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Da descoberta do Brasil, reconhecimento da sua costa até o Rio da Prata, por Balthazar da Silva Lisboa

«O desembarque dos portuguezes no Brazil ao ser descoberto por Pedro Alvares Cabral em 1500» / Roque Gameiro & Conc. Silva. - Lisboa : José Bastos, [ca 1900?] ([Lisboa] : Lith. da Comp. Nac. Editora),
«O desembarque dos portuguezes no Brazil ao ser descoberto por Pedro Alvares Cabral em 1500» / Roque Gameiro & Conc. Silva. - Lisboa : José Bastos, [ca 1900?] ([Lisboa] : Lith. da Comp. Nac. Editora), via Biblioteca Nacional de Portugal

Apenas acabava Portugal de abrir para a Ásia novas relações políticas e de comércio, esclarecido pelo gênio do príncipe d. Henrique, por cuja consumada sabedoria se formaram os mais distintos e memoráveis cidadãos, se elevou a nação, pela navegação, à grande exaltação de glória e prosperidade. Tão felizes efeitos produziram os conhecimentos da astronomia e navegação, pela descoberta da Índia. Pedro Álvares Cabral [1], da mão del-rei d. Manoel, recebeu na ermida de Belém uma bandeira com a cruz levada em procissão, em acompanhamento majestoso do mesmo rei até o cais, com desígnio de segurar na Ásia tão famosas como invejadas conquistas. Ele se fez de vela a 9 de março de 1500, e teve a imortal glória de descobrir o Brasil em 21 de abril do mesmo ano, avistando um alto monte ao sul de Porto Seguro, que teve o nome de Monte Pascoal em razão do dia de Páscoa em que o reconheceu, e Terra Santa Cruz onde fundeou. Depois, desaferrando, e seguindo a viagem dez léguas ao norte, achou a bela enseada que depois tomou o nome de Coroa Vermelha, onde levantou a cruz da redenção, solenizando com missa cantada e sermão pregado pelo religioso frei Henrique, que com os outros ia na esquadra para a Ásia.

Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias, no reconhecimento da nova terra, encontraram os indígenas, que corriam às praias de arcos e flechas, e aos acenos dos novos hóspedes, largaram as suas armas e os receberam com ternura fraternal, como reconhecendo que todos os homens são semelhantes e que Deus, sendo o monarca universal, não criara os mares por barreiras e limites para separar as nações (antes ordenara se multiplicassem e enchessem a face da terra), mas sim para lhes facilitar as comunicações que lhes levariam a variedade dos gozos, que repartiu por cada região, fazendo produzir em desvairados climas produtos diferentes, conservando assim a confraternidade e união, levando uns aos outros os frutos deliciosos de seu país, e os de sua indústria, sorteados por aquela Providência Benevolíssima que de um a outro mar e rios, até à extremidade do orbe, tem derramado a sua bondade para com todos os homens, de quem é o Rei Supremo, Deus Altíssimo e Senhor.

A docilidade dos indígenas, a bondade com que receberam os europeus, levando-os até às suas mesmas choças de pindoba, liberalizando-os dos seus inhames e outras raízes farináceas, apresentando-lhes os seus frutos e caça dos animais e aves de que se sustentavam, ajudando-lhes a carregar a lenha e água para os batéis da esquadra, enchiam de admiração e de um nobre entusiasmo aos portugueses, que estupefatos se maravilhavam da bondade do clima, fertilidade da terra, docilidade dos novos irmãos, bem como da grandeza das árvores, da vastíssima largueza e extensão do território, regado de tantos rios, formoseado de lindas e seguras enseadas. Cheios de sua tão justa admiração, miudamente comunicaram a el-rei d. Manoel tão grato e famoso achado [2], deixando com os naturais dois dos seus degredados no dia 1º de março de 1500, em o qual procissionalmente erigiram a santa cruz com mui notável veneração dos indígenas, que faziam tudo quanto viam praticar os portugueses, recebendo alguns dos seus principais, de presente, uma cruz de estanho, que em seus pescoços lançara com um laço de fita o padre frei Henrique. Gaspar de Lemos foi imediatamente despachado para levar a el-rei tão grata notícia a 25 de maio. Então a esquadra, levantando âncora daquele porto, soltou as velas para seguir o seu destino. Não cabe na expressão significar o alvoroço que uma tão inesperada notícia causou ao rei, a todo o povo e a toda a Europa.

Américo Vespúcio, florentino de nação, foi depois escolhido para ir reconhecer o novo mundo, e esta viagem lhe trouxe a incomparável honra de lhe serem atribuídas tão famosas descobertas, pois que o mesmo novo mundo dele recebeu o nome de América. Aquela viagem teve princípio em 1502, suposto que Osório no livro 2º pág. 89 De rebus Emmanuelis, equivocadamente assinalou naquela data a viagem de Gonçalo Coelho, sendo aliás muito posterior, aportando este a Lisboa depois do falecimento de d. Manoel, que se finou em 1521.

Não estando bastantemente reconhecidas as terras do Brasil por Américo, el-rei d. Manoel as mandou examinar por Gonçalo Coelho, para que verificasse exatamente a sua posição, e preparou para esse fim uma esquadra para tais descobrimentos. Explorou este uma parte da costa brasileira, e consumindo vários anos em tão vastos e úteis exames, voltou a Lisboa, com menos duas embarcações que naufragaram, e entregou a d. João III as relações e cartas das suas viagens, as quais o mesmo rei aprovando, as mandou prosseguir debaixo das mesmas vistas por Cristóvão Jacques, fidalgo da sua casa.

Os nossos escritores, (Vasconcelos, nas Notícias do Brasil, liv. 1º nº 19, pág. 16; Joboatão, no preâmbulo 3, est. 3 nº 37, pág. 28; Pita, na História da América, liv. 2º nº 1, pág. 67), referiram que Cristóvão Jacques, depois de navegar uma boa parte da costa brasílica, surgindo em vários portos, descobrira a Baía, a quem deu por tão feliz anúncio o nome de Todos os Santos; e que, penetrando e examinando o seu recôncavo, encontrara duas naus francesas no rio de Paraguaçu, carregadas de pau-brasil, em tráfico com os indígenas, e que as metera no fundo por se não renderem pacificamente. É, contudo, certo que naquela viagem levantou Jacques uma feitoria na terra firme, junto à foz de Itamaracá, pois que desta el-rei d. João III faz menção na carta de doação da capitania dada a Pero Lopes.

Suposto que as notícias comunicadas por aqueles tão dignos cosmógrafos portugueses dessem bastantes conhecimentos da costa setentrional, eram todavia escassos os dos mares e continentes ao sul da baía de Todos os Santos até o Rio da Prata, onde se diz que chegara Américo Vespúcio. Isso moveu e inflamou o constante entusiasmo daquele soberano, pela sua glória e felicidade nacional de mandar explorar à custa do tesouro, por Martim Afonso de Sousa, pessoa distinta pelos seus serviços e nobreza qualificada, descendente da família dos Sousas, que recebeu ordem para povoar o país que descobrisse e conceder sesmarias aos povoadores. E assim lhe foi outorgado pelo alvará de 20 de novembro de 1530. Ele se embarcou e se fez de vela imediatamente para o Brasil, o que consta da carta régia de 23 de setembro de 1532, acusando o recebimento da que lhe escrevera o mesmo benemérito capitão-mor, por via de João de Sousa, onde dera notícia da sua feliz chegada ao Brasil, e que ia correndo a costa do Rio da Prata, dizendo-lhe el-rei que no ano antecedente tinha mandado apressar um navio para voltar João de Sousa a ter-se com ele. Conseguintemente, já ele em 1531 estava no Brasil, correndo a costa para o Rio da Prata.

Supôs o padre Francisco de Santa Maria no seu Ano Histórico, dia 1º de janeiro, § 4º tit. 1º, pág. 4ª, que Martim Afonso saíra de Lisboa em 1531 e descobrira o Rio de Janeiro em 1º de 1532. Este fato histórico foi destruído pela carta de 23 de setembro, pela qual el-rei lhe avisava que em 1531 quisera mandar voltar para a sua companhia a João de Sousa, o qual levara à augusta presença as relações circunstanciadas das descobertas daquele Martim Afonso, e portanto se dá mais evidente crença histórica que a sua viagem ao Brasil fora imediatamente depois da assinatura daquele alvará de 2 de novembro, para ser então verificada a sua entrada no Rio de Janeiro no 1º do ano de 1531.

Tem igual contradição a asserção dos historiadores, assim naturais como estrangeiros, que dataram uns a descoberta da capitania de S. Vicente muito antes da era de 1531, e depois dela outros, como o abade Valemont, que supôs a mercê dela feita ao donatário em 1549, bem como o seu adicionador Pedro de Sousa Castelo Branco, quando, aliás, as duas cartas da doação régia foram datadas em 1531 e 1535. Os espanhóis, pelo contrário, dataram aquele descobrimento em 1516, relatando com indiscrição a fabulosa história de Aleixo Garcia, e assinalando a razão por que chamam Rio da Prata ao Paraguai. O padre Jaboatão, no preâmbulo, Digres. 4º Est. lª, nº 46, erradamente assinalou a vinda daquele famoso capitão em 1525, e é igualmente inacreditável o que escreveu o jesuíta francês Charlevoix, quando afirmou que Rui Mosqueira, em 1530, derrotara nas vizinhanças de Cananeia oitenta portugueses mandados de S. Vicente pelo governador geral do Brasil, dando aquele título a Martim Afonso, quando, aliás, nesse ano ainda estava em Lisboa, e só foi governador geral Tomé de Sousa, e não aquele que teve só título de capitão-mor.

Suposto um só dos nossos escritores não tinha escrito haver pelejado navalmente o grande Martim Afonso de Sousa com os franceses, no decurso da sua viagem, é indubitável que derrotara diversos corsários, aos quais bateu, obrigando-os a se renderem, pois que desses gloriosos sucessos fez menção a carta régia referida de 23 de setembro de 1532, dizendo assim no princípio dela: “A nau que cá mandastes, quisera que ficara antes lá com todos os que nela vinham: daqui em diante quando outras tais naus de corsários achardes, tereis com elas, e com agentes delas, a maneira que por outra provisão vos escrevo”.

1531

Com próspera viagem, na latitude meridional 22° 54’ 2”, e longitude ocidental 45° 37’ 59”, descobriu as altíssimas serras do continente do Rio de Janeiro com várias ilhas ao mar, e ordenou então aos pilotos que se aproximassem da terra. No 1º de janeiro de 1531 avistou uma maravilhosa foz, circulada de horríveis penhascos, e no meio deles uma extensa laje que, repartindo as águas em duas partes, formava outras tantas entradas para uma baía com perto de 32 léguas de circunferência, que os indígenas chamavam Niterói. Martim Afonso lhe deu o nome de Rio de Janeiro, e ali mandou surgir a esquadra fora da barra, desembarcando ao pé de um outeiro que os franceses (que posteriormente ocuparam debaixo do comando de Nicolau Villegagnon), segundo o testemunho do abade Lery na sua Historia Navigationis in Braziliam, pág. 162, chamaram Le Pot de Beurre, e os portugueses Pão de Açúcar, em a adjacente praia que por dilatado tempo conservou o nome de Martim Afonso, e depois de Praia Vermelha. Explorando o lugar, reconheceu ser a povoação dos belicosos tamoios, vingativos e desconfiados. Então, persuadido que só pela via das armas poderia fazer seguro o estabelecimento, e que para esse efeito não trazia a esquadra suficiente força para vencer a indisposição que observava nos indígenas, julgou conveniente não expor-se a uma desairosa luta, quando convinha adiantar os descobrimentos da costa do Brasil até o Rio da Prata.

Discordam os nossos escritores a respeito da viagem na qual o donatário descobriu o Rio de Janeiro. Jaboatão, no seu preâmbulo, Digres. 4, est. 2ª, nº 54, afirmou que fora na volta de S. Vicente para Portugal em 1532; e Santa Maria, no seu Ano Histórico, no 1º de janeiro § 4, disse que fora na viagem de Lisboa para o Brasil, o que é verdade que se confirma até pela natureza das descobertas que se foram fazendo, navegando e seguindo do pólo ártico para o antártico, e até pela conformidade com o calendário romano, de quem receberam as invocações as terras aonde se aportava.

