chãos no Campo de Nossa Senhora da Ajuda, defronte da chácara que foi do Ermitão Antônio Caminha.
O histórico desses terrenos poderia ser por nós feito à vista dos autos supra mencionados, mais detidamente do que é referido na Chronica Geral do Dr. Mello Moraes pai, onde o ilustre historiógrafo dá a Antônio Caminha o título de padre. Nunca foi sendo verdade que acrescentou aos dois nomes o apelido Gloriano, com que assinou documentos cujas cópias tivemos ocasião de ler.
Por agora, limitamo-nos a dizer que essas terras provinham de duas sesmarias, concedidas em 1573 aos mercadores Nuno Tavares e Francisco Raposo. Não tendo sido aproveitadas e caindo em comisso, foram de novo concedidas a Lopo Fernandes Carneiro, cujos herdeiros as venderam a Caminha.
Este não as vendeu, como pretende o velho Moraes, mas deu-as em dote à sua filha, casada com Sebastião Mendes do Rosário, o qual, por sua vez, mais tarde as deu, também em dote, a uma filha, Mariana Rosa da Silva, esposa de Manuel Fernandes da Costa; e destes ainda por herança, passaram a Dona Maria de Jesus, casada com Alexandre Tavares da Silva, e à sua irmã, Helena Maria de Assumpção, bisnetas de Antônio Caminha Gloriano.
Além da escritura de doação feita por Sebastião Rosário ao genro Costa, em 27 de Novembro de 1737, lemos os seguintes e curiosos apontamentos: “Fui casado no Rio de Janeiro com Antônia da Glória Rosa, filha de Antônio Caminha. Deu-me meu sogro metade de umas casas de pau a pique com 58 braças de chãos, que correm até o mar salgado perto de N. S d’Ajuda; comprei a outra metade de casas a meu concunhado Francisco Cordeiro, casado com Helena de Faria, por 300$000, que deixei na mão de meu sogro por estar de viagem para Minas Gerais, e ele dito meu sogro as comprou em meu nome e as pagou com meu dinheiro, como consta da escritura que está no cartório de Fuão Godinho que morava adiante de N. Senhora do Parto, indo para a Ajuda, como tudo bem sabe meu cunhado padre João Caminha. Faleceu minha mulher, foi seu testamenteiro o dito João Caminha, que fez inventário dos bens, dos quais ficou de posse o referido padre, de que deve dar conta, etc.
“Sobre as terras das casas pôs demanda a Irmandade da Glória ou a Câmara para se fazer o açougue. Houve sentença a nosso favor – tanto no Rio como na Bahia e como a dita sentença pode servir de arresto ao Ermitão da Glória, que pode pedir o que lhe não pertence – é o que me lembra por ora. Santos, 15 de Março de 1738.”
Quem seria este ermitão da Glória (naturalmente sucessor de Antônio Caminha) que demandava com os herdeiros do Gloriano sobre terras do patrimônio deles?
A escritura de 2 de Fevereiro de 1713, em que figura Antônio Caminha comprando em nome do genro Sebastião do Rosário, à filha Helena e a seu marido Francisco Cordeiro, é mais ou menos do teor seguinte: “comprava metade de uma morada de casas formadas em 14 braças de testadas, sitas no caminho e estrada ou rua que vai de Nossa Senhora da Ajuda para o boqueirão da Carioca e assim mais a metade dos chãos pertencentes às ditas casas em thé ao combro de areia d’onde batte o mar do dito boqueirão, que havia dado como dote o mesmo Caminha à sua filha Helena, a qual metade das casas de taipa de mão vendiam a seu sogro e pai Antônio Caminha por trezentos mil réis.”
Longe iríamos nestas simples notas, se quiséssemos tratar de todas as peripécias com relação às terras da chácara de Caminha Gloriano. Passaremos por alto a decantada demanda entre as religiosas d’Ajuda e Fernandes da Costa, a qual só pôde ser terminada depois de sessenta anos, por acordo entre as mesmas religiosas e a bisneta de Caminha. Anna Joaquina de Jesus (10 de Julho de 1811).
A conclusão a tirar de todo este aranzel é que o nosso ermitão foi pelo menos um bom pai de família, e que no meio da vida contemplativa não descurava das causas terrenas, conservando e melhorando as terras de seu patrimônio particular.
Sua memória deve ser grata à Irmandade da Glória do Outeiro, a qual, anualmente, manda celebrar missas em sufrágio de seu primitivo fundador.
O mesmo não acontecerá, no Convento d’Ajuda, onde a lembrança do ermitão da Glória e de seus descendentes não será tão prezada, tantas foram as inquietações, os sustos, as picardias, as tricas por eles causados às dignas e santas religiosas, as quais se viram envolvidas nas malhas dos provarás, sentenças, embargos, agravos, vistorias, apelações, etc., etc.
Falta-nos espaço para tratar do doador do outeiro da Glória. o Dr. Cláudio G. do Amaral Grugel, e não Gurgel, pois assim se assinava ele nos documentos da Santa Casa da Misericórdia, da qual foi importante provedor.
A vida desse homem, que nos últimos tempos se ordenou in sacris, merece atenção e pode ser, até certo ponto, estudada nas Consultas do Conselho Ultramarino (arquivo do Instituto Histórico). Rico, gozando de influência e tendo exercido vários cargos, faleceu desastradamente, vítima dos ódios e paixões do tempo.
Tal assunto ficará para a próxima semana.
19 de agosto de 1902.
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Mapa – Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro