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Os Fundadores da Glória, Cláudio Grugel do Amaral, por Vieira Fazenda

Praça Paris com o Outeiro da Glória ao fundo
Praça Paris com o Outeiro da Glória ao fundo

O antigo morro de Lerype (hoje outeiro da Glória), no qual Antônio Caminha fundara a ermida dessa invocação, pertenceu à sesmaria de Julião Rangel de Macedo, cujos herdeiros o venderam à família Rocha Freire.

O último possuidor, Gabriel da Rocha Freire, por sua vez o vendeu ao Dr. Cláudio Grugel do Amaral.

Por escritura de 20 de Junho de 1609, este último fez doação à Irmandade de Nossa Senhora da Glória: do referido morro, para nele edificar-se uma ermida, que fosse permanente e não sendo assim ficaria revogada a doação, e com a condição de que na referida ermida lhe dariam sepultura a ele doador e a todos os seus descendentes e a quem lhes parecesse.

Para patrimônio da santa fez também doação de terras, no sopé do morro, as quais, ele Amaral, por escritura de 18 de Fevereiro de 1687, comprara a Manuel Lopes Carrilho, filho de João Lopes.

Consistiam em 100 braças, na praia da Carioca, chácara denominada ORIENTE, partindo do lado direito com terras da Carioca.

Nessas redondezas existia, de há muito, um pequeno forte.

Na correção, a que procedia o ouvidor geral, Dr. João de Abreu e Silva, em 3 de Outubro de 1669, o procurador e mais oficiais do Conselho requereram que no caminho, “que vai para a Carioca, na ponta do outeiro de Nossa Senhora do Desterro, na ponte da Chácara DO LIVREIRO, havia uma estrada pública, onde estava um reduto, que caía para a praia, e, porquanto o possuidor da chácara que foi do defunto João de Abreu Rangel, Capitão que foi da fortaleza de S. João, tinha tomado o caminho, o reduto e a estrada pública, requeriam ao dito ouvidor, fosse fazer vistoria, em presença da Câmara, citadas as partes, e se restituísse ao Conselho, assim o dito caminho, estrada e reduto, como o que se tivesse tomado de chão do Conselho, e o ouvidor assim o mandou” (Arquivo Municipal, tomo 2º, pagina 571).

Abrindo um parêntese, digamos que perto da base do morro da Glória, dominando a praia de Sapucaitóba (hoje do Flamengo), existiu também outro pequeno reduto conhecido pelo nome de forte de Manuel Velho; desses dois fortins, em 1799, era comandante o ajudante engenheiro Antônio de Sousa Coelho.

Nas terras pertencentes à viúva de Manuel Velho, havia estabelecido horto botânico um certo boticário Paiva, onde, com vantagem, eram cultivados a árvore da cochonilha e outros vegetais.

Na conta sobre a fortificação e artilharia e mais Fortalezas da praça e armazéns do Rio de Janeiro, mandada à metrópole em 2 de Março de 1718 pelo governador Antônio de Britto Meneses, vemos que o forte da Carioca ou da Glória estava desguarnecido e não merecia, pela posição, grande importância. Assim, porém, não pensava o governador D. Álvaro da Silveira de Albuquerque, quando por patente de 12 de Março de 1703 nomeava capitão da referida fortaleza Cláudio Grugel do Amaral.

Nesse documento, D. Álvaro fazia sentir a necessidade de tratar da maior defesa do Rio de Janeiro, a qual o movia a mandar reedificar o forte de Nossa Senhora da Glória, sito na praia da Carioca, feito antigamente de barro e então completamente arruinado, no qual devia residir pessoa por capitão, para que com o seu respeito e cuidado dê calor a que o dito forte se ponha em sua última perfeição, concorrendo tais requisitos, na pessoa de Cláudio e o de ser uma das principais desta cidade e nele atualmente morador, resolvia fazê-lo capitão do referido forte, com a cláusula que o mandaria reedificar de pedra e cal, à sua custa pela circunferência do que antes era de barro.

Na fé de ofício de Amaral, resumida nessa patente, podemos colher alguns dados biográficos com relação a esse grande benfeitor da Glória do Outeiro.

Assentou praça de soldado na companhia do capitão D. Gabriel Garcez Gralha, desde 1º de Março de 1682, até 1º de Agosto de 83, donde passou a companhia do capitão Francisco Munhoz Corrêa em que continuou até 30 de Setembro de 1686. Pelos governadores Pedro Gomes Duarte Teixeira Chaves (1682-1686) e João Furtado de Mendonça (1686-1689)foi o mesmo Cláudio Amaral, provido nos cargos de provedor da Coroa e Fazenda real, e depois por Sebastião de Castro Caldas, nos de provedor da Fazenda real, juiz da alfândega e contador dela, procedendo sempre com grande zelo e desinteresse, havendo antes ocupado por suas letras e merecimento os honrados cargos da República: de juiz, vereador e escrivão da Câmara. No ano de 1695, vindo cinco navios franceses e entrando três deles no porto desta cidade, prevenindo-se o referido governador Caldas e mandando agregar as principais pessoas às companhias de guarnição e ordenanças, foi o dito Amaral uma delas e assistiu por decurso de um mês à tomada dos mantimentos para os ditos navios com todo o cuidado e desvelo.

“Do mesmo modo, quando o nomearam por cabo de uma patrulha da defesa da praia de Santa Luzia, lugar dos mais arriscados e perigosos, observando o que se lhe encarregava, com conhecida resolução e pontualidade, dando por este modo exemplo aos que o seguiam, e pedindo o dito governador uma contribuição para as fortificações e quartéis, acudiu com madeiras e liberal donativo de dinheiro, na ocasião em que, vindo um dos capitães das naus francesas, com lanchas e gente a tirar duas pessoas da referida nação, da cadeia da cidade, foi entre os moradores que acudiram ao assalto o dito Cláudio um dos primeiros que com grande valor e destemido ânimo se pôs em defesa contra os inimigos. Ultimamente obrou como bom soldado no meter das guardas, fazer ronda e sentinela com sua pessoa e seus escravos.”

Até aí o amor pela causa pública. Do zelo religioso de Cláudio Grugel temos as provas no seguinte: como ministro da Ordem Terceira da Penitência serviu durante os anos de 1701-1703.

Inscrito irmão da Misericórdia em 30 de Março de 1683, foi mordomo dos presos, escrivão e mais tarde eleito provedor nos anos compromissais de 1703-1704-1705. Entre os muitos serviços deliberou alargar a velha igreja da Santa Casa, obtendo concessão da Câmara para inutilizar um beco sem serventia, o qual existia do lado direito do templo.

Não nos foi possível saber onde e quando recebeu Grugel do Amaral o grau de doutor, nem tão pouco a época em que, naturalmente depois de viúvo, tomou ordens. Diz Pizarro que se ordenara in sacris, já de idade madura.

Cremos o fizesse para fugir às perseguições, em que o envolveram os ódios suscitados por pessoas de sua importante e rica família, máxime seus dois filhos,

Em 1708, eram irreconciliáveis inimigos o ouvidor geral João da Costa Fonseca e o juiz de fora Hipólito Guido, os quais tinham, por partidários, importantes moradores da cidade, divididos em dois grandes grupos. Da facção Guido fazia parte o Dr. Cláudio do Amaral, que em uma noite, saindo de sua chácara, em companhia de Domingos Dias de Aguiar e um menino, foi atacado por vários embuçados com bacamartes – falecendo Aguiar e o referido menino.

Em carta de 20 de Janeiro de 1708, o juiz de fora, perante o Conselho Ultramarino, acusa o ouvidor como mandatário do atentado. Em missiva de 3 de Fevereiro, o mesmo juiz queixa-se de que em certa noite os parciais do ouvidor pintaram a casa com tinta pouco cheirosa, pondo-se-lhe demais duas pontas de boi, sendo ele um magistrado sério e casado!

Pela consulta do Conselho de 6 de Fevereiro de 1709, vemos que Guido não escapou à sanha de seus inimigos, sendo mortalmente ferido em outra noite. Em 18 de Fevereiro de 1709, é nomeado para sindicar de tão singulares acontecimentos o desembargador Antônio da Cunha Souto Maior. O próprio governador D. Fernando Martins acusava o ouvidor de mau procedimento e parecia favorável aos partidários do juiz de fora.