Começou em 1º de janeiro por esta tão memorável cidade do Rio de Janeiro. No dia 6 do dito mês, assinalou a descoberta da ilha Grande, que se dignificou com o título de ilha dos Reis, porque a igreja celebrava a adoração dos reis do oriente ao Salvador do mundo. O dia 20 do mesmo janeiro marcou a época da descoberta da ilha de S. Sebastião, em que o calendário celebra o seu martírio. E finalmente, a 22 do mesmo mês, a fundação da capitania, que tomou o nome de S. Vicente por ser aquele do martírio do santo, nome que conservou até à era de 1700, visto que então se criou a comarca de S. Paulo, o berço do heroísmo paulistano. Parece, pois, que todas aquelas descobertas foram feitas na viagem do reino para o Brasil, e não deste para aquele, tanto mais que no campo de Piratininga se assinou a sesmaria de Pero Góes aos 10 de novembro de 1532, e na vila de S. Vicente a de Francisco Pinto, em 4 de março de 1533, estando a regressar para Lisboa.

Era muito natural, depois da íntima persuasão em que esteve o donatário de não poder fundar a sua colônia no Rio de Janeiro, que soltando as velas, e progredindo sua derrota, topasse 4 léguas a oeste a barra da Tijuca, que negava ancoragem às embarcações de alto bordo, e achando depois, outras 4 léguas adiante, a foz da Guaratiba, costeando a ilha e restinga de Marambaia (que somente tem cinco léguas de extensão e não 14, como refere Pita), descobrisse a ilha a que deu o nome de ilha Grande, em comparação de diversas outras que se lhe manifestaram na altura de 23° 19’. Formou a natureza entre a ilha Grande e a restinga de Marambaia uma foz de 2 léguas de largura, pela qual entrou a armada. Convidava este lugar a fazer grandes estabelecimentos; porém, o donatário julgou mais acertado levantar a âncora e fazer-se de vela, saindo por outra foz igualmente bela e chamada Cairucú, e prosseguiu até à ilha que tem o nome de Porcos, deixando à direita a enseada, que se denomina Maramonis, onde demora uma ilha alta em 23° 48’, a que deu o nome de ilha de S. Sebastião. Continuou por mais 8 léguas aonde chegou a 22 de janeiro, e achou uma foz para galeras e brigues, que denominou com o título de S. Vicente, como cujo nome dignificou toda a sua capitania. Depois de lançar os primeiros fundamentos dela, navegou então até ao Rio da Prata.

Entrou a esquadra pela foz do Bertioga, que está na latitude setentrional de 23° 52’, entre a terra firme que vai seguindo do Rio de Janeiro e uma ilha de 4 a 5 léguas, que chamam ilha de S. Amaro. No fim dela, para sudoeste, principia uma enseada de 2 léguas de largo, onde deságua o lagamar de Santos por duas fozes: a primeira e mais setentrional tomou o nome de Barra Grande, e a outra de S. Vicente, por ficar próxima à vila. Na foz da Bertioga, apenas saltou em terra, mandou levantar uma fortaleza para pôr em segurança e a bom recato toda a sua gente; assestou a artilharia e pôs em seu competente depósito tudo o que trouxe. Ele levou entre os povoadores muitas pessoas ilustres que se faziam glória de viajar, assim para adquirirem conhecimentos da navegação, que tanto florescia em Portugal, como para obterem as riquezas que prometiam os descobrimentos do Brasil, à vista das relações daquelas que os espanhóis tiravam das possessões do México e Peru e outras províncias.

O desembarque de tão ilustre capitão foi em um dos portos que se denominavam Cubatões, os quais possuíam os jesuítas de Santos, e a que se deu o nome de porto de Santa Cruz, dantes pelos indígenas Armadias, segundo consta da declaração que fez o mencionado Martim Afonso na carta de sesmaria de Rui Pinto, cuja entrada se fazia pelo outeiro Piraquê, pouco acima da ilha do Teixeira, que foi do capitão-mor e provedor da fundição, denominado Gaspar Teixeira de Azeredo. Ele teve a felicidade de não ser perturbado na fundação dos seus estabelecimentos pelos índios, que, espavoridos da grandeza das naus ancoradas, que conduziam tanta gente, correram a avisar aos seus as causas da sua admiração. Apenas desembarcado em terra, levantou as obras de fortificação no porto de Bertioga, sucesso que derramou muito susto e espanto nos indígenas que estavam pescando, que correram aceleradamente para as povoações internas a comunicarem essa tão estranha novidade. Os gritos de dor e de espanto atroavam os ares, o eco os repercutiu no mais interior das montanhas, e os anciãos das tribos acordaram para reunirem-se, afim de lançarem fora das suas pacíficas praias aquela gente desconhecida.

O cacique Tibiriçá dos campos de Piratininga, obedecido e temido dos guaianazes como o mais poderoso guerreiro, deu a voz tremenda que os chama à guerra. Inesperado sucesso imediatamente mudou a opinião daquele chefe, porque João Ramalho, um dos portugueses que vários anos antes haviam naufragado naquelas praias, e que achou a graça e os amores da filha do cacique que no batismo teve o nome de Izabel, e com a qual se unira em consórcio natural, conhecendo pela grandeza do sucesso que só podiam ser aqueles novos hóspedes, seus compatriotas, que dados ao gênio empreendedor da sua nação, surgiram naquele porto, obteve do sogro socorrê-los, representando-lhe que esses infelizes buscavam na desgraça o seu favor, e que não devia expor-se aos desastres da guerra contra homens que os ventos e as tempestades haviam arrojado às suas praias e possessões, e que vinham implorar a sua amizade e oferecer serviços, buscando a terra para salvarem a vida, como a ele sucedera. Obteve por isso a faculdade os ir defender com aqueles mesmos que estavam preparados para lhes fazer toda a casta de males, e opor todo o gênero de contradições e obstáculos aos estabelecimentos a que se propunham.

Que espetáculo tão tocante não se seguiu ao aspecto belicoso, quando Ramalho na frente das hordas brasileiras se apresentou a Martim Afonso, e reunidas as suas sagitárias cortes, falou aos portugueses, saudando e felicitando aquele ilustre comandante da esquadra, assegurando-lhe que prestes tinham vindo para defendê-lo e cooperar com ele na sua gloriosa empresa! Aos portugueses parecia ilusão o que ouviam: atentos e fixos os olhos sobre Ramalho, reconheciam que ele pertencia à sua nação e não podiam compreender como a Providência o salvara para ser em tão próspera ocasião o seu maior abrigo e salvador. Grito geral de alegria depois de pavoroso silêncio retumbou os ares: todos o abraçavam e se felicitavam por tão inesperado acontecimento.

Tibiriçá foi recebido por Martim Afonso com os obséquios devidos à gratidão e benevolência que merecia aquele príncipe: a ele deveu os resultados felizes da criação da nova povoação e da prosperidade e cultura da sua colônia. Que pena poderia descrever os afetos de que foram penetrados naquela entrevista assim os portugueses como os indígenas, vendo estes o seu chefe tão inclinado àqueles, desde o primeiro encontro? Que pureza de expressões no cacique cujo coração generoso, formado para a virtude, não conhecia a dobrez e o engano? Com que demonstrações de afetuosa ternura e efusão de coração para com os novos irmãos condoídos dos trabalhos que supunha sofridos apenas pelas tempestades? Com que ternura abraçando os consolava, prometendo todos os socorros e comodidades que estivessem debaixo da sua possibilidade? Que cena tão admirável de tanta sensibilidade! Os portugueses foram bem recebidos e tratados como irmãos, e na mais franca e leal hospitalidade se prestaram a servir os brasileiros naquele estabelecimento, como amigos generosos.

Mas que estranha fatalidade! Não obstante os ódios nacionais com a Espanha nos estabelecimentos do Brasil, seguiram, contudo, os encarregados do governo as máximas subversivas daqueles conquistadores desumanos que, com o hábito de ferocidade, devastaram a Europa e o Novo Mundo, propondo-se antes a violência, matança, estrago e total ruína de povos inocentes contra os quais debelaram, que de os conservar por amizade e recíprocos interesses. Em parte se assemelharam as horribilidades de que a natureza tanto se pavorizou ao que se praticou nas colônias espanholas contra os sentimentos naturais dos soberanos portugueses, que antes anhelavam a propagação da fé cristã que engrandece seus estados. As minas de ouro e prata, que na opinião daquele tempo constituíam o que chamavam riqueza, mandadas explorar no Brasil, fomentavam a avareza, assim daqueles conquistadores como dos paulistas, que para obterem aquelas ricas aquisições, penetraram os mais densos de nossos bosques com uma coragem apenas crível e chegaram a internar-se pelo norte nos vastos sertões de Bahia, Minas Gerais, Maranhão e Pará, e pelo sul até o Rio da Prata [3]. Na investigação dos metais, pisaram os mais férteis terrenos que apenas amanhavam para a cultura dos legumes e grãos que os deviam manter em tão longas correrias, sendo os diversos climas por onde transitavam sadios e frescos, cortadas as terras de muitos rios que se iam afogar ao mar, abrindo fozes e portos seguros e impenetráveis para a sua defesa.

Devendo Martim Afonso prosseguir na sua régia comissão com a íntima confiança que tinha sido tão justamente concebida da amizade dos indígenas, deixou em terra a gente que devia povoar a capitania, e embarcando os marinheiros e soldados, navegou para o Rio da Prata, marcando os diversos portos, ilhas, enseadas, cabos e rios desconhecidos, onde mandou erigir diversos padrões para testemunharem a possessão que tomara daquelas terras para o seu soberano. Levantou o primeiro defronte da ilha de Cananeia, o segundo no lugar que teve o nome de Cardoso e foi reachado depois de dois séculos, a 6 de janeiro de 1767, pelo coronel Afonso Botelho de S. Paio e Sousa, no exame daquele terreno para levantar uma fortaleza. Na altura de 30 graus descobriu o rio, que ficou se denominando rio de Martim Afonso, e o demarcou segundo refere Vasconcelos nas Notícias antigas das coisas do Brasil, liv. 1, n. 64. Na ilha de Maldonado, junto à foz do Rio da Prata, levantou um marco com as quinas de Portugal e subiu por ele acima, perdendo nos baixios um dos seus navios, como testifica o mencionado Vasconcelos no dito liv. 1, n. 63, pág. 60. Explorou ambas as margens do Rio da Prata, tomando de uma e outra posse para a Coroa. Até essa época os espanhóis não tinham tocado em tais pontos nem em suas margens ou no interior, levantando povoações ou fortificações.

1532

A carta régia de 28 de setembro de 1532 tinha deixado à prudência e à sabedoria de Martim Afonso recolher-se em breve tempo com a armada, e por isso ele, com a possível destreza, concluiu não só a viagem importante de reconhecimento do Rio da Prata, acompanhando-o sempre a fortuna por não ser detido por ventos contrários, mas também pôde ainda lançar os fundamentos da colônia, criando as justiças, levantando a igreja, antes mesmo de se recolher para Portugal, na monção do ano de 1533, donde tornou a sair para governar a Índia no ano de 1534. Escolheu para a ereção da vila um lugar que parecia impróprio junto à terceira foz, quando a Barra Grande, defronte de S. Amaro, lhe oferecia terreno acomodado para uma populosa cidade; mas ele assim julgou convir-lhe, vendo que a ilha de S. Vicente tinha uma planície, a qual seguia perto de uma légua para oeste até ao outeiro Marapé, e com duplicada extensão pelo rio acima. Foi edificada a vila na praia de Tacaré, privada de desembarque; por cuja razão se fez necessária a abertura da estrada de S. Vicente para aquela praia, buscando Embaré, e terminou no forte da Estacada, fronteiro ao rio de S. Amaro. Como fosse menos apropriado o lugar para a fundação da vila, aconteceu que no ano de 1542 já não existiam a casa do Conselho, edifícios e igreja, por havê-los destruído o mar, segundo se anunciou nos atos de vereança daquela vila de 1 de janeiro de 1542 e de 11 de março do mesmo ano, acordando os oficiais da Câmara em edificar nova casa de Conselho no lugar onde ainda hoje foi o assento da dita vila, e se consignou terreno necessário aos povoadores que acompanharam o donatário, para que pudessem plantar na ilha tudo quanto quisessem.

Ele promoveu a agricultura e o comércio a benefício da sua recente colônia, introduziu ali toda a casta de animais domésticos trazidos de Portugal e das ilhas; muito principalmente depois de haver subido aos campos de Piratininga e observado a fertilidade e prosperidade natural dos mesmos, para a criação de todo o gênero de gados, assim vacum e cavalar, como das ovelhas e cabras. Introduziu igualmente as canas doces e várias frutas, não tendo encontrado um só dos animais e aves ou frutas da Europa, nem algum monumento que designasse, com probabilidade ou pela semelhança de costumes e usos, a que povos se podia atribuir a descendência da população brasílica, das três partes do mundo conhecido. Levantou no meio da ilha um engenho de água para moer as canas, edificando uma capela que dedicou a S. José. Aquele foi o primeiro engenho de açúcar do Brasil, do qual saíram as canas para as demais capitanias, assim como também as éguas, vacas e ovelhas [4].

Por duas memoráveis escrituras celebradas em Lisboa [5], constava igualmente que aquele donatário, com seu irmão Pero Lopes de Sousa, contraíram uma sociedade entre João Veniste, Francisco Lobo e o piloto-mor Vicente Gonçalves, afim de levantarem dois engenhos em sua capitania, obrigando-se a dar para eles as terras necessárias, tocando três partes aos sócios; e o donatário consignou e deu as terras de S. Jorge, que haviam sido de Rui Pinto, nos fundos da ilha de S. Amaro, ao norte da vila de Santos, que forma a foz do meio, cujo engenho, debaixo de certos apelidos, já do sr. governador, já no engenho dos Armadores e finalmente de S. Jorge dos Erasmos, foi afinal vendido por aquela sociedade ao alemão Erasmo Scheter, o qual também comprou o quinhão de Veniste.

Cresceu prodigiosamente e se aumentou em produções a recente colônia de tal sorte que em poucos anos se contavam diversos engenhos. Os principais foram o referido de S. Jorge, o de Estevão Pedroso, Jerônimo Leitão, Salvador do Vale e os dos Guerras, nos limites de S. Vicente. Em Santos, havia o da Madre de Deus, defronte da vila de S. João, e o de José Adorno; em S. Amaro, o de Estevão Raposo, Bartolomeu Antunes, o de N. Senhora da Apresentação e o de S. Antônio, de Manoel Fernandes. Todos estes anteriormente floresceram aos anos de 1557, por isso que nesse ano pediram os habitantes a el-rei que à custa da Real Fazenda mandasse levantar dois engenhos, para neles se moerem as canas dos vizinhos [6]. A Câmara exigia já nessa época a perícia para o cozimento dos caldos para a cristalização [7] do açúcar, e a boa consciência dos mestres chamados purgadores, que deviam ser examinados antes de exercerem aquela arte, sendo obrigados a jurar que não prejudicariam os donos, assim na repartição, como na purgação do açúcar; e outrossim, para não consentirem que pessoa alguma desencaminhasse o melado, ou caldo, e sim aproveitar-se tudo quanto se fizesse [8]. Era então o preço corrente do açúcar quatrocentos réis por arroba e seiscentos réis por alqueire o do arroz em casca.

1532 e 1533

Na justa esperança de fazer prosperar o comércio, instituiu o donatário uma Sociedade Mercantil, dando o nome aos acionistas de armadores do Trato [9], no qual entraram os proprietários do engenho S. Jorge, em que era interessado o mesmo donatário e a sua mulher d. Ana Pimentel, a qual, em 1542, constituiu por feitor da fazenda do Trato ao capitão-mor Cristóvão de Aguiar. A companhia, reunindo os seus conhecimentos e capitais naquelas circunstâncias, produziu, por um grande plano de sabedoria, benefícios sumamente úteis para a proteção da nascente indústria de um país que jamais fora cultivado pelo braço dos indígenas, afim de produzir abundantes searas e frutas, estando coberta a terra de despojos anuais das árvores, amontoados desde séculos, aumentados maravilhosamente pelos despedaçados troncos e ramagens daquelas prodigiosas árvores que a impetuosidade dos ventos haviam desarraigado e partido, além da acumulação das plantas parasíticas; o que tudo formava profundas camadas de terra vegetal que constituíam uma fonte perene de fertilidade. Tão precioso sedimento, aumentado pelas substâncias atraídas da atmosfera que as árvores absorviam, impedia, pela sua densidade, a evaporação em seu seio impenetrável aos raios do sol, formando matrizes próprias às espontâneas produções análogas aos germes das plantas que cultivavam naquela imensidade de reservatórios de fecundidade. Por isso, nos primeiros períodos da roteação das terras, a exuberância da vegetação era além de toda a concepção, o que enchia da mais consoladora expectativa aos agricultores, que com pouco trabalho e desvelo, obtinham prodigiosas colheitas, que davam as mais bem fundadas esperanças de sua inesgotável riqueza e prosperidade.

A companhia, com seus fundos, importava as mercadorias de Portugal para se venderem aos colonos e aos brasileiros, que exportavam o açúcar, arroz e mais gêneros naturais e industriais, que deram a Portugal a mais bela perspectiva de grandeza por aquelas relações comerciais que influíram na população e riqueza, ainda das mais pequenas vilas, metamorfoseados em negociantes os pescadores, tornando-as ricas, próprias e florescentes. Tomava-se o açúcar como moeda corrente, o que se tornou de universal consumo, até na classe mais pobre. O dinheiro que vinha de Portugal era de tanta escassez, que a maior parte só ia ter às mãos dos magistrados e empregados públicos, civis e eclesiásticos. Por esta razão, muitas pessoas nobres exerciam os ofícios de escrivãs e tabeliães. Aos indígenas se pagavam os seus serviços com instrumentos de ferro, contas e diversas quinquilharias que se denominavam resgate, cujos valores taxava a Câmara.

Estando o donatário, em 10 de outubro de 1532, nos campos de Piratininga, assinou a sesmaria de Pero Góes, lavrada por Pedro Capico. Nela se prescrevia de que ninguém, sem sua licença ou dos seus lugar-tenentes, pudessem subir ao campo a fazer resgate, e que aquela fosse dada com muita circunspeção, e a pessoas bem morigeradas. Tão providente ordem foi derrogada por sua mulher, d. Ana Pimentel, na provisão dada em Lisboa a 11 de Fevereiro de 1554, que está no arquivo da câmara de S. Vicente, para que todos os moradores pudessem ir ou mandar resgatar ao campo, ordem funesta que atrasou a civilização dos indígenas e produziu o seu descontentamento para com os portugueses e paulistas que, atraídos do impulso das riquezas, à mão armada os iam arrebatar pacíficos das suas choças, cativando-os com suas mulheres e filhos.

Nos parágrafos 6 e 7 do regimento dado por el-rei d. João III ao 1º governador geral do Brasil, Tomé de Souza, se proibira, com vistas muito luminosas e de prevenção a grande males, a entrada no interior do país, permitindo somente levantarem vilas à borda do mar ou rios, medindo seis léguas de distância de uma às outras. Isto mesmo estava ordenado nas doações de Martim Afonso e de seu irmão Pero Lopes de Sousa. Uma vez que impunemente se permitiu a entrada hostil no interior do país, os de S. Vicente penetraram o campo e começaram a ter lugar as represálias; vendiam-se os indígenas brasileiros a quatro mil réis, a guerra se acendeu e os naturais do país se armaram contra os seus injustos hóspedes.

Recresceram os malefícios com os estabelecimentos da vila do campo de Piratininga, pela solicitação dos jesuítas para com o terceiro governador geral Mem de Sá. Ela se instalou no dia da comemoração da conversão de S. Paulo, que deu o nome aquela província. Desde então, porfiadamente atravessaram os habitantes os sertões com bandeiras (que assim se chamavam aquelas companhias armadas), recolhendo-se ufanos com as presas que topavam ou arrancavam do seu natal solo por força. Os jesuítas, que tinham fundado em S. Vicente o seu colégio, e que subiram a serra de Paranapiacaba e aportaram à vila de S. André da Borda do Campo, atravessando além, quatro léguas por campinas rasas, pararam no campo de Piratininga do cacique Tibiriçá, que no batismo tomou o nome de Martim Afonso de Sousa. A 25 de junho de 1554, celebrou-se pela vez primeira naquele lugar o sacrifício da missa no dia da conversão do Santo Apóstolo das Gentes. Aquela vila se engrandeceu com a conversão dos índios à fé, pelos louváveis desvelos dos jesuítas, que, com infatigáveis trabalhos, conduziram os povos rudes e selvagens ao conhecimento do verdadeiro Deus e à prática das virtudes, ensinando-lhes a adorar o Supremo Senhor em espírito e verdade, e amá-lo com toda a força da sua alma, e aos seus semelhantes pelo amor de Deus mesmo, havendo conseguido que muitos perseverassem até o fim cristãmente.

A última coisa memorável que fez o donatário foi o descobrimento das minas, havendo tomado informações de sua existência nas vizinhanças de Cananeia; e para levar a efeito aquele projeto, enviou oitenta exploradores que infelizmente pereceram nas mãos dos carijós, que habitavam ao sul do rio de Cananeia. Tão desagradável notícia lhe foi transmitida no momento da sua partida para Lisboa, o que muito o contristou; porém deixou ordem para serem punidos os assassinos pela guerra, constituindo a Pero Góes e Rui Pinto capitães, dando instruções sobre o castigo dos indígenas.

Instaram em 1585 os habitantes ao capitão-mor Jerônimo Leitão [10] pela guerra contra os carijós, por haverem matado, no decurso de 40 anos, a mais de 150 portugueses, e com ferina crueldade a dois missionários jesuítas, além de 80 homens enviados por Martim Afonso ao descobrimento das minas. Por motivo desse sucesso infeliz, e pela rebelião dos índios de Piratininga contra o cacique Tibiriçá, Charlevoix, na História do Paraguai, relatou que Rui Mosqueira efetuara seu desembarque em S. Vicente, saqueara a vila e armazéns da Coroa, e fizera outras façanhosas ações; e que, voltando a Santa Catarina, seguira para Buenos Aires. Com falta de exação foram referidos tais fatos, quando na verdade a capital S. Vicente nunca sofreu assalto algum, à exceção dos corsários de pirataria, e com a ocupação de Portugal por Felipe II ficou sujeita, como as demais províncias ao governo espanhol. Não se faz crível que, apoderando-se Mosqueira ao país, se não estabelecesse nele e regressasse para tão distante lugar. A derrota dos descobridores das minas de Cananeia, que antigamente compreendia as minas de Ribeira; existentes no território dos indígenas tupis, Acougui e Parnaguá, encontrados pelos carijós, que mataram, subministrou o romance e impostura referida por aquele escritor na suposta invasão de S. Vicente, sendo a verdade a do seguinte sucesso. Confederaram-se os índios de Itanhaém e Cananeia com os tupis, em 1562, contra a tribo de Tibiriçá, com o projeto de atacarem a vila de S. Paulo, que sitiaram, por recusar aquele cacique reunir-se ao projeto da exterminação dos portugueses, a quem o cacique protegia, guerreando em sua defensão contra os seus mesmos parentes, que, com o ódio e vingança no coração, detestavam os portugueses e se pronunciavam pela sua total ruína. Charlevoix, com erro de fato histórico, atribuiu a Mosqueira sucessos em que ele não teve a menor parte.

A vila e porto de Santos, que demora aos 23° 56’, bem como a de S. Paulo e Itanhaém, foram eretas depois da retirada do donatário para Lisboa pelos seus lugar-tenentes. Tinha sido nomeado, em 16 de outubro de 1538, Antônio de Oliveira, sucessor de Gonçalo Monteiro, no governo da capitania do donatário, em qualidade de capitão-mor. Este repartiu e deu de sesmaria as terras de que até então se apropriaram os colonos, por atos de mera ocupação, com que a indústria e agricultura se deram as mãos para o embelezamento de S. Vicente, que sobressaíra antes de todos na civilização, fecundada maravilhosamente pelos sábios nunca assas louvados padres jesuítas Leonardo Nunes, Nóbrega e Anchieta, pessoas dotadas de muita piedade, juízo e espírito patriótico, suportando, com inexprimível paciência, muitos trabalhos e aflições no Ministério Apostólico, para formar aquele povo nas virtudes cristãs e políticas.

1549

Vieram os jesuítas ao Brasil em outubro de 1549 com o primeiro governador geral Tomé de Sousa. A carta régia assinada pelo infante cardeal d. Francisco, em data de 15 de outubro de 1567, suscitando a observância da que foi expedida em 1565, ordenava se fundassem dois colégios de jesuítas. E como era ardente o desejo pelo adiantamento e final êxito daqueles edifícios, mandou o príncipe regente assinalar o socorro para as despesas dele, na aplicação que fez a favor deles das condenações e penas pecuniárias impostas pela justiça ou pelos governadores, nomeando o provincial para aquele fim um recebedor; e que se continuaria na prestação referida até que se acabassem as mesmas obras dos colégios que se mandavam erigir e construir. Em outra carta régia, datada de 11 de novembro de 1567, foi ordenado ao governador geral que no real nome confirmasse todas as datas e doações das terras feitas aos jesuítas, não consentindo que lhes fossem tiradas e que se lhes dessem cartas de confirmação, ainda que não tivessem feito benfeitorias nelas, sem embargo de quaisquer ordens régias que determinassem o contrário, havendo mesmo defeitos de fato e de direito, que para ter efeito os havia por supridos.

Com este subsídio, devido à caridade dos habitantes, levantaram os jesuítas as suas casas de oração e instrução, e com o andar do tempo chegaram à grandeza e perfeição que tanta admiração ainda hoje conservam. Tiveram eles a maior influência sobre as consciências, mormente das pessoas que convertiam; o que produziu maravilhosos efeitos na civilização das hordas bárbaras, suposto que alguns foram vítimas. Aqueles mesmos, pela confiança posta nos padres, se prestaram a servir na paz e na guerra, nas obras públicas e mais trabalhos da sociedade civil. Quantas vezes não foram os jesuítas os moderadores e medianeiros de paz entre os portugueses e indígenas, concorrendo, quanto cabia no seu zelo, para adoçar a ferocidade dos conquistadores, que levavam o estrago da morte cruel às povoações indígenas, a quem ensinavam com paciência inimitável os princípios religiosos e civis, pregando o Evangelho não só nas cidades e povoações bárbaras e ermas, convertendo a santidade da vida pelas máximas de Jesus Cristo, insinuando nos povos um caráter de popularidade que reuniu em povoação uma imensidade de índios, servindo depois de tão dilatados anos de prova sem suspeita do seu zelo para com a religião, e para a felicidade social. Pouso antes do extermínio que políticas causas urdiram, as povoações de indígenas das vizinhanças de S. Paulo contavam sessenta mil habitantes, e a acusação que se lhe fizera de haver nas missões de Paraguai mais de trezentos mil combatentes é argumento contraproducente da sabedoria e zelo dos padres, que jamais tiveram protótipo. Em honra dos serviços que fizeram ao Brasil, seja-me lícito dizer que todos os recentes estabelecimentos que então tiveram princípio se não perpetuariam até nossos dias, se aqueles evangelizadores, praticando todas as virtudes, não fizessem penetrar as verdades da religião aos conquistados e conquistadores, chamando a religião e a moral em socorro das relações políticas, com as quais firmaram em sólidas bases a pública prosperidade, nos elementos dos estabelecimentos das cidades e vilas, que lançaram com sabedoria, poupando a efusão de sangue, quanto estava em suas providentes faculdades, a que eram levados os indígenas por natural orgulho que lhes excitava o amor de sua liberdade e independência, como a fereza de sua vingança contra seus inimigos, que os impelia pelas armas a saciar seus ódios e suas brutais inclinações.

Notas

  1. Os mesmos historiadores estrangeiros relatam que uma terrível tempestade arrojara o português Afonso Sanches aos “mares nunca dantes navegados”, onde em certa altura, avistou terra desconhecida, e não pôde arribar por não lhe permitirem os ventos contrários e as correntes, sendo ele o primeiro que na ilha da Madeira publicou a notícia das terras que descobrira no novo hemisfério. Dele foi que ouviu Cristóvão Colombo, naquela ilha, em cuja casa se hospedara, a maravilha de tão grande sucesso; porém, enfermando, ali morreu aquele piloto português Afonso Sanches. Era bem natural que Colombo visse a derrota da sua viagem, com as notas de tão memorável descobrimento, e a carta que da terra incógnita notara e desenhara Sanches, o que sem dúvida lhe inspirou a coragem de a poder reconhecer, oferecendo seus serviços à sua nação, a Portugal e à Espanha, os quais, desprezados pelos primeiros, depois de vários tempos foram aceitos pela Espanha, do que resultou, na era de 1492, o mais importante descobrimento, tão glorioso que deu o maior império aquela nação, produzindo uma nova ordem de coisas, e que deu ao mundo novos gozos e relações comerciais. Consta do testamento de João Ramalho, que está nas notas da vila de S. Paulo, feito pelo tabelião Lourenço Vaz a 3 de maio de 1580, com a assistência do juiz ordinário Pedro Dias e de quatro testemunhas, perante as quais repetira que tinha 90 anos de assistência naquele país: a não ter sido assim, aquelas pessoas lhe arguiram do seu erro. Martim Afonso de Sousa, em 1531, já então o encontrou em S. Vicente, tendo 90 anos de idade naquele país, em 1580. Segue-se evidentemente que 39 anos antes de Martim Afonso descobrir S. Vicente, ele ali existia em 1490, dois anos antes de haver Colombo descoberto a América. O Brasil recebeu em seu seio alguns portugueses que nas costas naufragaram, e que por falta de meios não puderam publicar tão maravilhosa descoberta. É fato histórico comprovado que João Ramalho, à testa de 300 indígenas armados, viera em socorro dos portugueses que aportaram na Bertioga, solicitando do cacique Tibiriçá a proteção aos seus nacionais, cujo cacique tomou no batismo o nome do donatário e teve a mercê do hábito de Cristo, que naquela época só se dava por grandes e importantes serviços. Desse modo, arrogou-se Colombo a tão grande glória de descobridor, que antes ganharam os portugueses. Nas Memórias do padre Jorge Moreira, escritas no século antepassado, se refere que João Ramalho viera com Antônio Rodrigues, o qual se casara com uma filha de Jequirobi, cacique da aldeia de Turano. É muito provável que arribassem nestes climas alguns portugueses antes de Martim Afonso, para ter lugar o fato a que a História Argentina manuscrita em espanhol e o francês jesuíta Francisco de Charlevoix dão a denominação de Rio da Prata. Ramalho e seus companheiros vieram seguramente em algumas das embarcações que navegavam para a Ásia e a África, descobertas pelos portugueses, as quais naufragaram nas costas de Santos, quando se destinavam para aqueles continentes, que já tinham feitorias e povoações nossas. Ramalho foi o primeiro dos habitantes do Novo Mundo, em 1490; e Pedro Álvares Cabral, por casualidade, em 1500, na viagem para a Índia, descobriu a terra de Santa Cruz na província de Porto Seguro. Recentemente, na vila das Dores, a duas léguas de Montevidéu, foi achada uma pedra que cobria um sepulcro de tijolo, contendo em caracteres gregos o nome de Alexandre, filho de Filipe, rei da Macedônia, com copos de espada, e nela a efígie de Alexandre e um capacete com a representação esculpida de Aquiles arrastando o cadáver de Heitor, e esta expressão: “Nestes lugares, Ptolomeu…” É de crer que esse chefe da armada de Alexandre, levado por tempestade ao alto mar, surgisse na costa do Brasil.
  2. Não sem alto desígnio da Providência descobriu Cabral tão formosa enseada, que teve com razão o nome de Porto Seguro por ser abrigada e de boa tença, como designando a sede de uma das maiores cidades do Brasil pela sua posição cosmológica, excelente porto, capaz de receber grandes vasos, fertilidade da terra, riqueza de suas matas de pau-brasil, metais preciosos, diamantes e outras pedras preciosas, que deviam atrair progressiva riqueza e população pela fácil comunicação dos países centrais que formam as grandes províncias das Minas, cujos rios deságuam e se precipitam em diversos pontos nas águas do mar que banham as costas deste dilatadíssimo continente. Não se pode conceber a causa do desvario de abandono deste importante surgidouro, que domina uma das mais ricas porções da província, tão assinalada pela Providência, pelo feliz auspício da chegada dos primeiros portugueses, para fazer ditosa, próspera e permanente a população, com estabelecimentos industriosos. E que fossem cinco léguas ao sul os habitantes fundar a vila, cuja foz, entre recifes, não admite a navegação senão de pequenas lanchas que fazem o tráfico da pesca da garoupa, o que não é proporcional à acumulação da riqueza pela agricultura e o comércio das madeiras que abundam, Não se remediou tão antigo erro, quando se abriu a estrada das Minas novas, que devera encaminhar-se aquele grande porto, sendo com tanta indiscrição levada à vila dos índios de Belmonte, por entre insondáveis países e pântanos.
  3. Southey, História do Brasil, tit. 3º, cap. 37, pág. 362, diz o seguinte: “Se na verdade se considerar quão pequena nesga de terra constitui o reino de Portugal, e quanto esta pequena nesga é pouco povoada, e que Portugal, parte por superstição, parte por ciúme e parte pelo orgulho que predomina no seu caráter nacional, não deriva a assistência para as suas colônias da superabundante população e atividade das outras nações, talvez achar-se-á que os brasileiros têm feito maiores e mais rápidos progressos, em proporção aos seus meios, do que jamais tem sido feito pelos colonistas das outras nações. Ignorante e falsamente têm os americanos portugueses sido acusados de inatividade e falta de espírito. Eles se têm estabelecido até ao rio Orellana, ocasionando muitas disputas com os espanhóis, respectivamente aos limites, e tendo os mais perspicazes seus receios pela segurança do Peru. Têm aberto o caminho até ao rio Negro e daí, por uma cadeia de rios e de lagos, têm certificado o extraordinário fato entre o Orellana e o Orenoco, penetrando com suas canoas até às Missões dos espanhóis, o que faz remover toda a dúvida pelo testemunho de Humboldt, de cuja autoridade não há apelação. Consta, além disso, haver uma raça de mulheres guerreiras, de cuja existência há provas tão fortes e coerentes que se não podem desacreditar levemente, tendo-se delas ouvido que, partindo do centro do continente, por fim cruzaram até ao Orellana para a parte da Goiana”.
  4. Vasconcellos – liv. 1º das Coisas curiosas do Brasil, pág. n. 63, pág, 61.
  5. Liv. 1º da provedoria de S. Paulo, tit. 1555, n. 49, pág. 127.
  6. Apontamento do liv. 3º das vereanças de S. Vicente em 29 de abril de 1557.
  7. Dito liv. de 19 de setembro de 1557.
  8. Liv. 3º de vereança de S. Vicente de 29 de abril de 1542 e 1550.
  9. Dito liv. de 19 de janeiro de 1544.
  10. Arquivo de S. Paulo, liv. com o tit. 15, § 5, pág. 12.

Fonte

  • Lisboa, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro: A descoberta e conquista deste país, a fundação da cidade, com a história civil e eclesiástica, até a chegada d’El Rei D. João VI; além de notícias topográficas e botânicas. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, 1941. (Obra reeditada pelo Serviço de Museus da Cidade, do Departamento de História e Documentação, da Secretaria Geral de Educação e Cultura).

Veja também

Imagem destacada

  • GAMEIRO, Alfredo Roque, 1864-1935 - «O desembarque dos portuguezes no Brazil ao ser descoberto por Pedro Alvares Cabral em 1500» / Roque Gameiro & Conc. Silva. - Lisboa : José Bastos, [ca 1900?] ([Lisboa] : Lith. da Comp. Nac. Editora). - 1 reprodução de obra de arte : color. ; 28x42 cm (imagem sem letra), via Biblioteca Nacional de Portugal.

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