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Recordando Vieira Fazenda, por Augusto Maurício

INSTITUTO CARTOGRÁFICO CANABRAVA BARREIROS. Map of The Central Part of Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Departamento de Turismo e Certames. Disponível na
INSTITUTO CARTOGRÁFICO CANABRAVA BARREIROS. Map of The Central Part of Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Departamento de Turismo e Certames. Disponível na Biblioteca Nacional
Vieira Fazenda (*1847–†1917) – Fotografia do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Vieira Fazenda (*1847–†1917) – Fotografia do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Quem se dedica ao estudo da história da “muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” – capital do Brasil desde 27 de janeiro de 1763, há de, infalivelmente, procurar os ensinamentos de Vieira Fazenda. Outros historiadores houve que muito se interessaram em gravar em letras o passado do Rio de Janeiro, para que as gerações subsequentes pudessem conhecer os fatos de sua terra. Entre eles destacam-se Moreira de Azevedo, Pizarro e Araújo, Felisbelo Freire, Joaquim Manuel de Macedo, Magalhães CorrêaMax Fleiuss, Escragnolle Dória, e tantos outros que já partiram da vida, e que aqui deixaram em livros preciosos os mais sugestivos flagrantes da cidade, desde os seus primórdios.

Todavia, Vieira Fazenda sobreleva-se pelo estilo simples, pela maneira carinhosa como trata os assuntos relativos à cidade que lhe serviu de berço e, talvez por isso mesmo a amava tanto. A sua obra “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro” – há muito tempo esgotada, que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em boa hora reuniu em cinco alentados volumes, não pode faltar nunca na estante dos historiadores da terra carioca que sucederam ao ilustrado mestre, porque as páginas de Vieira Fazenda são um manancial inesgotável de informações preciosas, detalhes indispensáveis à feitura de qualquer estudo. Ali está, palpitante, o Rio de Janeiro, em sua história bonita desde o descobrimento, em 1502, pela esquadra comandada por André Gonçalves, a fundação da cidade em 1 de março de 1565 por Estácio de Sá no Morro Cara de Cão, à entrada da Baía da Guanabara; as guerras dos portugueses contra os franceses e os indígenas; a transferência da sede da cidade para o alto do Morro do Castelo por Mem de Sá em 1567; as primeiras edificações; as denominações primitivas que tiveram as ruas; os fatos mais pitorescos, quer sociais, quer históricos; o desenvolvimento ininterrupto e progressista da urbs fluminense. Qualquer informe ou pormenor de que se careça é encontrado, seguramente, em Vieira Fazenda.

Nasceu José Vieira Fazenda no Rio de Janeiro, no dia 28 de abril de 1847, num sobrado da então Rua do Cotovelo, nas proximidades da Rua São José. A sua infância foi igual à de qualquer menino de seu tempo. Possuía, no entanto, mais do que os outros, a inteligência viva, o absorvente desejo de saber, a ânsia de ilustrar-se. Os seus pais, de condição modesta, quiseram fazê-lo doutor, pensando, talvez ingenuamente, que o anel de grau representasse alguma coisa de elevado na vida e no espírito de alguém. O diploma, para muita gente, substitui e até supera e com vantagem a deficiência de talento, qualidade que, aliás, sobrava em Vieira Fazenda.

Não pôde furtar-se ao desejo paterno. Matriculou-se na Faculdade de Medicina em 1866, tendo, antes, passado pelos bancos do Colégio Pedro II, e de lá saiu doutorado. Era médico aos 24 anos de idade, e o curso foi feito com distinção, para alegria e orgulho dos velhos pais.

Exerceu a medicina fazendo clínica, notadamente na enfermaria das velhas da Santa Casa de Misericórdia, e no Hospital de São João Batista da Lagoa, sempre com o coração aberto à pobreza, a alma de homem bom a serviço dos necessitados de lenitivo às doenças do corpo. Ocupou também, por instância de amigos, uma cadeira na Câmara Municipal, onde brilhou sempre, trabalhando intensamente em benefício da cidade.

Em qualquer dessas atividades – como médico consciente e dedicado, ou como representante do povo, no Conselho Municipal, portou-se com dignidade, não desmerecendo nunca a confiança que nele depositavam amigos e admiradores, muito embora a segunda – a política, não o seduzisse em absoluto.

Onde, porém, Vieira Fazenda se tornou grande, notável mesmo, foi no estudo da história. Ele era historiador por intuição, pesquisador paciente de fatos históricos, amava estar mergulhado num arquivo a esmiuçar ocorrências, a desfazer controvérsias, envolvido na poeira gloriosa das estantes, na familiaridade dos livros velhos marcados pela inconsciência das traças destruidoras. E graças a esse espírito apaixonado pelas coisas do passado, muita gente hoje se tem valido do seu trabalho árduo mas profícuo, para oferecer aos apreciadores do gênero esplêndidas páginas da história carioca.

Um belo dia – 6 de março de 1898, aparece Vieira Fazenda ocupando o cargo de Bibliotecário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no prédio ocupado hoje pela Academia de Comércio, e que, anteriormente, fora o Convento dos frades Carmelitas. Entrava no Instituto Histórico por nomeação do presidente da Casa, Conselheiro Olegário Herculano de Aquino e Castro. Qualquer pessoa que amasse o passado de sua terra, aceitaria essa função como presente inestimável e resplendor de vitória. Naquele mundo de documentos de antanho, nas páginas luminosas dos livros arrumados em fila ao longo das altas paredes daquele cenáculo de cultura, encontraria tudo quanto necessitasse para enriquecer seus conhecimentos, para mitigar sua fome de saber.

E foi o que sucedeu com Vieira Fazenda. Ávido de conhecer o máximo sobre o Rio de Janeiro, desde o alvorecer do século 16 até os dias que se desenrolavam à sua frente, logo se identificou com o trabalho, e de tal modo que em pouco tempo sabia de cor onde se encontravam as obras mais raras, escritas nas épocas mais recuadas, de todos os autores e todos os seus textos.

Remodelando a biblioteca do Instituto Histórico, Vieira Fazenda promoveu nova arrumação às obras, facilitando a consulta aos inúmeros visitantes da sala de leitura. Ele mesmo, quando procurado por qualquer interessado em descobrir algo sobre o Rio de Janeiro, tinha a maior alegria em ser útil, não raro informando de pronto quanto a sua memória guardava, ou então auxiliando na busca aos milhares de volumes confiados à sua guarda. E sentia-se infinitamente feliz, mas sem vaidade, quando as reservas do seu saber podiam satisfazer a curiosidade de alguém.

Homem de vida simples, repartida entre os amigos que eram muitos, tanto homens como livros, era de benignidade extrema para com os humildes. Os homens, para ele, eram absolutamente iguais na sua formação orgânica. A fortuna não trazia bons sentimentos nem alterava a condição humana. Na biografia de Vieira Fazenda, de autoria de Mestre Noronha Santos, publicada na ocasião do centenário de seu nascimento, em 1947, este ativo historiador desenha em cores vivas e verdadeiras as nuances esplendorosas da alma do seu ilustre colega. Citando alguns autores de biografias anteriormente tornadas conhecidas, insere em sua obra um trecho de Escragnolle Dória, que é um traço nítido do caráter invulgar e reto do autor de “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”:

“Era prazer trocar ideias com esse homem honesto, erudito, despretensioso, brando de coração e duro de espinha. Incapaz de lisonja o seu elogio parco condecorava. Franco com todos, ríspido e ombro a ombro com os poderosos, jamais sorriu para adular ou cortejar para obter”.

Segundo Noronha Santos, ele era “patriota sem patriotadas, amando o Brasil grandioso, no culto de suas tradições e no amor ao passado, no que ele tem de respeitável”.

Os grandes homens (não os homens grandes, os enfatuados, os presumidos, os que pensam que muito sabem) são deliciosamente modestos. O cabedal de conhecimentos que possuem, os faz integralmente humanos, não havendo para eles essa classe que, bafejada pela fortuna pecuniária, se considera superior. A única riqueza que conforta, porque real e digna de consideração é a do saber. E quanto mais sabe o homem inteligente, mais e mais procura conhecer. Rui Barbosa disse certa vez, respondendo a alguém que lhe declarava invejar o seu talento, que – “para ser sábio seria necessário que soubesse tudo quanto ignorava”. E era Rui Barbosa que assim se expressava.

* * *

Noronha Santos, dotado de sabedoria invulgar, atento aos estudos históricos desde há muitos anos, antigo Diretor do Arquivo Municipal, lídimo continuador da obra de Vieira Fazenda, não foge também aos hábitos dos homens de espírito elevado, iluminados pelo talento. Sobre a bondade deste podemos falar por ciência própria, pois temos muita honra em conservá-lo na nossa amizade e no nosso máximo respeito. As relações entre nós datam de tempo já afastado. Precisávamos, certa vez, de um esclarecimento sobre algo que estávamos escrevendo, e não nos ocorria nenhum conhecido a quem pudéssemos procurar. Foi quando, talvez por inspiração, lembramo-nos de Noronha Santos – um dos maiores historiadores do Rio de Janeiro na atualidade. Não o conhecíamos, porém, a não ser através do seu nome e dos seus luminosos trabalhos. Uma ligação telefônica, algumas palavras de confessada admiração pelo Mestre, e logo a nossa dificuldade era removida. E isso rapidamente, sem rebuscar seu arquivo notável; uma resposta “de bolso”, como se diz vulgarmente. Daí então nossa amizade se foi apertando, consolidando-se, e hoje, qualquer coisa que se nos torne preciso saber acerca da cidade, recorremos incontinenti a Noronha Santos, na certeza prévia de que seremos satisfeitos.

Vieira Fazenda era assim. O seu saber estava a serviço de quem dele carecesse; era um livro aberto, em cujas páginas preciosas se podia estudar toda a história do Rio de Janeiro nos seus mínimos pormenores.

A vida, porém – mesmo a dos grandes homens, não é eterna. Um dia se finda, embora nem sempre legue a outrem a soma de conhecimentos, de bondade, de humanidade, de cultura reunida durante o seu longo ou breve período de existência na terra. E Vieira Fazenda tinha que morrer um dia.

E isso aconteceu a 19 de fevereiro de 1917. Em janeiro desse ano fora acometido por um insulto cardíaco; as crises repetiram-se com frequência, até que prostraram irremediavelmente o eminente carioca.

A memória de Vieira Fazenda era, porém, digna de uma homenagem da cidade. Assim, pouco tempo depois de sua morte, o então Prefeito Amaro Cavalcante, por decreto de 31 de outubro do mesmo ano 1917, fez denominar Vieira Fazenda a Rua do Cotovelo, aquela mesma rua simples, estreita e sinuosa, em que ele nascera no dia 28 de abril de 1847.

Com o desmonte total do histórico Morro do Castelo, obra iniciada em 1921, na administração do Prefeito Carlos Sampaio (Governo de Epitácio Pessoa), a Rua Vieira Fazenda, situada na encosta do monte, desapareceu também.

Poucos brasileiros há como este, cheio de fé no destino de sua cidade, sempre apaixonado pela beleza do seu berço natal, sempre amoroso pelos fatos de sua terra, da terra que amava acima de tudo, cuja história soube com tanto brilho, dedicação e carinho escrever em cinco grossos volumes, que são quantos constituem a “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”.

A este excepcional historiador, a homenagem da nossa saudade e o respeito da nossa devoção.

Fonte

  • Ferreira, Augusto Maurício de Queiroz. O Que Ficou do Passado. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1954. 167 p. (Companhia Editora Americana).

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Livro

Mapa - Local da Antiga Rua Vieira Fazenda