Valentim da Fonseca e Silva, por Moreira de Azevedo

Nasceu Valentim da Fonseca e Silva na província de Minas-Gerais, foi seu pai um fidalgo português contratador de diamantes e sua mãe uma pobre mulher oriunda do Brasil; ignora-se o dia e o ano de seu nascimento. Em companhia de seus pais dirigiu-se à Portugal, onde dedicou-se à arte da qual devera ser fiel e inspirado intérprete. Falecendo seu pai voltou para a pátria com sua mãe, sem ter concluído seus estudos artísticos; de Portugal trouxe o sotaque minhoto que nunca mais perdeu.
Pobre, tendo de tirar do trabalho o sustento quotidiano para si e sua mãe entregou-se Valentim, com toda a valentia de seu talento e a energia da mocidade, ao estudo da escultura e obra de talha.
Seguira no Rio de Janeiro no estudo da arte torêutica ao artista, que ornamentou o interior da igreja do Carmo, mas em pouco tempo era o discípulo mais perito do que o mestre; e por quê? Perguntai à providência que cria os artesãos, os artistas, os poetas, os literatos e os sábios.
Conhecido como artista hábil tornou-se sua oficina uma das mais procuradas e concorridas, iam os ourives pedir-lhe desenhos e moldes de banquetas, castiçais, lâmpadas, salvas, ciriais, relicários, frontais e de outros artefatos de primor e luxo. O vice-rei Vasconcellos, seu amigo e desvelado protetor, encarregou-o de todas as obras do Passeio Público e de outros trabalhos, que já foram especificados.
Concluiu Valentim os ornatos do interior da igreja da ordem terceira do Carmo; preparou toda a obra de talha da igreja da Cruz, do altar-mor da igreja do Hospício; fez diversos ornatos para o templo da Candelária, ornou a capela-mor da igreja de São Francisco de Paula, e trabalhava nessa obra quando faleceu; desenhou e modelou as lindas lâmpadas que pendem dos tetos das igrejas de São Bento, Carmo e Santa Rita; e deu o modelo de dois aparelhos de porcelana que, fabricados pelo químico João Manso Pereira, foram admirados em Lisboa.
Era mui religioso, mandava celebrar todos os domingos uma missa à Senhora da Piedade, na igreja do Bom Jesus; e armava na frente de sua Casa, na Rua do Sabão, hoje do General Câmara, um painel para a via-sacra; consagrava à sua mãe profundo respeito, e referiram-nos um fato que patenteia a sua obediência filial.
Apaixonado do belo sexo, e por lhe não haver dado a natureza beleza e elegância no físico, custavam-lhe seus amores, extravagantes e repetidos, muito dinheiro, pelo que mais de uma vez queixara-se da falta de meios, e apesar do que lhe fazia o vice-rei Vasconcellos, murmurava o artista que seu protetor era mais pródigo de palavras que de ouro.
Como reconheciam seu fraco iam algumas mulheres galantear ao artista em sua oficina, e um dia uma delas subiu ao sótão da casa. A mãe de Valentim, mulher de idade avançada e valetudinária, sentiu o farfalhar do vestido nos degraus da escada quando a mulher desceu; chamou o filho e com voz arrogante disse-lhe:
– Esteve no sótão uma mulher, Valentim.
– Não esteve, minha mãe.
– Eu percebi.
– Perdão, balbuciou o filho em tom submisso.
– Pois já que pecaste, ajoelha e reza o credo.
O filho obedeceu, e repetiu aos pés de sua mãe a oração que ela lhe ordenara.
Era homem de cor parda, estatura meã e de semblante feio; usava constantemente de cabeleira, calções, jaqueta e capote cor de vinho, podendo-se ver o seu retrato nos painéis, que estão na sacristia da igreja do Parto, os quais comemoram o incêndio e a reedificação desse edifício.

Achando-se em estado grave de moléstia mandou chamar o seu confessor, um frade franciscano, que, depois de ouvi-lo, absolveu-o, e corridos alguns instantes adormeceu o artista sob as azas negras da morte. Quis a ordem de São Francisco de Paula sepultá-lo em sua igreja, mas ou por determinação testamentária, ou por pedido de algum parente, teve jazigo na igreja do Rosário. O distinto artista falecera paupérrimo, nada encontrou-se em sua casa; serviam-lhe de cama duas tábuas sobre dois cavaletes.
Indagando o ano de seu falecimento dirigimo-nos ao Sr. Braz de Almeida, que fora seu discípulo, e referiu-nos esse velho que seu mestre perecera quatro ou cinco anos depois da vinda da família real para o Brasil, e que seu cadáver fora sepultado na igreja do Rosário; e nos livros de óbitos da freguesia da Sé, estabelecida outrora naquele templo, descobrimos o seguinte assentamento:
“Faleceu em 1 de março de 1813 com todos os sacramentos o morador da Rua do Sabão, Valentim…” Ficara incompleta a declaração do óbito, que devemos crer se refere ao mestre Valentim, visto como residira ele na Rua do Sabão, sucumbira quatro ou cinco anos depois da chegada da família real, e sepultara-se na igreja do Rosário. Acresce que era geralmente conhecido pelo único nome de Valentim, e por isso, feito o enterramento, lavrou o cura a declaração como se lê no livro de óbitos, deixando espaço em branco para enchê-lo quando recebesse outras notícias e explicações que nunca mais vieram.
Deixara diversos discípulos entre outros Francisco de Paula Borges, Braz de Almeida, José Carlos Pinto e Simeão José de Nazareth.
Poucos dias antes de falecer dissera a um de seus discípulos;
– Não temo a morte, mas prezo tanto a minha arte que, ainda depois de morto desejava erguer do túmulo o braço para executar os desenhos que me pedissem.
Em muitas obras levantadas nos tempos coloniais deixou
Valentim gravado seu nome; a harmonia, o gosto, a ordem, a invenção que seus trabalhos apresentam, tornaram-no conhecido como arquiteto no seu tempo, e na arte torêutica como o mais hábil e inspirado artista. Falando de Valentim da Fonseca e Silva diz o distinto cantor do poema Colombo:
“Valentim foi um grande artista, um homem extraordinário para o Brasil daquele tempo, e para o de hoje, e o seu nome deve ser venerado.” [1]
Fonte
- Azevedo, Manuel Duarte Moreira de. O Rio de Janeiro: Sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. 2 v. (É a segunda edição do “Pequeno Panorama” 1861-67, 5 v.).
Nota
- Veja no tomo 32 pág. 235 da Revista do Instituto Histórico a biografia deste artista escrita pelo Dr. Moreira de Azevedo.
Livro digitalizado
Mapa - Monumento ao Mestre Valentim no Passeio Público