Bispo São Jerônimo, por Vieira Fazenda
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I
Das 10 para as 11 horas da noite de 7 de Março de 1721 falecia nesta cidade o terceiro bispo diocesano Dom Francisco de São Jerônimo, a quem o rei de Portugal, D. Pedro II, chamava de Santo Jerônimo.
Foi sepultado no presbitério da capela da Conceição, no morro do mesmo nome, anexa ao palácio hoje arquiepiscopal.
Sobre a pedra da sepultura ainda se pode ler singelo e resumido epitáfio: Sub tuum praesidium.
Natural de Lisboa, filho de Francisco de Andrade e Mello e de D. Isabel da Silva, desde verdes anos manifestou Francisco talento natural e grande pendor para os estudos. Entrando para o Grêmio dos Cônegos Regulares de São João Evangelista, ali cultivou a Oratória, a Filosofia e a Teologia.
Tornou-se depois apreciado pregador, sendo seus sermões impressos pelo conde de São Vicente Miguel Carlos, íntimo amigo de São Jerônimo.
Recebido o grau de doutor pela Universidade de Coimbra, nela ocupou a cadeira das Artes, passando depois para a de Teologia, em Évora. Nesta cidade exerceu o cargo de qualificador do Santo Ofício da Inquisição.
Vaga a Sé do Rio de Janeiro por morte de Dom José de Barros Alarcão, foi Dom Francisco escolhido bispo em 10 de Dezembro de 1700. Confirmado pelo papa Clemente XI, em 6 de Agosto de 1701, e sagrado por Dom Jerônimo Soares, bispo de Viseu, em 27 de Dezembro do mesmo ano, saiu de Lisboa em 26 de Março de 1702 e chegou ao Rio em 8 de Junho.
Foi seu primeiro cuidado visitar todas as igrejas do recôncavo do Rio de Janeiro e tratar de discriminar os limites exatos entre a diocese de São Sebastião e o arcebispado da Bahia.
Nas Minas Gerais criou 40 freguesias e “para que não ficassem, diz Monsenhor Pizarro, com clérigos de nenhum ou pouco merecimento, por empenhos de pessoas autorizadas, suplicou a El-Rei que os colasse. Apresentadas então 19 paróquias, mandou o soberano por provisão de 16 de Fevereiro de 1718 e carta régia de 16 de Fevereiro de 1724 a que se reuniu o mapa das Igrejas Coladas, que aos párocos nomeados e a seus sucessores se desse da Real Fazenda a côngrua de 200$ anuais, além dos seis vinténs ou 120 réis de ouro determinados a cada pessoa por conhecença ou desobriga da quaresma”.
Naqueles tempos, passado o Carnaval, eram todos, homens e mulheres, brancos e pretos, livres ou escravos, obrigados a confessar-se e a comungar – ir à desobriga. – Para isso pagavam o imposto da conhecença.
Cuidadoso na abundância de ministros suficientes e hábeis para ocuparem os cargos eclesiásticos, por uma pastoral os obrigou o bispo a estudar Moral, e nenhum candidato admitiu a Ordens sem mostrar primeiro que se havia aplicado a essa ciência, por espaço de dous annos, apresentando certidão do mestre de Moral, da Companhia de Jesus.
Está tudo isso na obra do supracitado Monsenhor Pizarro, que entra em grandes divagações sobre os resultados obtidos com as medidas ordenadas pelo diocesano. Teve este sempre a seu lado sacerdotes ilustrados, conhecedores de seus deveres, e sendo os primeiros a dar exemplos de virtudes.
Como já por vezes tenho dito, foi Dom Francisco de São Jerônimo o primeiro bispo que fixou residência no morro da Conceição. Ocupou o Hospício fundado pelos Capuchinhos Franceses, que tiveram de o abandonar por ordem expressa da metrópole.
Aos dois primeiros bispos do Rio havia sido consignada a verba de 120$ por ano para aluguel de casa.
Falecendo o provedor da Fazenda Pedro de Sousa Pereira, houve projeto de comprar para residência dos bispos um prédio sito à Rua Direita, no local onde está hoje o edifício da Associação Comercial. Prevaleceu, porém a ideia de ser adquirido tal imóvel para casa dos governadores. De fato eles ali residiram até o tempo de Gomes Freire de Andrade. Naquela casa, junto à porta da estiva da Alfândega, funcionaram em nossos dias o Correio e a Caixa da Amortização. Para ampliar a casa da Correição obteve São Jerônimo o auxílio de oito mil cruzados, que lhe foram entregues pela Fazenda Real, por ordem de 26 de Fevereiro de 1707.
Compulsando o catálogo dos governadores do Rio de Janeiro, vê-se que Dom Francisco de São Jerônimo ocupou interinamente por três vezes tão alto cargo. Na primeira, quando deixou a governação Dom Álvaro da Silveira de Albuquerque; na segunda, por ausência nas Minas de Dom Fernando Martins Mascarenhas de Alencastre; e na terceira, por ausência de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, quando também foi às Minas, durante as lutas dos Paulistas e Emboabas.
Desejando transformar o antigo Recolhimento da Ajuda em casa conventual, obteve do Governo faculdade de levar avante seu projeto, por provisão de 19 de Fevereiro de 1705. Como já escrevi quando tratei do Convento da Ajuda, esse intento só foi realizado muitos anos depois.
Entre as cláusulas da citada provisão notarei as seguintes: que o convento constaria de 50 freiras somente, podendo entrar nesse número algumas das conversas do antigo Recolhimento; que as religiosas não poderiam herdar nem adquirir bens, por título algum; que elas seriam dotadas vitaliciamente, dando-se para sustento de cada uma oitenta mil réis por ano, quantia que se estabeleceria em bens seguros e permanentes; que por falecimento de cada freira o dote passaria a seus pais ou parentes; que o Convento ficaria sujeito ao Ordinário; que as freiras professariam a regra franciscana e não conservariam criadas consigo. «Essa condição final, cuja observância seria mui profícua, não subsistiu, por dispensarem repetidos breves a restrição fundamental; e dessas dispensas concedidas amplamente se tem originado no interior do Claustro muitas desordens por patrocinarem algumas das religiosas os desconcertos das suas escravas ou criadas, dando motivo a desavenças, que cessariam com o corte de suas raízes».
Não vem aqui a pelo tratar dos esforços empregados pelo bispo acerca da mudança da Sé, do Castelo para São José e Cruz. Ficará isto para quando me ocupar da igreja do Rosário.
Por ocasião da invasão de Du Clerc (1710), obtida a vitória de 19 de Setembro, dia de São Januário, ordenou Dom Francisco que se guardasse sempre esse dia memorável, ordenando uma procissão que se realizaria todos os anos.
No ano seguinte, é o Rio de Janeiro invadido por Duguay-Trouin. O bispo abandona seu palácio e refugia-se nas furnas da Tijuca, conhecidas até hoje por pedras santas. O invasor, sem mais cerimônia, apoderou-se do palácio abandonado e aí estabeleceu seu quartel general!
Assevera Pizarro que o bispo tivera permissão para se retirar para Portugal. Houve engano da parte do autor das Memórias Históricas. De documentos existentes no Instituto Histórico consta: o prelado insistia por sua retirada, alegando moléstias que só cederiam com a mudança de clima. Da metrópole mandavam lhe dizer que ficasse, por que aqui havia tão bons médicos como em Portugal, e os ares eram muito saudáveis, etc.
Como é sabido, foi São Jerônimo quem lançou a primeira pedra da capela fundada por frei da Costa Barros (hoje Bom Jesus do Calvário), bem como a de Santa Rita, levantada por Manuel Nascentes Pinto.
Dois fatos citados por Pizarro e extraídos das memórias dos cônegos José Joaquim Pinheiro e José de Sousa Marmelo justificam a fama de santo, de que gozou a bispo entre seus contemporâneos.
“Sucedendo na viagem de Lisboa, em altura pouco distante do Rio de Janeiro, que descuidadamente se comunicasse fogo a uma porção de alcatrão e com rapidez se ateasse aos mastros do navio, buscando salvação os aflitos navegantes sem a menor esperança de remédio; foi tão firme a fé destes na eficácia das orações e benção do bispo, que como seguros de escapar do perigo recorreram à sua proteção. Assim se efetuou; porque a deprecações de seu servo, instantaneamente terminou Deus o incêndio e a nau ficou livre de todo o risco.”
Outro: “residia com a família do mesmo bispo um Antônio Gonçalves, homem pobre, mas de bom proceder, que por tempo dilatado padecia moléstia grave em uma das pernas, cuja amputação se esperava, como último remédio. Em tais circunstâncias foram administrados os sacramentos ao enfermo, antes do dia marcado para a operação. Como as dores fossem contínuas, passava o pobre Gonçalves, noite e dia, em altos gritos, que atravessavam o terno coração de seu benfeitor, por quem foi mandado levar em braços à capela, para suplicar o alívio. Posto o enfermo nos degraus do altar da Conceição, ali o persuadiu o bispo a ter segura fé em tão prodigiosa protetora. Com o óleo da lâmpada untou a perna do enfermo. Sem outro beneficio, como se dissesse – surge et ambula[1], amanheceu Gonçalves são, autenticando as virtudes de tão prodigioso médico, por cujas preces ficara livre da moléstia e de padecer ao menos a diminuição da perna”.
Ninguém hoje nega fosse Dom Francisco de São Jerônimo, justo e moderado, exemplar em virtudes, prudente, cândido, liberal, protetor de viúvas e donzelas, pai dos órfãos, amparo de desvalidos, esmoler, repartindo até seu pão com enfermos, etc., etc.
Assim, porém, não pensariam os infelizes, a quem perseguiu por serem cristãos novos e circular-lhes nas veias sangue judeu ou professarem as doutrinas de Moisés!
Foi, de fato, no tempo desse bispo que começou a caça a esses desgraçados, que viam seus bens confiscados, e, ou iam sofrer misérias nos calabouços do Santo Oficio ou morrer queimados nos autos de fé. Começaram então as levas de famílias inteiras, de homens morigerados e honestos lavradores, negociantes, artistas, médicos, advogados e até sacerdotes!
Perseguir descendentes de Judeus era a mania dos tempos. Intrigar e denunciar inocentes era a tarefa dos engrossadores e hipócritas da época.
Por isso bem fizeram alguns cristãos novos escapando à hidra da Inquisição. Quando foi da invasão de 1711 fugiram da cadeia e acoutaram-se nos navios de Duguay-Trouin, que os levou para França. Antes a expatriação do que correr o risco de ser assado em vida.
Perdiam tudo quanto tinham; mas sob a proteção da bandeira de França e longe da terra natal, podiam, livres do susto, dizer: – Vão-se os anéis, mas fiquem os dedos.
7 de Março de 1905.
Nota
- ↑ [Vulgata, Mateus 9.5]. Ergue-te e anda. Fonte: Dicionário de Expressões e Frases Latinas
Fonte
- Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (t. 86, v. 140, 1919; t. 88, v. 142, 1920;t. 89, v. 143, 1921; t. 93, v. 147, 1923; t. 95, v. 149, 1924).
Mapa - Palácio Episcopal no Morro da Conceição