Com as duas invasões francesas, parece, serenaram os ódios, para depois recrudescerem.

Um dos filhos do D. Cláudio, de nome Francisco Grugel do Amaral, indiciado como suspeito no assassinato do provedor da Fazenda, Pedro de Sousa Pereira, graças aos seus haveres e grande proteção, vivia incólume. Pretendeu mesmo ser nomeado para o referido cargo, chegando a oferecer a quantia de quarenta mil cruzados para construção da fortaleza da ilha das Cobras. O governador D. Francisco de Távora informou favoravelmente, mas teve de ceder diante da atitude enérgica do Conselho Ultramarino. Francisco Grugel é preso e enviado a Lisboa. Na devassa é envolvido o pai, que teve os bens sequestrados, sendo, todavia, esse sequestro levantado, segundo inferimos do 1º volume das Publicações do Arquivo Público. Pela consulta de 25 de Janeiro de 1715 consta que, acusado o próprio Dr. Cláudio da morte de um sargento, foi declarado livre de culpa. O negócio é afeto ao bispo, que, parecendo proteger o padre Amaral, dá-lhe comissões importantes na zona da diocese.

No Conselho o desembargador Antônio Rodrigues de Castro chama a atenção do Governo para os membros dessa família “pelo grande temor que a todos têm infundido justamente pelos horrores das mortes e violências, com que esta família dos Amarais se tem feito temer em todo o Brasil, vingando a mais leve ofensa com mortes e tiranias.” Houve até quem chegasse a propor a deportação ou extermínio, como então se dizia, do velho sacerdote, antigo capitão do fortim da Glória!

Em carta dirigida ao Conselho Ultramarino, narra o ouvidor geral, Fernando Pereira de Vasconcellos: que no domingo de Ramos (de 1716) José Pacheco com José Grugel (outro filho do Dr. Cláudio), acompanhados de vinte ou trinta capangas brancos e negros escravos, invadiram a igreja de Campo Grande, onde se achava João Manuel de Mello, homem principal do lugar, que também estava cercado por seus satélites. Travada a luta, caiu João de Mello banhado em sangue. O celebrante deixa o altar e vem confessar o moribundo; é também atacado e morto a tiro de bala. O pequeno templo ficou maculado de sangue, vendo-se nos altares e retábulos sinais evidentes dos projéteis. A todos causava horror tão triste espetáculo!

A viúva de Mello vem à cidade trazendo o cadáver da vítima, afim de reclamar justiça. O governador declara réus de morte a Amaral e a Pacheco, e publica um bando prometendo grandes recompensas a quem os trouxesse vivos ou mortos.

Além disso, manda arrasar a casa do Dr. Cláudio, onde julgava estarem acoitados os mandatários dos horrorosos e sacrílegos atentados. Tropas cercam o engenho de Francisco Viegas, pai de Pacheco; sentinelas são postadas nas estradas, que conduzem a Minas e São Paulo. Há diversos encontros, em que são feridos alguns soldados e pessoas do séquito dos criminosos, que haviam fugido para os matos.

A população da cidade fica em alvoroço e propõe-se a tirar desforra dos parentes de Amaral.

Estavam as coisas nesse pé, quando, saindo às 11 horas da noite o padre Cláudio em companhia de seu parente o padre Inácio Corrêa, foram atacados de emboscada por um grupo de populares. O padre Inácio faleceu logo e o padre Cláudio, recolhido à Misericórdia, faleceu três dias depois, vítima dos ferimentos por arma de fogo.

Ignoramos se seus restos mortais foram inumados na Santa Casa, ou se foram levados à capela da Glória (segundo o disposto na escritura da doação), pelos irmãos da confraria.

Essa dúvida toma vulto quando pelo capítulo 12º do Compromisso lemos: “os irmãos desta Irmandade não acompanharão os irmãos defuntos à sepultura por causa da distância que há da cidade à igreja.”

Naturalmente, em favor do ilustre morto, foi aberta exceção.

Ele a mereceu como grande benfeitor que havia sido do patrimônio de Nossa Senhora da Glória do Outeiro.

26 de Agosto de 1902.

Fonte

  • Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).

Mapa – Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro